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Gerana Damulakis


Pantanal enquanto poesia

in A Tarde, 06.03.1999

 

Nos anos 80, Millôr Fernandes começou a mostrar ao público, em suas colunas nas revistas Veja e Isto é e no Jornal do Brasil, a poesia de Manoel de Barros. Outros fizeram o mesmo: Fausto Wolff, Antônio Houaiss, entre eles. Os intelectuais iniciaram, através de tanta recomendação, o conhecimento dos poemas que a Civilização Brasileira publicou, em quase a sua totalidade, sob o título de Gramática expositiva do chão, em 1990. Atualmente a Record está reeditando todos os livros separadamente, além deste último, lançado em primeira mão, Retrato do artista quando coisa, com desenhos de Millôr Fernandes.

Nascido em 1916, em Cuiabá, Manoel de Barros morou no Rio de Janeiro até 1949, quando, tornando-se fazendeiro, assumiu de vez o Pantanal. Mesmo residindo longe do famoso eixo Rio-São Paulo, na pacata Campo Grande, o poeta tem um prestígio tão grande entre a intelectualidade sulista que, talvez, tal preponderância esteja ficando maior que a sua própria poesia. Mas o que diz este Manoel? Com uma disposição simbólica muito particular, só se pode ler Manoel de Barros transformando as imagens habituais para que possam caber dentro de um outro mundo, conduzido pela atrativa linguagem imposta pelo autor. Os temas são a infância, a natureza e o Pantanal, registrados no universo verbal que lhes confere sentidos diversos, sentidos oníricos, por vezes fantásticos.

Com 14 livros publicados, todos de poesia, desde 1937, e muito aclamado pela crítica, certamente o autor da Gramática... ficará na história da poesia nacional ocupando um lugar semelhante ao que ocupa Clarice Lispector na prosa brasileira, seja pelo que há de comum entre os dois escritores, nas suas lutas com as palavras para que digam além do que elas podem, seja pela proposta movida por uma intensa insatisfação quanto à ordem natural das coisas.

Atentando para frases do tipo: “Eu escrevo com o corpo/ Poesia não é para compreender, mas para incorporar”, em Arranjos para assobio, ou para a pequena estrofe: “Caracol é uma casa que se anda/ E a lesma é um ser que se reside”, do Retrato..., tem-se, de saída, a originalidade pela qual o vate do Pantanal seduziu seus aficionados.

O que faz Clarice com a sedução da palavra parece ser o que faz Manoel de Barros com a poesia verbal. Estilo feito de invenções e de achados, substantivos são adjetivados, adjetivos e verbos são substantivados, violenta-se a regência verbal e neologismos ornamentam os versos, ou melhor, as frases. Como saber qual dos dois escritores disse: “Ri de novo, em leves murmúrios como os da água” e “estupefato como uma parede branca ao luar”. Ambas são frases de Clarice Lispector. É preciso ir mais adiante um pouco para constatar o paralelo: “O silêncio piscava nos vaga-lumes (...) os vaga-lumes abriam pontos lívidos na penumbra”. Mais uma vez, Clarice Lispector. Agora estas frases: “Os silêncios me praticam (...) Sou livre para o desfrute das aves (...) Quero cristianizar as águas”, e mais estas: “Só não desejo cair em sensatez./ Não quero a boa razão das coisas./ Quero o feitiço das palavras”. De Manoel de Barros, do Retrato...

O estilo de achados - flagrantes poéticos e iluminações - acaba comovendo mais ainda quando presente no gênero que lhe fica melhor, que é a poesia, portanto, daí fez Manoel de Barros sua poética. Primeiramente é encantador, mas o risco é o de que possa descair em verbalismo, do que, vale ressaltar, Lispector livrou-se de tal perigo iminente devido ao gênero por ela praticado.

Uma outra pedra de toque da poesia de Manoel é o efeito da frase. Muitos, os que torcem o nariz para sua obra, rotulam-no de mero “frasista”. Pode-se dizer e classificar o poeta de vários modos, até de ecologista da palavra, mas é certo que ele chegou num momento que parecia totalmente sem perspectivas de algo diferente daquele “grafismo”, já tão longa e fartamente em moda, e deslumbrou. Agora, com este Retrato do artista quando coisa, a “coisa” amaneirou-se, já não encanta tanto, talvez ainda se encontre uma frase aqui como: “Morrer é uma coisa indestrutível”, outras ali como: “E por não ser contaminada de contradições/ A linguagem dos pássaros/ Só produz gorjeios”. Enfim, resta um delta de, senão arrebatamento pela leitura, admiração por certos momentos mais “inspirados”: “Que hei de fazer se de repente a manhã voltar?/ Que hei de fazer?/ - Dormir, talvez chorar”.

 



Manoel de Barros
Página inicial de Manoel de Barros
 

 

 

Um esboço de Da Vinci

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Aníbal Beça