Delaroche, Hemiciclo da Escola de Belas Artes

 

 

 

 

 

Virgínia Schall


Cidade viva


Nessas manhãs plenas, nessas minhas manhãs de dentro
fico a interrogar a vida, e interrogo a cidade
como uma velha paisagem esmaecendo em fotografia de sonho
a cidade assim, vista de cima , entre a floresta, o mar e as montanhas

queria rasgá-la em vôo como um pássaro branco
numa viagem ancestral anterior ao homem

E para além de mim, compreender o mistério da beleza
esculpida em silêncio como à espera
de olhos que vindos de outros mares, aqui se encantaram
e ao correr dos séculos tecem sobre ela, novos mantos

Nessas manhãs, estando assim, presa de segredos indizíveis
imersa neste cenário, tremula de êxtase e desejo
quero abrir em mim uma imensa porta
e adentrar a vida que essa cidade pulsa
roçar minha pele em suas linhas sinuosas
lamber o sal de seu halo sereno, embaçando seu contorno
penetrar seus portos, suas salas, túneis e praias
decifrar momentos e encontros de amor e encanto

Nessas minhas manhãs, sacio a sede de ver para além de tudo
em uma inexplicável leveza nascida dessa sua imagem viva
e comungo minha alma num mergulho , em suas águas me plasmo ao universo.



Poema premiado - Prêmio Raul de Leoni, UBE, Rio de Janeiro, 1995


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Virgínia Schall


 

Evocação feminina


Minha voz
rasga véus
cortinas
de dentro
de sempre
desfaz penumbras
e acorda
Bárbaras, Cecílias, Stellas
Henriquetas, Heliodoras

E suas vozes
em minhas palavras
alteiam
celebram encontros
de amores tantos
salpicam sândalos
no ar.

Sagas passadas
chagas em sangue
vertem
e vibram
amantes perenes
somos todas
onipresentes

Minhas mãos
tão femininas
mãos de mulher
madura, menina
sonham
acariciam ternas
lúcidas lembranças
pedaços de dias
franjas de ausências
melancolias

Em suas palmas
conchas
de lágrimas oceânicas
verdejam prantos
horas molhadas
de sofrimento,
surdas, caladas.

O silêncio da solidão
é memória
reverbera
fantasias, ilusões,
onde desaguar
como abraçar
tamanha paixão?

Mãos entrelaçadas
tecem séculos
em teia
de fios farpados
prisão de anjos
eternizados
Somos etéreas
flores fugazes
pirilampos da vida
pela vida
alinhavadas

Assim evoco
Bárbara, Cecília, Stella
Henriqueta, Heliodora
cantemos juntas
à nossa felicidade
brindemos uníssonas
à nossa liberdade!


[Poema premiado - 3o. lugar no Prêmio de Poesias da Academia Feminina Mineira de Letras. Belo Horizonte, 1998].


 

William Blake (British, 1757-1827), Angels Rolling Away the Stone from the Sepulchre

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Anderson Braga Horta

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Virgínia Schall


 

In Min(as) Memória


Olho
Vejo o quadro
E abro memórias
De Min(as)
No retrato antigo
Ouro Preto vivo

Vejo a moldura
Madeira lavrada
A mãos operárias
Feridas
Espoliadas

Vejo a moldura
Limite que estreita
As estradas possíveis
Esquadro
Que enquadra
E define
A existência finita

Vejo a moldura
Árvore morta
Veios à mostra
Registro de folhas
Verde escrita
No tempo perdida

Olho
Vejo o vidro
Espelho de Min(as)
Remexendo lembranças
De sonhos ausentes
Sombras da infância
Na face
Disfarçada

Vejo no vidro
O brilho da luz
Luar de neon
No quarto fechado
Flor de cachoeiras
Submersas
Transformadas em frutos
Eletrizados

Vejo no vidro
A imagem da porta
Trancada
Às minhas costas
A noite nua
Face oculta
Dos mistérios
Do universo às escuras

Olho
Vejo as pedras
Emergindo
Dos traços e tintas
E perscruto suas arestas
Sob meus pés saudosos
dos caminhos passados
Uma onda de amor
Recobre minhas pálpebras
E meu corpo sozinho
Em arrepio

Vejo as pedras
Penetro seus sulcos
E encontro a promessa
De sementes sufocadas
À espera do tempo
De ontem, de sempre
Relva agreste
Agredida
Aguardando a vida

Vejo as pedras e assisto
À cerimônia do arbítrio
No rastro de correntes
As marcas negras
De pés escravos
Nos passos presos
De corpos mártires
Andarilhos
No encalço
Da liberdade

Olho
Vejo as torres
De igrejas
Pontiagudas
E escuto sinfonias
Que atravessam estrelas
Envolvendo galáxias
Caixas de música
Aprisionada
Comungando esperanças
De eternidade

Vejo as torres
Cumes citadinos
Anunciando segredos
Que os sinos denunciam
E desesperam
Em hora de adeus

Vejo as torres
E suspeito as tramas
De uma história
Erigida por palavras
E intenções
Que escondem essências
Renegadas
De desejos profanos
Sob vestes sagradas

Olho
Vejo o casario
Estruturado, barroco
Desafiando os anos
Enclausurando corpos
E destinos
Em rostos perplexos
Fotografias reveladas
Pelas janelas
Paisagem sedutora
De um jogo binário
Entre o de dentro
E o de fora

Olho
Aqui me encontro
De frente, "nu" quadro
Ser e imagem
Estou lá, estou aqui?
Min(as) em mim
Espelho, miragem?



[Poema premiado com o 2o. lugar no concurso de poesias da Cia. Vale do Rio Doce(1994)]


 

 

Da Vinci, Madona Litta_detalhe.jpg

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Pedro Nunes Filho

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904) - Phryne before the Areopagus

 

 

 

Virgínia Schall


 

Poema por um amor


Pouso meu olhar
vôo rasante
sobre a noite
e oferto meu ser
às estrelas
a brisa tênue
toca minha face
efêmera
e colhe cálida
o meu amor
eterno

Sou inteira flor
meus lábios
pétalas
desabrocham beijos
na imagem ausente
de tua boca
terna
meu desejo
perfume
exala em orgasmo
a memória
de teu corpo
enluarado

Calo meu olhar
e guardo a noite
por dentro
sonho:
enfim te encontro



Poema selecionado em concurso e publicado na coletânea "Por um poema de amor", da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro (1995).

 

 

Soares Feitosa, dez anos

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Ruy Vasconcelos

 

 

 

 

 

Delaroche, Hemiciclo da Escola de Belas Artes

 

 

 

 

 

Virgínia Schall


Retrato extrato


Adentro minha face no espelho
Paisagem de sonho, fantasia
Miragem do dia a dia
Realidade vazia
Onde a verdade?

A milênios assim me retrato:
No espaço dos meus olhos, apenas
O traço externo de minha face
Fotografo

A milênios assim me refrato:
Na expressão do meu olhar
A revelação do que eu não vejo,
Projeto

O semblante sem retoque, nas retinas
Estraçalho
Penetro meu rosto por entre os cacos
No caleidoscópio das pupilas
O avesso de minha face
Transparece
Afogo a imago
Afago o ego

Um eco: estou liberta


Menção Honrosa no Concurso de Poesias da Academia de Letras de Araguari - 1980


 

 

 

SB 17.01.2023