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José Alcides Pinto




Inez e o assédio da palavra




 

Estou com dois livros em minha mesa de trabalho para fazer uma resenha. Dois livros de poesia de uma mesma autora em fases e estilos diferentes. Há tempo aguardam pacientemente uma palavra. A leitura não precisou de espera, esta foi feita de imediato. Atirei-me aos textos com sofreguidão e incontida ansiedade. É que os poemas de Inez Figueredo (os poucos que conhecia) sempre me causaram o mais vivo interesse. Entenda-se: não foi por descaso que prolongou-se o tempo da análise, mas pela imperiosa necessidade de aos mesmos voltar, o que me foi bastante proveitoso.

O primeiro, O poeta e a ponte. Fortaleza, edição da Autora, data de 1997; o segundo Estrela, vida minha é de 2004, lançamento das Edições Poetaria. Ambos guardam entre si um vínculo comum de identidade – o inusitado da linguagem e até o da técnica de composição, do sentimento e da dor, a dor de existir representada pelo absurdo existencial, que era o tormento e a angústia maior de Camus e de todos nós.

O poeta e a ponte se inscreve, com muita propriedade, na vanguarda criativa, no que diz respeito ao experimentalismo gráfico-visual-espacial, pelos alvéolos gráficos e montagem das linhas de composição, do equilíbrio e da forma.

Apesar do emprego adequado da palavra, neste ou naquele livro, ambos se distanciam e se unem pela beleza da essencialidade que os tornam múltiplos e unos, levando-se em conta o jogo inusitado das metáforas em sua fonte nascente.

Neste livro, encontramos um belo poema que se tornou leitura obrigatória de Régis Jucá – “ Narciso e o Lago ”. (p. 67). Realmente faz jus aos seus melhores poemas, ao lado de “ New York Talvez Baste ”, “ Diário de Bordo, “ Fome de Babel ”, “ Do Beijo ” e alguns outros que são momentos eternos da poesia.

As orelhas de O poeta e a ponte mostram o talento de Dimas Macedo. O Posfácio de Beatriz Alcântara, outra mulher inteligente e de excepcional valor, vem em versos : “ – Poeta / ao enigma te lanças / à ponte devotas arte / de artífice / que fecundou as entranhas / da palavra imatura / convertida em lança / segura”.

Inez assumiu em seu namoro com a poesia de vanguarda, o concretismo, uma postura radical que está expressa em seu primeiro livro.

João Cabral, em 1988, deu o grito de alerta que sacudiu os jovens poetas de seu marasmo: “ O concretismo foi a coisa mais importante que aconteceu na literatura brasileira, desde o romance do Nordeste, nos anos 30, e da grande fase criativa dos poetas que vinham do Modernismo, como Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, Cassiano, Cecília Meireles, Vinícius. Sobretudo porque, pela primeira vez na nossa literatura, as pessoas sabiam o que estavam fazendo (...) os modernistas eram profundamente provincianos (...) . Eles fizeram em 1922, o que o mundo fazia em 1907”. (Trecho roubado ao poeta Pedro Henrique Saraiva Leão de “ Poesia Concreta no Ceará ”. Palestra integrante do Seminário sobre a Produção Literária no Ceará no Século XX ”.

Neste O poeta e a ponte , ou em Estrela, Vida Minha, último livro de Inez, seu perfil não se altera, mantém-se o mesmo, perseguindo sempre o novo como modelo e integração aos seus poemas. Ambos os textos, embora diferenciados, mostram um imagem física e subjetiva do mundo e do destino do homem. O sincretismo é dono (e proprietário único) desse “campo de estrelas”, que é o de sua vida – campo magnético e enigmático (imagístico) por onde rola e se enreda o espaço de suas emoções.

Apaixonei-me por Estrela, vida minha à primeira leitura, foi amor à primeira vista. É que a riqueza de expressão, o inusitado das metáforas e a autenticidade do texto, levantaram em minha alma a chama votiva e inovadora do ideal artístico, resultantes de uma estética onde forma e estrutura se juntam para melhor elaboração do poema. Em verdade, as vertentes inovadoras desta autora ampliam suas idéias, dando às mesmas um sentido plural altamente significante, próprio da grande Arte. Sua intuição inventiva desenha o modelo de sua poemática que foge ao comum das coisas.

Inez Figueredo não se mistura nem se parece com ninguém. É como se o natural estivesse nela como a felicidade na lua nova, tão integrada está na natureza e na natureza humana. Fora disso, rege-se pela luz do ícone, sem perder de vista o misticismo, que é parte integrante de seu ser. Ao mesmo tempo, Estrela, vida minha , tem um sentido ideológico raro, em seu silogismo, que promana de seu ideal, e que se pode traduzir por independência de espírito contra preconceitos sociais que não batem com seus princípios éticos e estéticos.

Inez vem de 1966, integrante do “Grupo Literarte”, criado pelo professor Mário Baratta, pintor e também poeta, a quem Inez o chama de “criador de bruxas e duendes”. Mário Baratta foi tudo isso e muito mais. Foi um figura singular e polêmica que marcou presença no mundo das artes plásticas e da literatura. Ele só valia por toda uma geração, pelo seu talento e seu saber.

Mas vamos centrar nossa análise crítica em Estrela, vida minha , objeto e atenção desse trabalho. Inez trouxe, para seus poemas a essencialidade da palavra, em sua integração e cosmovisão . E como bem disse com objetividade e com espírito de síntese na orelha do livro o professor Geraldo Jesuino: “ Aqui assistimos o exercício (talvez sacerdócio) poético da busca do SER-PALAVRA, eremita, habitante de insólito e intrincado universo, apenas revelado a iniciados caprichosos e apaixonados.

Estrela, vida minha revela uma paixão inusitada e quase obsessiva pelo domínio da palavra, pelo desvendamento, sua intimidade e plenitude ”.

A poeta e crítica Neide Archanjo, em prefácio à obra, mostra as virtudes dos seus poemas: “ Inez quer o texto e a ele se entrega de uma maneira feroz, quase que despudorada. Contempla e nomeia coisas, personagens. Visita a paixão, sem perguntar por fórmulas, sobretudo não propõe o Caminho. Inez abre o caminho , caminhando”.

O livro, dividido em sete partes , precedidas de sete epígrafes ( o grifo é nosso) mostra que sinal, símbolo e signo juntam-se numa simbiose no mínimo cabalista.

O primeiro poema que dá título ao livro ou vice-versa, invade ( e inunda) o universo da permissividade – oásis que tanto me apraz registrar: “ Luz, ó luz, / a leste, invade meu coração! / Remo é minha mão direita / a vasculhar as águas do meu útero / a socavar esfera que me nutre / pele do rio, tórax do meu chão”.

Inez assimilou bem a lição de Valéry para quem “a revisão é o princípio da perfeição”, ou a de Focilon: “ a revisão conduz à forma”. E estas são tão belas e úteis como a de Fernando Pessoa, que não me canso de citá-la: “ Exija de si o que sabe que não poderia fazer; não é outro o caminho da beleza”. Daí a grandeza de seus poemas principalmente nesse Estrela, vida minha.

Inez no contexto de seus dois livros, desafia e vivencia com a palavra na percussão e na essência dos poemas, mostra o sensualismo que explode de seu corpo sem que ela possa detê-lo, pois que é ao mesmo tempo ritmo e linguagem na integração do verso: “A saliva lava em cada folha / A palavra / único sussurro meu”. ( p:20). E segue-se: “ Em chamas, entrego-me / à inquietude do meu próprio fulgor”. (p:23). Ainda nesta seqüência erótica, seus versos são enriquecidos pela plasticidade das métaforas: “ E surge uma grota, um aceiro, um tapume, / uma picada do meu útero à lua, / às implícitas palavras ao desejo, / às coxas nuas, / fundindo-nos em folha, meteoro ou sereia”. Mas não se pense que só o erotismo é destaque no Estrela, Vida Minha. O misticismo está por dentro das palavras, mostrando o lado espiritual da autora “Ave, Maria Madalena é noite / no deserto dos múltiplos céus.” (p: 47) Ainda no poema Ofício de Cura encontramos esse grito de agonia: “Ó meu Deus, tanta circunavegação, tanta literatura, /impossível explicitar todos os termos meus!” (p: 67)

A delicadeza de seu universo amoroso também se faz no áspero chão dividido em que se nutre o verso. Sua poesia não é triste nem alegre, por vezes indulgente, o que nos lembra essa passagem de um dos romances de Ciro dos Anjos: “ Somos excessivamente indulgentes para com as nossas fraquezas e concedemo-nos, no amor, todas as liberdades”.

Seus livros também nos falam de suas relembranças e do acendrado amor por tudo que lhe cerca. São tantos os momentos eternos de Estrela, vida minha , que não podemos nos furtar de transcrever parte desta seqüência tomada ao acaso: “ Molhada, desvela exausta / teu punho ereto, teu grito de gozo”. (p:57). Facada da luz na esvoaçante trepadeira! / Se o toque dos meus seios em tuas vogais / ou a seda dos lençóis entre meus textos, / não sei. Tudo perdura.” (p: 64). As metáforas continuam num ritmo excitante por toda a obra.

Para escrever um grande livro, não bastam a emoção, o domínio das palavras e da linguagem. É preciso elegê-lo à sua mais alta expressão substantiva, mergulhar fundo em seu âmago, transpor as linhas divisórias, deter sua sangria e aproximar-se de sua magia e de seus mistérios; enfim, eleger uma forma ideal que seja suporte e patamar de seu todo orgânico e uniforme. E nossa poeta chega a isso com ruptura e espantosa facilidade.

Inez Figueredo não é poeta para ser lida uma só vez. Teremos que voltar sempre aos seus poemas como fazemos a Castro Alves, Bilac, Augusto dos Anjos, Drummond, Cabral, Bandeira, Jorge de Lima, Cecília Meireles e todos os grandes poetas, não esquecendo Moacir de Almeida, que se aproxima do gênio, morto aos 22 anos, praticamente desconhecido em nossa literatura, autor de um único livro: “Gritos Bárbaros”.
 



Inez Figueredo
Leia a obra de Inez Figueredo
 

 

 

 

05/07/2005