Um esboço de Leonardo da Vinci

 

 

 

Carlos Nóbrega

 

 

 

 

 

 

 

 

 

albano Martins

 

 

 

 

 

Urariano Mota

 

 

 

 

 

 

Paulo Bomfim

 

 

 

 

 

 

 

Aníbal Beça

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Aíla Sampaio

 

Diário do Nordeste, Fortaleza, Ceará, Brasil

19.10.2008

 


O sol intemporal de Bastista de Lima

 

 

 

 

O O Sol de cada coisa, lançado recentemente, afirma a veia poética de Batista de Lima, também contista e ensaísta, e nos mostra a luminosidade de seu verso bem talhado, num trabalho gráfico primoroso. A partir do título, já se entrevê um raio de luz a perpassar, como se fosse a claridade o estro da criação, mesmo que imersa na dualidade própria da condição humana. Com uma profunda crença na vida e no amor, o poeta acende com as palavras a luz, invisível aos olhos comuns, que subjaz em tudo.
 



Sua poesia, ora perscrutadora da própria existência, ora amorosa, ora telúrica, ilustra bem a condição do homem contemporâneo diante da multiplicidade de ´Faces´: Há dias à noite em que pareço a manhã que virá, e enxerga, nele mesmo, um outro a espreitar-lhe como um ´Vigia´: Até dormindo / há sempre um olho / que pesa sobre meus sonhos. Sua constante consciência do estar no mundo e de ser outro constantemente não impede que ele se surpreenda com o inusitado: Há um José que se esconde dos que carrego. Percebe-se, nestes poemas, a voz do poeta Affonso Romano de Sant´ana: Debaixo de minha pele / alguém me olha esquisito /pensando que eu sou ele, num diálogo que confirma o dilema do homem de nossa época, fragmentado e perdido em sua incompletude. O duplo se lhe apresenta como uma tentativa de completar o que lhe falta e está fora do seu alcance.

O eterno retorno

A presença da terra deixada, mas trazida, retoma o mito do eterno retorno em ´Constatação II´, quando o sujeito poético diz ter transcendido a ausência física do lugar amado, numa declaração de amor à terra natal da qual se encontra exilado. Esse exílio, entretanto, é apenas físico; ele já não mais tenta, nas despedidas, levar os potes ou o alpendre, símbolos do apego à raiz sertaneja, já não acena para o engenho (metonímia expressiva, que mostra o aceno para todos o que fazem parte daquele universo); ele se apercebe de que nada fica, quando ele parte: Nas outras fui esquecendo despedidas / Pois finalmente descobri / que todos iam comigo / onde quer / que eu pudesse ir.

No poema ´Descobrimento´, também percebemos a inevitabilidade de seu exílio e a predestinação para assenhorear-se dum mundo vasto, que o horizonte (do Taquari(?)) não seria capaz de alcançar: ´Meu pai trouxe o mar / para casa prisioneiro de um grande búzio / E no alto sertão / Instalou as caravelas / Com que descobri o Brasil.

Sua poesia amorosa não incorre em pieguice ou excessos; é comedida, embora os sentimentos não estejam disfarçados. Há confissões de amores plenos, mas quase sempre idealizados, como se vivê-los fosse o risco de perdê-los. Bem ao estilo romântico, o poeta parece realizar-se com a distância de sua musa. Chegar perto, possuí-la, talvez significasse o fim do amor. O modo de tê-la eternamente é não se achegar, mas manter-se ao longo enfermo de paixão, loucura e mal-estar. O mergulho no sentimento se dá em ´Amar´: Amar é... nadar quando o outro se faz lago, mas, qual Sílfide, a vaporosa dama mitológica do ar, a mulher aparece digna não da vida, mas de um altar para imolação e tem a voz copiada dos anjos. Em ´Sangria´, há uma gradação perfeita, bem nos moldes da ´Cantiga pra não morrer´, de Ferreira Gullar: na condição da partida da amada, o sujeito lírico desvela seus lamentos e chega ao ápice na estrofe final, quando pede que ela deixe pelo menos a possibilidade de ele morrer de saudade.

O Tempo e os diálogos

O tempo, com seu efeito corrosivo, é outra presença constante nos poemas. O eu lírico, em ´Contatação I´, reclama dos anos que chegaram sem aviso... um a um com suas fomes / comeram nossas ternuras / por não termos fechado as portas. Esse sopro Maiakovskiano, do acontecido por permissão, confirma suas leituras e influências que se estendem a Drummond e sua máquina do mundo (´O domador de relâmpagos´); a Cabral, com sua lâmina só gume (´Lição´) ou no galo despertando /.../ no espreguiçar da manhã (´Mira´). Ou ainda Bandeira: Não era um homem / não era um bicho / era o mar / tornado areia (´Maré baixa´).

Outra leitura

Já em ´Momento´, a passagem do tempo não é dolorida, ao contrário, é esperada e até bem-vinda: Assim sem pressa vou ficando ao largo / não me canso por me tornar idoso / antes idoso que virar saudade. Subtende-se a aceitação da maturidade e o medo da morte, que é, depois, desafiada: A mãe terra tem fome de mim /.../ só não sabe a mãe terra / onde poderá guardar / esse explosivo lixo que carrego / esse cismar que vai comigo (´Desafio´). Outro diálogo se dá, desta feita, com Quintana, que, em sua ´Confissão´, diz: Acho-me relativamente feliz / Porque nada de exterior me acontece... / Mas, em mim, na minha alma, Pressinto que vou ter um terremoto!´. Nova dualidade se faz: a do jogo aparência/essência. Mas o tempo é mais saudade, não uma saudade doída, mas a marca de uma ausência, de uma falta que habita: Que tempo bom era aquele / redes virgens na varanda / tapioca no fogão / dente de ouro na fresca / barulho de faca em feira /.../ e minha mãe na janela / pilando pimenta e lágrima / batucando um pilãozinho ( Poema:´Uma casa só portas´).

Sua ligação com a terra se dá num continuum entre cancelas e caminhos, potes e alpendres, quando o eu poético se sabe ´tábua, ripa e caibro´. Vozes se entrecruzam: a mãe, o pai, o avô, a avó (que, eufemisticamente, amanhece viúva), o engenho, a casa e suas histórias. Essa ligação com as raízes se revela tanto no conteúdo de alguns poemas, como na linguagem e na própria forma: ´Tulipa´, por exemplo, é um pequeno cordel (quase épico) que conta uma história de amor malsucedida. ´BR-116´ é uma mini-epopéia nordestina, uma viagem contemplada pela janela do ônibus durante um trajeto pela estrada que liga Fortaleza a Lavras, mas é, sobretudo, uma viagem pelo ritual do ir e vir: a cadeira onze na ida / e a vinte e sete na volta; há também um lamento pelas perdas oriundas do progresso: Esta BR apunhalou o coração de minha terra / passarinho voou voou / nas asas do seu medo próprio. / BR 116 / cadê minha galinha pedrez / o canto da curicaca / a flor de manjericão...

A metapoesia, presença constante a mostrar a preocupação com o fazer poético, atinge o ponto mais alto n´´O domador de relâmpagos´, quando o eu lírico diz que a poesia é dama desnuda / que se veste de poema e mostra o também duplo processo criador: O poema vem sem pressa /.../ tenho caçado palavras / como quem caça veredas, deixando, desse modo, confessa sua criação como misto de inspiração e trabalho cerebral.

O lírico

Batista de Lima é, na concepção de Schiller, um ´poeta sentimental´, pois ´pratica uma poesia de caráter reflexivo, filosoficamente comprometida com seus próprios meios de expressão e realização´. Neste novo livro, sobretudo, ele filosofa, silencia, perscruta, recorda, celebra, faz declarações de amor, brinca com as palavras, seduze-as, apascenta-as e confirma seu nome na poesia cearense contemporânea. Suas múltiplas vozes não apenas domam os relâmpagos, mas acendem as luzes intemporais do sol invisível de cada coisa e abrem portas para celebrar a vida!

AÍLA SAMPAIO*
Colaboradora.
*Professora da Universidade de Fortaleza

FIQUE POR DENTRO

O eu do poeta e o eu lírico

O eu do poeta, segundo Massaud Moisés (A criação literária.São Paulo: Cultrix, 1967), se confessa por meio do eu lírico, cuja natureza vale a pena examinar de perto. Que se trata de um autêntico eu, a simples leitura de um poema o demonstra; pertence ao universo empírico saber que no poema fala uma primeira pessoa. A discussão não se trava, por isso, em torno de sua existência, mas de sua fictividade ou não. A vivência pode ser fictícia no sentido de invencionada, mas o sujeito vivencial e com ele o sujeito-de-enunciação, o eu lírico, pode existir somente como um real fictício. Em suma: fictício seria a vivência, e real a voz. A voz é real enquanto sujeito-de-enunciação, um eu empiricamente detectável, a manifestar-se por meio da expressão poética, e real também porque possui as características do eu como entende a Psicologia. E fictícia naquilo em que ostenta qualidades de uma pessoa vivente, sem o ser, ou em que pertence ao mundo imaginário, inventado, suposto; não só a vivência participaria do plano da invenção, mas o próprio eu que a experimenta.