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Anelito de Oliveira


 


O avesso do visível



 

“Eurus”, a exemplo do que Sylvio Back vem publicando desde 1986, não é poesia de cineasta em descanso, mas de poeta em sentido forte, de fabbro, altamente concentrado na cena criadora. Sua ambição, convertida ao longo do percurso em verdadeira obsessão, não é outra a de levar a palavra aos extremos do sentido, a um mais-além do verbo.

Tal projeto, em princípio, estaria realizado na seção “haitec” do livro, em que o design do artista curitibano, Luis Antonio, vulgo Solda, exacerba o “extrato ótico”, como diria Ingarden, de alguns poemas de Back. São artefatos competentes, dialogo de maneira digna com um Augusto de Campos – a quem um dos trabalhos é dedicado -, mas não é ali que está a chave do livro.

Certamente, é plausível ver essa chave no poema que dá título à coletânea, “eurus”, em que, segredando-se, tudo se diz numa forma simetricamente forçada, como se dizer fosse algo a contrapelo: “sopre este poema/da página enxote/pro nume que dá/a lume sopre aqu/eleoutro suma com/todos e deixe o tí/tulo sumo do que/um dia ex íncubo/do verbo fora po/esia viés que ag/ora seria não és”. Transparece um certo ar de clímax nesse poema, algo de ponto, algo de agon estético. Não é, de forma alguma, um grande poema, nem mesmo o melhor trabalho do livro. Pode ser visto como nostalgia de uma idéia de rigor superficial, restrito ao arranjo verbal, já superada na poesia brasileira. Mas é nesse poema que se revela o modus operandi do poeta nesse livro e nos que o antecederam.

Ao envolver a coletânea com o título “Eurus”, Sylvio Back aponta para o conflito que realmente marca sua relação com a criação poética. Não é uma relação de paz e amor, como tem sido a de tantos, e sim, ao contrário, de guerra e ódio. Antes de mais nada porque essa relação não começa no texto, ali em meio às palavras, mas no que antecede, circunda e se estende para além do dito.

Dir-se-ia, a partir de um viés extremista, que essa relação começa no não-dito, mas seria mais plausível pensar que começa no não-visto. Não é de dizer que se trata nessa poesia, ao contrário do que se pode pensar em face, especialmente das coletâneas fesceninas publicadas pelo autor, como "A vinha do desejo", de 94 e "boudoir", de 99. O gesto de Back não é retórico, mas radicalmente poético. "Eurus" permite que se entenda que o poético consiste numa apresentação, na exposição de uma "primeiridade", para dizer com Peirce, não numa mera representação. Essa já seria uma perda do poético, um deslocamento daquilo que, para o poeta, seria o ponto irradiador da poesia. Back se esforça por apresentar poesia em si, encarando até o poema, o aclamado artefato dos dias que correm, como uma representação, uma reprodução. Acontece que, ao se aproximar da musa, da fonte de memória-esquecimento, o poeta constata, mais uma vez ao longo da história, aquilo que está no poema "eurus" citado: "que o que agora seria "não és". Nem a poesia, nem o poema, nem o poeta - para desdobrar a ambigüidade daquele "és" -, nenhum "tu", nenhuma segunda pessoa da relação, efetiva-se. Não há outro lado?

A seriedade - e, por isso mesmo, validade - da atitude poética do autor deriva, em grande parte, da insistência em perscrutar o outro lado do que se lhe apresenta, numa expécie de exploraçao do avesso do visível, momento através do qual já acusa a insuficiência da visibilidade, ilustram esse movimento os dois grandes, em duplo sentido - poemas do livro: "transontem" e "véu de Curityba".

À primeira leitura, parecem poemas inteiriços, em que tudo que se queria dizer, está dito, ilusão estimulada, inclusive, pela extensão. Mas, no fundo, são poemas contorcidos, virados para a cena que tentam registrar, de costas para o leitor e, pode-se mesmo acrescentar, em situação de confronto com seu autor. Este apenas aparentemente diz, quando, na verdade, tenta ver o cerne de duas cenas passadas.

A primeira, em "transontem", gira em torno de um nome, Omi, e se mostra, de certa forma, com caráter restaurador. Procura-se, numa gradativa objetivação, atestar a "lindura" da personagem num determinado instante. Dir-se-ia que, a princípio, tenta-se fazer um retrato que, no final das contas, resulta numa retratação que não se sabe de quê, ou de quem. Inútil dizer? Certamente.

Na sua última "pincelada", lê-se em "transontem": "Omi/(tentáculo de vendeta/espetáculo do capeta)/esplêndido/ver-te verdolenga/sorry (indo)/nos lábios de mármore/o pesar d´alma/em dobro". Há aqui, em relação ao sujeito, o eco de uma cólera, e também há, em relação ao objeto estético, um índice da relação conflituosa entre Back e a poesia. E é possível dizer que o sujeito repercute o que se passa na experiência de realização do objeto.

Aproximando-se do cerne da cena, o poeta vê seu tema - Omi - sorrindo, a ela pede desculpa numa outra língua e, entre parêntese, como que num terceiro plano, deixa dizer que ela está partindo, situação reforçada pela imagem do mármore e, finalmente, reafirmada de maneira romântica. No cerne da cena, portanto, processa-se uma perda do que se queria encontrar, dilui-se o objeto da visão.

O que se vê é sempre o que é possível ver, não mais. Há um véu sobre as coisas, algo intermediário entre sujeito e objeto, enfim, uma instância que a linguagem poética tenta transpor, mas em vão. Também em "véu de Curityba", Back revela mais sobre seu processo poético, sua resistência a aderir a uma representação retórica em detrimento da vontade de empreender uma apresentação poética.

Bastaria, para comprovar esse entendimento, lembrar que "eurus" disponibiliza um "elucidário para "véu de Curityba", em que se expõem traços biográficos de Miguel Bakun e Mauri Furtado, personagens do poema, bem como de lugars da capital paranaense, como Boca Maltida e Bar Felácio. Tal "elucidário" já diz que o poema, para Back, não é lugar do dizer.

É lugar de ver - o que pressupõe, naturalmente, que para lá, para a cena de criação, o poeta foi por não ter visto, foi movido pelo desejo de, finalmente, ver. Mas esse desejo é apenas parcialmente realizado, quando muito. Há algo que resiste a ser visto, situação que se afirma em função de uma preponderância de algo como vocábulos crus nos poemas, autoconcentrados. Acima do "véu", as palavras do poema de Back parecem evocar mais elas elas mesmas do que uma realidade outra: "ó vampiro arbuste e suas cutículas", "ó rei dos sanguessugas", "ó morcegão/dos derradeiros esgares", "ó carbono trespassado". Para o leitor, são apenas palavras, sentenças literárias, mas, ouvidas na direção do autor, são índices de uma vontade de despertar o que está escondido, resistente à visibilidade. Onde?


Anelito de Oliveira, poeta, ensaísta, ex-diretor do Suplemento Literário de Minas Gerais, é doutorando em literatura brasileira pela USP. Autor de, entre outros, "Três festas/A love song as Monk".
 




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04/11/2005