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Jornal do Conto

 

 

Francisco Miguel de Moura


 

O remédio de menino esperto

 

Xamelego come as unhas, arranca os botões da camisa, corre pela casa atrás das galinhas, entra e sai... Chamego de menino impossível. Naquela manhã quase não escapa de uma pisa.

Zeca precisa ir dar aula. D. Mariinha quer começar seus artesanatos: surrões, vassouras, esteiras, abanadores, cofos, urupembas, com que ajuda na renda da família.

Os dois estão impacientes. Além de outras necessidades, faltara o café da manhã. Café sem açúcar é uma tortura. Quem suporta? É melhor ficar em jejum.

- E cadê a rapadura?

- Tava ali.

- Ali aonde?

Aponta com o dedo e com o beiço:

- Na telha.

- Quem já viu esconder rapadura na telha? O rato vem e come.

- Rato é lá besta. Ele pensa que tem veneno. Há muito tempo que eles não vêm por aqui.

- E por que não guarda em outro lugar? Isto é uma loucura...

- Loucura é colocar em qualquer canto. Escondendo no mais difícil como eu escondo, ele ainda acha. Ora, ora!...

- Ele, quem?

- Ora quem, Xamelego.

- Chamou ele às favas?

- Chamei na hora: - Xamelego, meu filho, vem cá. Você está comendo o doce do café? Como se pode tomar café amargo? Você não tem juízo, menino. Tem?

- Não.

- Não, o quê?

- Não sei de rapadura, não fui eu.

- E quem foi?

- E eu sei!?

- Fale a verdade.

- Tou falando...

- Não está.

- Então, foi o rato.

- Ah, e este cheiro na tua boca? Te peguei, moleque, com a boca na botija. Tu vais apanhar. Vou dizer a teu pai.
 


 

Aos dois ocorreu uma lembrança boa (e má). Do tempo do vício do menino, quando ficou amarelo, amarelo, e foi preciso tomar remédio de botica. Zequinha pensa e calcula: não há mais dinheiro, nem o dono da venda vai lhe fiar mais nada, tem certeza. Quanto mais o da botica.

Ele e a mulher entraram para o quarto com as mãos na cabeça, sem saber o que fazer para que o menino deixe este outro vício. Estão agastados porque, além de não terem mais isca, o café foi amargo, sem doce nenhum, tudo por conta do Xamelego.

Zeca disse:

- Vou ali no quintal e volto já.

Saiu com uma faca amolada na mão, seu jeito era de muita raiva. Xamelego nunca o tinha visto com aquela cara. Maria ficou se benzendo. Rezando. Pedia a Deus que os dois não se encontrassem.

Dali a pouco, Zeca entra. Com o menino nem falou nada. Bastou olhar. Era como se dissesse: “Saia!” E o moleque saiu.

Zequinha entregou a mulher uma folha de babosa, ainda escorrendo o líquido.

- Tome Mariinha, agora obrigue seu filho a não se lavar, não se banhar nunca. Ou pelo menos por uns dias. Quando ele estiver dormindo você lambuza isto nas mãos dele, nas duas. Agora, a rapadura que a gente tem que comprar deve ser líquida. Mel. Quando ele for comer, vai se lambuzar também. E vai se arrepender. Enquanto isto, nós vamos jejuar nosso café por uma semana.

Depois dessa decisão, Zequinha sai para trabalhar. Leva consigo, escondido, um meio sorriso. Graças a Deus.

Daquele dia em diante Xamelego deixou de roer as unhas. E dona Maria também nunca mais teve que se queixar à vizinha da “esperteza” do filho.

Nunca mais.