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Andréa Santos

 

O Engenheiro da poesia e do Capibaribe: João Cabral de Melo Neto

 

 

“Não serei o poeta de um mundo caduco.
também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros
estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças./.../”.
Carlos Drummond de Andrade – Mãos dadas.

 

A obra de João Cabral de Melo Neto situa-se numa vertente problemática: o pós-modernismo de 45 e a concentração de uma literatura, quando a dessacralização da poesia é acentuada com a introdução de um novo vocabulário.

Pelo repúdio da linguagem fácil e cotidiana do modernismo de 22, ele – Cabral – se aproximaria da geração de 45, mas curiosamente, isto não acontece. A cada livro publicado João Cabral afastar-se-á desta geração: É que esse negócio de inspiração não funciona – dizia ele.

Conhecido como o engenheiro da poesia, este pernambucano apresenta uma inquietação formal, engenhando a poesia da palavra sobre a palavra. Como a um engenheiro – Cabral de Melo Neto - constrói edifício de vocábulos.

Anti-sentimental, o poeta compõe uma poesia pensada, racional e emprega uma linguagem elíptica e concisa.

As nuvens
 

As nuvens são cabelos
crescendo como rios;
são gestos brancos
da cantora muda;

São estátuas em vôo
à beira de um mar;
a flora e a fauna leves
de países de vento;
São o olho pintado
escorrendo imóvel;
a mulher que se debruça
nas varandas do sono;

São a morte (a espera da)
atrás dos olhos fechados
a medicina, branca!
Nos dias brancos

Publicado em 1945, o livro O Engenheiro traz-nos as nuvens, poema onde notamos o contraste na mobilidade das nuvens e dos cabelos em crescimento, ou ainda, dos rios que é perfeitamente normal com a nudez, o qual contamina os semblantes, pateticamente, brancos: anômalos. Estas nuvens tornam-se personagens (elas são...) que confrontam com a normalidade de rios do reino humano (a cantora muda;).

De modo que elas não as são, mas primeiramente natureza, sono, antecipação da morte e arte (como fracasso, alimentação e ficção nas estrofes 1ª, 2ª e 3ª); ainda assim são uma espécie da “existência” em branco, gratuita, parada e vazia, da vida nefelibata e oca dos nossos dias brancos.

Existência imaginária, sem peso e sem densidade, onde o homem parece integra-se no mundo, somente a custa da sua própria insuficiência e da insatisfação que ela lhe impõe. Pois não é a natureza, sono ou morte que se exprime aqui de modo tão insatisfatório: — É o homem, enquanto sócio minoritário e não realizado do complexo natural. Nas nuvens o homem projeta sua perda ou (e) seu ganho.

A criação Cabralina é lúcida, é meridiana convivendo sempre com a maravilha diante do ser. Em Psicologia da Composição (1947), com a Fábula de Anfion e Antiode fortalece o antilirismo estabelecido em O Engenheiro. Constitui uma quebra mais acentuada como a ‘fantasia’ em Pedra do Sono. Na Psicologia da Composição há reflexões sobre a criação poética. A Fábula de Anfion é um poema onde o anti-herói procura despojar a poesia de sua afetividade. Com Antiode, o poeta coloca-se contra o modelo da poesia compreendida tradicionalmente como profunda: o poema é edificado através da objetividade da palavra escrita e não por meio dos “estados d’alma” da prática romântica.

Fábula de Anfion

1. O Deserto

*

(Ali, é um tempo claro
como a fonte
e na fábula.

Ali, nada sobrou da noite
Como ervas
Entre pedras

Ali, é uma terra branca
E ávida
Como a cal

Ali, não há como pôr vossa tristeza
Como a um livro
Na estante).

Em síntese, este pernambucano nos apresenta Anfion que de acordo com a mitologia grega era dotado de talento a música e recebera de Apolo uma lira. Ao som desta lira, construiu a muralha de Tebas. Edificando pedra sobre pedra sem qualquer esforço.

Assim, os motivos temáticos são associados por João Cabral: pedra/palavra; substituindo a lira por uma flauta rústica e interpretando o mito com a liberdade de criação. Nesta ‘Fábula’ percebemos que Anfion persegue o deserto, e este deserto é uma terra sedenta. Se este personagem grego busca o árido, então procura a sede. Transformando-se em amador da coisa amada. O deserto é a disciplina de Anfion, é a ordem severa de uma fome.

Em A Poesia do Capibaribe (Cão sem Plumas-1950), faz da imagem um jogo de planos, cujos jogos e planos aprofundam uma lucidez na poesia onde encarregará seu verso a fala sobre a realidade social e concreta. O autor nela se entrega, com a maior exatidão interpretativa, a uma verdadeira e atenta humildade diante da cena no sentido vulgar e pejorativo da palavra.

Paisagem do Capibaribe

§ O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão
ora um outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.

Já que a questão do ser representa consciência da abertura, da essencial receptividade do homem, ela não concebe a liberdade como uma auto-afirmação volúvel e sem controle, porém, sim, como livre obediência a uma lei soberanamente escolhida fora de toda expressão externa.

As antíteses do Capibaribe aludem as situações concretas de limitação irracional do homem. O protesto que anima e revela a radicalidade da dialética deste homem ainda é redefinida em seu convívio. Elas são, entretanto, uma aplicação simples do pensamento do poeta a um argumento particular. A critica social não é meramente deduzida, como um único significado positivo do ser homem, é seu conteúdo negativo, isto é, a sua obra de destruição, pretensão da criatura em apresenta-se como ser.

Esta inserção não é dedutiva no contexto social, ela é claramente visível no tipo de valorização da realidade exibida na cena poética. O rio aspira do mar ao mesmo tempo em que receia e desta forma desdobra-se em imagens da plástica vitalidade. O trabalho do Capibaribe e a sua união com outros rios em preparar a luta, podem ser vistos como uma tradução dos esforços solidários; e também como progresso da ascese do deserto o qual reflete na contínua destilação através da qual os cursos d’água, nos mangues, enfrentam o mar e lhe impõem como desafio o fruto das ilhas.

Na poesia e posteriormente na imagem o rio-cão é, imediatamente, investido de status da trilogia imaginística: restos, bala, copos enterrados.

E mais, como pode o cortante surgir como espessura? É que a verdade palpável, a verdade coletiva e seu propósito substrato/biológico nas dimensões figuradas, pelo poeta, através das imagens nos fazem reconhecer mais destas verdades que de outras quaisquer. Porém, essa espessura é feita de privação.

É, portanto, pelo seu viver da carência, pelo seu crescer como Fome, que a espessura e agudez se apresentam e se equivalem.

Há em João Cabral uma recusa do lirismo sobre acontecimentos políticos ou comentários, recusa também a seus poemas sociais todo caráter de circunstância. É uma poesia menos datada, por isto, Cão sem Plumas é uma pura poesia cabralina.

Se nada ocorre a critica social na poesia e na imagem, não tem como dar a vez às forças do conflito; há uma denúncia de situações através de figuras, porém existem controvérsias. Há uma estratégia de mostrar o desequilíbrio, não celebrar os que combatem ou, mesmo ainda, apostrofar os seus beneficiários. A imagem em si não acusa. Portanto, a voz da realidade – exprime melhor toda esta vontade de informar aos homens de sua condição e lógico deixar ao seu cargo – a incumbência do seu insubstituível senso moral – a decisão de agir contra a injusta sintaxe do mundo.

Toda esta alta visão do Capibaribe alude à dimensão da utopia como componente do ser humano e de sua relação com o ser; mas a consciência da essencialidade do utópico nada tem a ver com a sua degradação em profetismo vulgar, em representação arbitrária da felicidade no bojo de uma propaganda ideológica. O paraíso do porvir é uma possibilidade nascida do repúdio direto da sociedade opressora, não uma receita servindo de isca para uma persuasão.

João Cabral de Melo Neto consegue ainda seguir os estilos dos cantadores populares nordestinos. O Rio narra as suas próprias experiências históricas e sociais em tom de prosa popular.
 

O Rio

ao partir companhia
desta gente dos alagados
que lhe posso deixar,
que conselhos, que recados?
—somente a relação
do nosso comum retirar
só esta relação
tecida em grosso tear./.../
Toda paisagem é sem vida!
 

Andrea Santos
 

 

João Cabral de Melo Neto

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Hélio Rola

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Octavio Paz, Nobel