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            José Saramago 
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
             
            Discurso perante a Real Academia 
            Sueca:  
             
            De como a Personagem Foi Mestre e 
            o Autor Seu Aprendiz  
             
            Por JOSÉ SARAMAGO  
            Segunda-feira, 7 de Dezembro de 1998  
  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            O homem mais 
            sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. 
            Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha 
            em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, 
            levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se 
            alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus avós 
            maternos, da pequena criação de porcos que, depois do desmame, eram 
            vendidos aos vizinhos da aldeia. Azinhaga de seu nome, na província 
            do Ribatejo. 
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Chamavam-se 
            Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos 
            um e outro. No Inverno, quando o frio da noite apertava ao ponto de 
            a água dos cântaros gelar dentro da casa, iam buscar às pocilgas os 
            bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixo das 
            mantas grosseiras, o calor dos humanos livrava os animaizinhos do 
            enregelamento e salvava-os de uma morte certa.  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Ainda que 
            fossem gente de bom carácter, não era por primores de alma 
            compassiva que os dois velhos assim procediam: o que os preocupava, 
            sem sentimentalismos nem retóricas, era proteger o seu ganha-pão, 
            com a naturalidade de quem, para manter a vida, não aprendeu a 
            pensar mais do que o indispensável. Ajudei muitas vezes este meu avô 
            Jerónimo nas suas andanças de pastor, cavei muitas  
            vezes a terra do quintal anexo à casa e cortei lenha para o lume, 
            muitas vezes, dando voltas e voltas à grande roda de ferro que 
            accionava a bomba, fiz subir a água do poço comunitário e a 
            transportei ao ombro, muitas vezes, às escondidas dos guardas das 
            searas, fui com a minha avó, também pela madrugada, munidos de 
            ancinho, panal e corda, a recolher nos restolhos a palha solta que 
            depois haveria de servir para a cama do gado. E algumas vezes, em 
            noites quentes de Verão, depois da ceia, meu avô me disse: "José, 
            hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira". Havia outras duas
             
            figueiras, mas aquela, certamente por ser a maior, por ser a mais 
            antiga, por ser a de sempre, era, para toda as pessoas da casa, a 
            figueira. Mais ou menos por antonomásia, palavra erudita que só 
            muitos anos depois viria a conhecer e a saber o que significava... 
            No meio da paz nocturna, entre os ramos altos da árvore, uma estrela 
            aparecia-me, e depois, lentamente, escondia-se por trás de uma 
            folha, e, olhando eu noutra direcção, tal como um rio correndo em 
            silêncio pelo céu côncavo, surgia a claridade opalescente da Via 
            Láctea, o Caminho de Santiago, como ainda lhe chamávamos na aldeia. 
            Enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e 
            os casos que o meu avô ia contando: lendas, aparições,  
            assombros, episódios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e 
            pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias que 
            me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava. 
            Nunca pude saber se ele se calava quando se apercebia de que eu 
            tinha adormecido, ou se continuava a falar para não deixar em meio a 
            resposta à pergunta que invariavelmente lhe fazia nas pausas mais 
            demoradas que ele calculadamente metia no relato: "E depois?". 
            Talvez repetisse as histórias para si próprio, quer fosse para não 
            as esquecer, quer fosse para as enriquecer com peripécias novas. 
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Naquela idade 
            minha e naquele tempo de nós todos, nem será preciso dizer que eu 
            imaginava que o meu avô Jerónimo era senhor de toda a ciência do 
            mundo. Quando, à primeira luz da manhã, o canto dos pássaros me 
            despertava, ele já não estava ali, tinha saído para o campo com os 
            seus animais, deixando-me a dormir. Então  
            levantava-me, dobrava a manta e, descalço (na aldeia andei sempre
             
            descalço até aos 14 anos), ainda com palhas agarradas ao cabelo, 
            passava da parte cultivada do quintal para a outra onde se 
            encontravam as pocilgas, ao lado da casa. Minha avó, já a pé antes 
            do meu avô, punha-me na frente uma grande tigela de café com pedaços 
            de pão e perguntava-me se tinha dormido bem. Se eu lhe contava algum 
            mau sonho nascido das histórias do avô, ela sempre me tranquilizava: 
            "Não faças caso, em sonhos não há firmeza". Pensava então que a 
            minha avó, embora fosse também uma mulher muito sábia, não alcançava 
            as alturas do meu avô, esse que, deitado debaixo da figueira, tendo 
            ao lado o neto José, era capaz de pôr o universo em movimento apenas 
            com duas palavras. Foi só muitos anos depois, quando o meu avô já se 
            tinha ido deste mundo e eu era um homem feito, que vim a compreender 
            que a avó, afinal, também acreditava em sonhos.  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Outra coisa não 
            poderia significar que, estando ela sentada, uma noite, à porta da 
            sua pobre casa, onde então vivia sozinha, a olhar as estrelas 
            maiores e menores por cima da sua cabeça, tivesse dito estas 
            palavras: "O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer". 
            Não disse medo de morrer, disse pena de morrer, como se a vida de 
            pesado e contínuo trabalho que tinha sido a sua estivesse, naquele 
            momento quase final, a receber a graça de uma suprema e derradeira 
            despedida, a consolação da beleza revelada. Estava sentada à porta 
            de uma casa como não creio que tenha havido alguma outra no mundo 
            porque nela viveu gente capaz de dormir com porcos como se fossem os 
            seus próprias filhos, gente que tinha pena de ir-se da vida só 
            porque o mundo era bonito, gente, e este foi o meu avô Jerónimo, 
            pastor e contador de histórias, que, ao pressentir que a morte o 
            vinha buscar, foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma por 
            uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tornaria 
            a ver.  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Muitos anos 
            depois, escrevendo pela primeira vez sobre este meu avô Jerónimo e 
            esta minha avó Josefa (faltou-me dizer que ela tinha sido, não dizer 
            de quantos a conheceram quando rapariga, de uma formosura invulgar), 
            tive consciência de que estava a transformar as pessoas comuns que 
            eles haviam sido em personagens literárias e que essa era, 
            provavelmente, a maneira de não os esquecer, desenhando e tornando a 
            desenhar os seus rostos com o lápis sempre cambiante da recordação, 
            colorindo e iluminando a monotonia de um quotidiano baço e sem 
            horizontes, como quem vai recriando, por cima do instável mapa da 
            memória, a irrealidade sobrenatural do país em que decidiu passar a 
            viver. A mesma atitude de espírito que, depois de haver evocado a 
            fascinante e enigmática figura de um certo bisavô berbere, me 
            levaria a descrever mais ou menos nestes termos um velho retrato 
            (hoje já com quase oitenta anos) onde os meus pais aparecem: "Estão 
            os dois de pé, belos e jovens, de frente para o fotógrafo, mostrando 
            no rosto uma expressão de solene gravidade que é talvez temor diante 
            da câmara, no instante em que a objectiva vai fixar, de um e de 
            outro, a imagem que nunca mais tornarão a ter, porque o dia seguinte 
            será implacavelmente outro dia... Minha mãe apoia o cotovelo direito 
            numa alta coluna e segura na mão esquerda, caída ao longo do corpo, 
            uma flor. Meu pai passa o braço por trás das costas de minha mãe e a 
            sua mão calosa aparece sobre o ombro dela como uma asa. Ambos pisam 
            acanhados um tapete de ramagens. A tela que serve de fundo postiço 
            ao retrato mostra umas difusas e incongruentes arquitecturas 
            neoclássicas". E terminava: "Um dia tinha de chegar em que contaria 
            estas coisas. Nada disto tem importância, a não ser para mim. Um avô 
            berbere, vindo do Norte de África, um outro avô pastor de porcos, 
            uma avó maravilhosamente bela, uns pais graves e formosos, uma flor 
            num retrato - que outra genealogia pode importar-me? a que melhor 
            árvore me encontraria?"  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Escrevi estas 
            palavras há quase trinta anos, sem outra intenção que não fosse 
            reconstituir e registar instantes da vida das pessoas que me geraram 
            e que mais perto de mim estiveram, pensando que nada mais precisaria 
            de explicar para que se soubesse de onde venho e de que materiais se 
            fez a pessoa que comecei por ser e esta em que pouco a pouco me vim 
            tornando. Afinal, estava enganado, a biologia não determina tudo, e, 
            quanto à genética, muito misteriosos deverão ter sido os seus 
            caminhos para terem dado uma volta tão larga... À minha árvore 
            genealógica (perdôe-se-me a presunção de a designar assim, sendo tão 
            minguada a substância da sua seiva) não faltavam apenas alguns 
            daqueles ramos que o tempo e os sucessivos encontros da vida vão 
            fazendo romper do tronco central, também lhe faltava quem ajudasse 
            as suas raízes a penetrar até às camadas subterrâneas mais fundas, 
            quem apurasse a consistência e o sabor dos seus frutos, quem 
            ampliasse e robustecesse a sua copa para fazer dela abrigo de aves 
            migrantes e amparo de ninhos. Ao pintar os meus pais e os meus avós 
            com tintas de literatura, transformando-os, de simples pessoas de 
            carne e osso que haviam sido, em personagens novamente e de outro 
            modo construtoras da minha vida, estava, sem o perceber, a traçar o 
            caminho por onde as personagens que viesse a inventar, as outras, as 
            efectivamente literárias, iriam fabricar e trazer-me os materiais e 
            as ferramentas que, finalmente, no bom e no menos bom, no bastante e 
            no insuficiente, no ganho e no perdido, naquilo que é defeito mas 
            também naquilo que é excesso, acabariam por fazer de mim a pessoa em 
            que hoje me reconheço: criador dessas personagens, mas, ao mesmo 
            tempo, criatura delas. Em certo sentido poder-se-á mesmo dizer que, 
            letra a letra, palavra a palavra, página  
            a página, livro a livro, tenho vindo, sucessivamente, a implantar no 
            homem que fui as personagens que criei. Creio que, sem elas, não 
            seria a pessoa que hoje sou, sem elas talvez a minha vida não 
            tivesse logrado ser mais do que um esboço impreciso, uma promessa 
            como tantas outras que de promessa não conseguiram passar, a 
            existência de alguém que talvez pudesse ter sido e afinal não tinha 
            chegado a ser.  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Agora sou capaz 
            de ver com clareza quem foram os meus mestres de vida, os que mais 
            intensamente me ensinaram o duro ofício de viver, essas dezenas de 
            personagens de romance e de teatro que neste momento vejo desfilar 
            diante dos meus olhos, esses homens e essas mulheres feitos de papel 
            e tinta, essa gente que eu acreditava ir guiando de acordo com as 
            minhas conveniências de narrador e obedecendo à minha vontade de 
            autor, como títeres articulados cujas acções não pudessem ter mais 
            efeito em mim que o peso suportado e a tensão dos fios com que os 
            movia. Desses  
            mestres, o primeiro foi, sem dúvida, um medíocre pintor de retratos 
            que designei simplesmente pela letra H., protagonista de uma 
            história a que creio razoável chamar de dupla iniciação (a dele, mas 
            também, de algum modo, do autor do livro), intitulada "Manual de 
            Pintura e Caligrafia", que me ensinou a honradez elementar de 
            reconhecer e acatar, sem ressentimento nem frustração, os meus 
            próprios limites: não podendo nem ambicionando aventurar-me para 
            além do meu pequeno terreno de cultivo, restava-me a possibilidade 
            de escavar para o fundo, para baixo, na direcção das raízes.  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            As minhas, mas 
            também as do mundo, se podia permitir-me uma ambição tão desmedida. 
            Não me compete a mim, claro está, avaliar o mérito do resultado dos 
            esforços feitos, mas creio ser hoje patente que todo o meu trabalho, 
            de aí para diante, obedeceu a esse propósito e a esse princípio.  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Vieram depois 
            os homens e as mulheres do Alentejo, aquela mesma irmandade de 
            condenados da terra a que pertenceram o meu avô Jerónimo e a minha 
            avó Josefa, camponeses rudes obrigados a alugar a força dos braços a 
            troco de um salário e de condições de trabalho que só mereceriam o 
            nome de infames, cobrando por menos que nada a vida a que os seres 
            cultos e civilizados que nos prezamos de ser apreciamos chamar, 
            segundo as ocasiões, preciosa, sagrada ou sublime. Gente popular que 
            conheci, enganada por uma Igreja tão cúmplice como beneficiária do 
            poder do Estado e dos terratenentes latifundistas, gente 
            permanentemente vigiada pela policia, gente, quantas e quantas 
            vezes, vítima inocente das arbitrariedades de uma justiça falsa. 
            Três gerações de uma família de camponeses, os Mau-Tempo, desde o 
            começo do século até a Revolução de Abril de 1974  
            que derrubou a ditadura, passam nesse romance a que dei o título de
             
            "Levantado do Chão", e foi com tais homens e mulheres do chão  
            levantados, pessoas reais primeiro, figuras de ficção depois, que 
            aprendi a ser paciente, a confiar e a entregar-me ao tempo, a esse 
            tempo que simultaneamente nos vai construindo e destruindo para de 
            novo nos construir e outra vez nos destruir. Só não tenho a certeza 
            de haver assimilado de maneira satisfatória aquilo que a dureza das 
            experiências tornou virtude nessas mulheres e nesses homens: uma 
            atitude naturalmente estóica perante a vida. Tendo em conta, porém, 
            que a lição recebida, passados mais de vinte anos, ainda permanece 
            intacta na minha memória, que todos os dias a sinto presente no meu 
            espírito como uma insistente convocatória, não perdi, até agora, a 
            esperança de me vir a tornar um pouco mais merecedor da grandeza dos 
            exemplos de dignidade que me foram propostos na imensidão das 
            planícies do Alentejo. O tempo o dirá.  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Que outras 
            lições poderia eu receber de um português que viveu no século XVI 
            que compôs as "Rimas" e as glórias, os naufrágios e os desencantos 
            pátrios de "Os Lusíadas", que foi um génio poético absoluto, o maior 
            da nossa literatura, por muito que isso pese a Fernando Pessoa, que 
            a si mesmo se proclamou como o Super-Camões dela? Nenhuma lição que 
            estivesse à minha medida, nenhuma lição que eu fosse capaz de 
            aprender, salvo a mais simples que me poderia ser oferecida pelo 
            homem Luís Vaz de Camões na sua estreme humanidade, por exemplo, a 
            humildade orgulhosa de um autor que vai chamando a todas as portas à 
            procura de quem esteja  
            disposto a publicar-lhe o livro que escreveu, sofrendo por isso o 
            desprezo dos ignorantes de sangue e de casta, a indiferença 
            desdenhosa de um rei e da sua companhia de poderosos, o escárnio com 
            que desde sempre o mundo tem recebido a visita dos poetas, dos 
            visionários e dos loucos. Ao menos uma vez na vida todos os autores 
            tiveram ou terão de ser Luís de Camões, mesmo se não escreverem as 
            redondilhas de "Sôbolos rios"... Entre fidalgos da corte e censores 
            do Santo Ofício, entre os amores de antanho e as desilusões da 
            velhice prematura, entre a dor de escrever e a alegria de ter 
            escrito, foi a este homem doente que regressa pobre da Índia, aonde 
            muitos só iam para enriquecer, foi a este soldado cego de um olho e 
            golpeado na alma, foi a este sedutor sem fortuna que não voltará 
            nunca mais a pertubar os sentidos das damas do paço, que eu pus a 
            viver no palco da peça teatro chamada "Que farei com este livro?", 
            em cujo final ecoa uma outra pergunta, aquela que importa 
            verdadeiramente, aquela que nunca saberemos se alguma vez chegará a 
            ter resposta suficiente: "Que fareis com este livro?". Humildade 
            orgulhosa, foi essa de levar debaixo do braço uma obra-prima e 
            ver-se injustamente enjeitado pelo mundo. Humildade orgulhosa 
            também, e obstinada, esta de querer saber para que irão servir 
            amanhã os livros que andamos a escrever hoje, e logo duvidar que 
            consigam perdurar longamente (até quando?) as razões 
            tranquilizadoras que acaso nos  
            estejam a ser dadas ou que estejamos a dar a nós próprios. Ninguém
             
            melhor se engana que quando consente que o enganem os outros...  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Aproximam-se 
            agora um homem que deixou a mão esquerda na guerra e uma mulher que 
            veio ao mundo com o misterioso poder de ver o que há por trás da 
            pele das pessoas. Ele chama-se Baltasar Mateus e tem a alcunha de 
            Sete-Sóis, a ela conhecem-na pelo nome de Blimunda, e também pelo 
            apodo de Sete-Luas que lhe foi acrescentado depois, porque está 
            escrito que onde haja um sol terá de haver uma lua, e que só a 
            presença conjunta e harmoniosa de um e do outro tornará habitável, 
            pelo amor, a terra. Aproxima-se também um padre jesuíta chamado 
            Bartolomeu que inventou uma máquina capaz de subir ao céu e voar sem 
            outro combustível que não seja a vontade humana, essa que, segundo 
            se vem dizendo, tudo pode, mas  
            que não pôde, ou não soube, ou não quis, até hoje, ser o sol e a lua 
            da simples bondade ou do ainda mais simples respeito. São três 
            loucos portugueses do século XVIII, num tempo e num país onde 
            floresceram as superstições e as fogueiras da Inquisição, onde a 
            vaidade e a megalomania de um rei fizeram erguer um convento, um 
            palácio e uma basílica que haveriam de assombrar o mundo exterior, 
            no caso pouco provável de esse mundo ter olhos bastantes para ver 
            Portugal, tal como sabemos que os tinha Blimunda para ver o que 
            escondido estava... E também se aproxima uma multidão de milhares e 
            milhares de homens com as mãos sujas e calosas, com o corpo exausto 
            de haver levantado, durante anos a fio, pedra a pedra, os muros 
            implacáveis do convento, as salas enormes do palácio, as colunas e 
            as pilastras, as aéreas torres sineiras, a cúpula da basílica 
            suspensa sobre o vazio. Os sons que estamos a ouvir são do cravo de 
            Domenico Scarlatti, que não sabe se deve rir ou chorar... Esta é a 
            história de "Memorial do Convento", um livro em que o aprendiz de 
            autor, graças ao que lhe vinha sendo ensinado desde o antigo tempo 
            dos seus avós Jerónimo e Josefa, já conseguiu escrever palavras como 
            estas, donde não está ausente alguma poesia: "Além da conversa das 
            mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita. Mas são 
            também os sonhos que lhe fazem uma coroa de luas, por isso o céu é o 
            resplendor que há dentro da cabeça dos homens, se não é a cabeça dos 
            homens o próprio e único céu". Que assim seja.  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            De lições de 
            poesia sabia já alguma coisa o adolescente, aprendidas nos seus 
            livros de texto quando, numa escola de ensino profissional de 
            Lisboa, andava a preparar-se para o ofício que exerceu no começo da 
            sua vida de trabalho: o de serralheiro mecânico. Teve também bons 
            mestres de arte poética nas longas horas nocturnas que passou em 
            bibliotecas públicas, lendo ao acaso de encontros e de catálogos, 
            sem orientação, sem alguém que o aconselhasse com o mesmo assombro 
            criador do navegante que vai inventando cada lugar que descobre. Mas 
            foi na biblioteca da escola industrial que "O Ano da Morte de 
            Ricardo Reis" começou a ser escrito... Ali encontrou um dia o jovem 
            aprendiz de serralheiro (teria então 17 anos) uma revista - "Atena" 
            era o título - em que havia poemas assinados com aquele nome e, 
            naturalmente, sendo tão mau conhecedor da cartografia  
            literária do seu país pensou que existia em Portugal um poeta que se
             
            chamava assim: Ricardo Reis. Não tardou muito tempo, porém, a saber 
            que o poeta propriamente dito tinha sido um tal Fernando Nogueira 
            Pessoa que assinava poemas com nomes de poetas inexistentes nascidos 
            na sua cabeça e a que chamava heterónimos, palavra que não constava 
            dos dicionários da época, por isso custou tanto trabalho ao aprendiz 
            de letras saber o que ela significava. 
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Aprendeu de cor 
            muitos poemas de Ricardo Reis ("Para ser grande sê inteiro/Põe 
            quanto és no mínimo que fazes"), mas não podia resignar-se, apesar 
            de tão novo e ignorante, que um espírito superior tivesse podido 
            conceber, sem remorso este verso cruel: "Sábio é o que se contenta 
            com o espectáculo do mundo". Muito, muito tempo depois, o aprendiz, 
            já de cabelos brancos e um pouco mais sábio das suas próprias 
            sabedorias, atreveu-se a escrever um romance para mostrar ao poeta 
            das "Odes" alguma coisa do que era o espectáculo do mundo nesse ano 
            de 1936 em que o tinha posto a viver os seus últimos dias: a 
            ocupação da Renânia pelo exército nazista, a guerra de Franco contra 
            a República espanhola, a criação por Salazar das milícias fascistas 
            portuguesas. Foi como se estivesse a  
            dizer-lhe: "Eis o espectáculo do mundo, meu poeta das amarguras 
            serenas e do cepticismo elegante. Disfruta, goza, comtempla, já que 
            estar sentado é a tua sabedoria..."  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            "O Ano da Morte 
            de Ricardo Reis" terminava com umas palavras  
            melancólicas: "Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera". 
            Portanto, não haveria mais descobrimentos para Portugal, apenas como 
            destino uma espera infinita de futuros nem aos menos inimagináveis: 
            só o fado do costume, a saudade de sempre, e pouco mais... Foi então 
            que o aprendiz imaginou que talvez houvesse ainda uma maneira de 
            tornar a lançar os barcos à água, por exemplo, mover a própria terra 
            e pô-la a navegar pelo mar fora. Fruto imediato do ressentimento 
            colectivo português pelos desdéns históricos de Europa (mais exacto 
            seria dizer fruto de um meu ressentimento pessoal...), o romance que 
            então escrevi - "Jangada de Pedra" - separou do continente europeu 
            toda a Península Ibérica para a transformar numa grande ilha 
            flutuante, movendo-se sem remos, nem velas, nem hélices em direcção 
            ao Sul do mundo, "massa de pedra e terra, coberta de cidades, 
            aldeias, rios, bosques, fábricas, matos bravios, campos cultivados, 
            com a sua gente e os seus animais", a caminho de uma utopia nova: o 
            encontro cultural dos povos peninsulares com os povos do outro lado 
            do Atlântico, desafiando assim, a tanto a minha estratégia se 
            atreveu, o domínio sufocante que os Estados Unidos da América do 
            Norte vêm exercendo naquelas paragens... Uma visão duas vezes 
            utópica entenderia esta ficção política como uma metáfora muito mais 
            géneros e humana: que a Europa, toda ela, deverá deslocar-se para o 
            Sul, a fim de, em desconto dos seus abusos colonialistas antigos e 
            modernos, ajudar a equilibrar o mundo. Isto é, Europa finalmente 
            como ética. As personagens da "Jangada de Pedra" - duas mulheres , 
            três homens e um cão - viajam incansavelmente através da península 
            enquanto ela vai sulcando o oceano. O mundo está a mudar e eles 
            sabem que devem procurar em si mesmos as pessoas novas em que irão 
            tornar-se (sem esquecer o cão, que não é um cão como os outros...). 
            Isso lhes basta.  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Lembrou-se 
            então o aprendiz de que em tempos da sua vida havia feito algumas 
            revisões de provas de livros e que se na "Jangada de Pedra" tinha, 
            por assim dizer, revisado o futuro, não estaria mal que revisasse 
            agora o passado, inventando um romance que se chamaria "História do 
            Cerco de Lisboa", no qual um revisor, revendo um livro do mesmo 
            título, mas de História, e cansado de ver como a dita História cada 
            vez é menos capaz de surpreender, decide pôr no lugar de um "sim" um 
            "não", subvertendo a autoridade das "verdades históricas". Raimundo 
            Silva, assim se chama o revisor, é um homem simples, vulgar, que só 
            se distingue da maioria por acreditar que todas as coisas têm o seu 
            lado visível e o seu lado invisível e que não saberemos nada delas 
            enquanto não lhes tivermos dado a volta completa. De isso 
            precisamente se trata numa conversa que ele tem com o historiador. 
            Assim: "Recordo-lhe que os revisores já viram muito de literatura e 
            vida, O meu livro, recordo-lhe eu, é de história, Não sendo 
            propósito meu apontar outras contradições, senhor doutor, em minha 
            opinião tudo quanto não for vida é literatura, A história também. A 
            história sobretudo, sem querer ofender, E a pintura, e a música, A 
            música anda a resistir desde que nasceu, ora vai, ora vem, quer 
            livrar-se da palavra, suponho que por inveja, mas regressa sempre à 
            obediência, E a pintura, Ora, a pintura não é mais do que literatura 
            feita com pincéis, Espero que não esteja esquecido de que a 
            humanidade começou a pintar muito antes de  
            saber escrever, Conhece o rifão, se não tens cão caça com o gato, 
            ou, por outras palavras, quem não pode escrever, pinta, ou desenha, 
            é o que fazem as crianças, O que você quer dizer, por outras 
            palavras, é que a literatura já existia antes de ter nascido, Sim 
            senhor, como o homem, por outras palavras, antes de o ser já o era, 
            Quer-me parecer que você errou a vocação, devia era ser historiador, 
            Falta-me o preparo, senhor doutor, que pode um simples homem fazer 
            sem o preparo, muita sorte já foi ter vindo ao mundo com a genética 
            arrumada, mas, por assim dizer, em estado bruto, e depois não mais 
            polimento que primeiras letras que ficaram únicas, Podia 
            apresentar-se como autodidacta, produto do seu próprio e digno 
            esforço,  
            não é vergonha nenhuma, antigamente a sociedade tinha orgulho nos 
            seus autodidactas, Isso acabou, veio o desenvolvimento e acabou, os 
            autodidactas são vistos com maus olhos, só os que escrevem versos e 
            histórias para distrair é que estão autorizados a ser autodidactas, 
            mas eu para a criação literária nunca tive jeito, Então, meta-se a 
            filósofo, O senhor doutor é um humorista, cultiva a ironia, chego a 
            perguntar-me como se dedicou à história, sendo ela tão grave e 
            profunda ciência, Sou irónico apenas na vida real, Bem me queria a 
            mim parecer que a história não é a vida real, literatura, sim, e 
            nada mais, Mas a história foi vida real no tempo em que ainda não se 
            lhe poderia chamar história, Então o senhor doutor acha que a 
            história e a vida real, Acho, sim, Que a história foi vida real, 
            quero dizer, Não tenho a menor dúvida, Que seria de nós se o 
            deleatur que tudo apaga não existisse, suspirou o revisor". Escusado 
            será acrescentar que o aprendiz aprendeu com Raimundo Silva a lição 
            da dúvida. Já não era sem tempo.  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Ora, foi 
            provavelmente esta aprendizagem da dúvida que o levou, dois anos 
            mais tarde, a escrever "O Evangelho segundo Jesus Cristo". É certo, 
            e ele tem-no dito, que as palavras do título lhe surgiram por efeito 
            de uma ilusão de óptica, mas é legítimo interrogar-nos se não teria 
            sido o sereno exemplo do revisor o que, nesse meio tempo, lhe andou 
            a preparar o terreno de onde haveria de brotar o novo romance. Desta 
            vez não se tratava de olhar por trás das páginas do "Novo 
            Testamento" à procura de contrários, mas sim de iluminar com uma luz 
            rasante a superfície delas, como se faz a uma pintura, de modo a 
            fazer-lhe ressaltar os relevos, os sinais de passagem, a obscuridade 
            das depressões. Foi assim que o aprendiz, agora rodeado de 
            personagens evangélicas, leu, como se fosse a primeira vez, a 
            descrição da matança dos Inocentes, e, tendo lido, não compreendeu. 
            Não compreendeu que já pudesse haver mártires numa religião que 
            ainda teria de esperar trinta anos para que o seu fundador 
            pronunciasse a primeira palavra dela, não compreendeu que não 
            tivesse salvado a vida das crianças de Belém precisamente a única 
            pessoa que o poderia ter feito, não compreendeu a ausência, em José, 
            de um sentimento mínimo de responsabilidade, de remorso, de culpa, 
            ou sequer de curiosidade, depois de voltar do Egipto com a família. 
            Nem se poderá argumentar, em defesa da causa, que foi  
            necessário que as crianças de Belém morressem para que pudesse 
            salvar-se a vida de Jesus: o simples senso comum, que a todas as 
            coisas, tanto às humanas como às divinas, deveria presidir, aí está 
            para nos recordar que Deus não enviaria o seu Filho à terra, de mais 
            a mais com o encargo de redimir os pecados da humanidade, para que 
            ele viesse a morrer aos dois anos de idade degolado por um soldado 
            de Herodes... Nesse "Evangelho", escrito pelo aprendiz com o 
            respeito que merecem os grandes dramas, José será consciente da sua 
            culpa, aceitará o remorso em castigo da falta que cometeu e 
            deixar-se-á levar à morte quase sem resistência, como se isso lhe 
            faltasse ainda para liquidar as suas contas com o mundo. O 
            "Evangelho" do aprendiz não é, portanto, mais uma lenda edificante 
            de bem-aventurados e de deuses, mas a história de uns quantos seres 
            humanos sujeitos a um poder contra o qual lutam, mas que não podem 
            vencer. Jesus, que herdará as sandálias com que o pai tinha pisado o 
            pó dos caminhos da terra, também herdará dele o sentimento trágico 
            da responsabilidade e da culpa que nunca mais o abandonará, nem 
            mesmo quando levantar a voz do alto da cruz:  
            "Homens, perdoai-lhe porque ele não sabe o que fez", por certo  
            referindo-se ao Deus que o levara até ali, mas quem sabe se 
            recordando ainda, nessa agonia derradeira, o seu pai autêntico, 
            aquele que, na carne e no sangue, humanamente o gerara. Como se vê, 
            o aprendiz já tinha feito uma larga viagem quando no seu herético 
            "Evangelho" escreveu as últimas palavras do diálogo no templo entre 
            Jesus e o escriba: "A culpa é um lobo que come o filho depois de ter 
            devorado o pai, disse o escriba, Esse lobo de que falas já comeu o 
            meu pai, disse Jesus, Então só falta que te devore a ti, E tu, na 
            tua vida, foste comido, ou devorado, Não apenas comido e devorado, 
            mas vomitado, respondeu o escriba".  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Se o imperador 
            Carlos Magno não tivesse estabelecido no Norte da Alemanha um 
            mosteiro, se esse mosteiro não tivesse dado origem à cidade de 
            Münster, se Münster não tivesse querido assinalar os mil e duzentos 
            anos da sua fundação com uma ópera sobre a pavorosa guerra que 
            enfrentou no século XVI protestantes anabaptistas e católicos, o 
            aprendiz não teria escrito a peça de teatro a que chamou "In Nomine 
            Dei". Uma vez mais, sem outro auxílio que a pequena luz da sua 
            razão, o aprendiz teve de penetrar no obscuro labirinto das crenças 
            religiosas, essas que com tanta facilidade levam os seres humanos a 
            matar e a deixar-se matar. E o que viu foi novamente a máscara 
            horrenda da intolerância, uma intolerância que em Münster atingiu o 
            paroxismo demencial, uma intolerância que insultava a  
            própria causa que ambas as partes proclamavam defender. Porque não 
            se tratava de uma guerra em nome de dois deuses inimigos, mas de uma 
            guerra em nome de um mesmo deus. Cegos pelas suas próprias crenças, 
            os anabaptistas e os católicos de Münster não foram capazes de 
            compreender a mais clara de todas as evidências: no dia do Juízo 
            Final, quando uns e outros se apresentarem a receber o prémio ou o 
            castigo que mereceram as suas acções na terra, Deus, se em suas 
            decisões se rege por algo parecido à lógica humana, terá de receber 
            no paraíso tanto a uns como aos outros, pela simples razão de que 
            uns e outros nele crêem. A terrível carnificina de Münster ensinou 
            ao aprendiz que, ao contrário do que prometeram, as religiões nunca 
            serviram para aproximar os homens, e que a mais absurda de todas as 
            guerras é uma guerra religiosa, tendo em consideração que Deus não 
            pode, ainda que o quisesse, declarar guerra a si próprio...  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Cegos. O 
            aprendiz pensou: "Estamos cegos", e sentou-se a escrever o "Ensaio 
            sobre a Cegueira" para recordar a quem o viesse a ler que usamos 
            perversamente a razão quando humilhamos a vida, que a dignidade do 
            ser humano é todos os dias insultada pelos poderosos do nosso mundo, 
            que a mentira universal tomou o lugar das verdades plurais, que o 
            homem deixou de respeitar-se a si mesmo quando perdeu o respeito que 
            devia ao seu semelhante. Depois, o aprendiz, como se tentasse 
            exorcizar os monstros engendrados pela cegueira da razão, pôs-se a 
            escrever a mais simples de todas as histórias: uma pessoa que vai à 
            procura de outra pessoa apenas
            porque compreendeu que a vida não tem nada mais importante que pedir 
            a um ser humano. O livro chama-se "Todos os Nomes". Não escritos, 
            todos os nossos nomes estão lá. Os nomes dos vivos e os nomes dos 
            mortos.  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Termino. A voz que leu estas páginas quis ser o eco das vozes 
            conjuntas das minhas personagens. Não tenho, a bem dizer, mais voz 
            que a voz que elas tiverem. Perdoai-me se vos pareceu pouco isto que 
            para mim é tudo.  
              
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
             
            Remetido por Alicia: 
            alicevilafabiao@mail.telepac.pt 
             
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
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