Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

Exilado interior (I)

Jornal do Brasil
14.01.2006

Bento Munhoz da Rocha Neto (1905-1973) tinha 25 anos quando a Revolução de 1930 o alijou para o ostracismo, juntamente com a família, os amigos e o grupo político a que pertenciam. A bem chamada República Velha extingüiu-se por falência generalizada de todos os órgãos, o que, no caso do Paraná, foi particularmente catastrófico. Ao assumir o governo revolucionário em 1932, o interventor Manoel Ribas lançou o libelo acusatório, muitas vezes repetido nos anos seguintes: “A situação econômica e financeira deste estado atingiram as cifras de 124,4 mil contos de réis e 82,6 mil contos de réis; o funcionalismo público com seus vencimentos atrasados em nove meses e as demais obrigações do Tesouro, inclusive o serviço de juros e o resgate de apólices sorteadas, absolutamente suspensos. Essas dívidas assoberbantes, o caos financeiro, a desconfiança, e o descrédito, determinaram o colapso econômico e a conseqüente queda de arrecadação” (Vanderlei Rebelo. Bento Munhoz da Rocha: o intelectual na correnteza política. Curitiba: Imprensa Oficial, 2005).

Essa a herança deixada pela administração Afonso Camargo, último representante da oligarquia que se instalara com as eleições de 1915, oligarquia ao mesmo tempo familial e política: Caetano Munhoz da Rocha e Afonso Camargo, escreve Vanderlei Rebelo, “iniciaram um período de predominância de 15 anos na política paranaense. Associaram para sempre os nomes Munhoz da Rocha e Alves de Camargo à oligarquia política. Só seriam afastados do poder em outubro de 1930, com a revolução varguista” – um episódio envolvido em clima de inacreditável ódio popular, violências pessoais, prisões, sindicâncias e vinganças criminosas: “Com o que ganharam na festa de casamento, Bento e Flora poderiam formar um pecúlio para o resto da vida. Mas a revolução de 1930 não levou de roldão apenas os mandatos de governador de Afonso Camargo, e de senador de Caetano./ Nos dias turbulentos de outubro, vândalos travestidos de revolucionários invadiram a casa alugada em que o casal morava, na rua Buenos Aires, bairro do Batel, e saquearam tudo o que puderam encontrar. A casa fora alugada para eles por Caetano Munhoz, com toda a mobília pronta e uma despensa de fazer inveja às melhores mercearias da cidade. Salvaram-se da fúria ‘revolucionária’ alguns objetos que Flora, preventivamente, deixara sob a guarda de um padre amigo da família. As casas de Caetano e Afonso Camargo também foram saqueadas, sem que a polícia tomasse alguma providência. (...) As famílias Camargo e Munhoz da Rocha, que os adversários políticos identificavam como oligarquias que precisavam ser banidas do poder de forma total e definitiva, tiveram ali seus dias de Romanov”, diz Vanderlei Rebelo em hipérbole retórica.

Mas, como Deus escreve direito por linhas tortas (verdade do folclore brasileiro a que Paul Claudel na condição na condição de poeta católico conferiu o selo de autenticidade teológica), Getúlio Vargas, animal político por excelência, visitou o Paraná quando Munhoz da Rocha Neto era governador eleito em circunstância regeneradoras em tudo semelhantes aos idos de 1930. Eram, agora, dois vencedores face a face: “Munhoz da Rocha manteve um distanciamento político respeitoso do Presidente (...) nunca (?) foi homem de guardar ódios e ressentimentos. Seu relacionamento com o presidente tinha limitações, isso não impediu que acabassem construindo uma amizade”. Na gargalhada espontânea que os uniu em foto incluída no volume, ambos pareciam rir das artimanhas do destino.

Nesses encontros e desencontros, há, entre muitos outros, um daqueles “pequenos fatos significativos” nos quais, segundo Taine, se oculta o sentido profundo da história: “Nesses dias em que ficou em Curitiba, Vargas foi à casa de Munhoz da Rocha para um jantar íntimo com a família do governador (...). Sabia que partilharia da mesa com Flora Munhoz da Rocha, filha de um governador expurgado pela Revolução de 30. Afonso Alves de Camargo não apenas fora deposto do cargo, como precisou se esconder dos revolucionários (...). O encontro tinha os ingredientes completos daqueles momentos cheios de embaraço e constrangimento (...). Vargas quebrou o gelo ao cumprimentar a primeira dama: ‘Minha esposa sempre afirma que é das mais eficientes presidentes (regionais da Legião Brasileira de Assistência), mas nunca me havia dito que era uma vovó tão moça assim”. Grande sedutor! Dona Flora baixou a guarda, escreve Vanderlei Rebelo, transcrevendo a cena das boas maneiras que foi a continuação do diálogo.

Para vencer as almas e os corações, Getúlio Vargas perguntou-lhe a respeito de Afonso Camargo, e, “ao saber que o ex-governador estava na casa, bastante doente, insistiu em vê-lo pessoalmente. Segundo o relato de dona Flora, Vargas abraçou-o demoradamente, lamentando as circunstâncias que os levaram ao distanciamento político e relembrando um banquete que lhes fora oferecido em 1928, quando deixaram o Congresso para assumir os governos do Paraná e do Rio Grande do Sul”. Grande animal político! Para arrematar a situação, o presidente decidiu enfrentá-la: “Quando, dona Flora, em 1930, havia de imaginar que esta noite ia acontecer? Que eu ainda me sentaria à mesa para um jantar de cordialidade?”. Estava tudo apagado, respondeu ela com presença de espírito e alguma condescendente magnanimidade: “tudo passou, já esquecemos, Presidente”.

Por paradoxal que pareça em homem que ocupou os mais altos postos na vida pública, Munhoz da Rocha, ao contrário de Getúlio Vargas, não era um animal político, sendo, antes, um solitário no fundo dele mesmo, como é próprio dos exilados interiores: “não tinha o gosto pela política naquilo que ela tem de cotidiano e de mais maçante no dia-a-dia. Preferia lidar, por exemplo, com a definição de um planejamento para a economia do estado para os futuros cinco anos, o plano rodoviário estadual, a política de migração ou a construção do Centro Cívico (...). ... as linhas mestras do relacionamento com os partidos e com as bancadas na Assembléia Legislativa se assentavam de forma difusa”. Eis um episódio: “ele sabia perfeitamente que a eleição para o senado teria fortes reflexos na sua própria sucessão (...) mas não moveu uma palha em favor de Artur Santos, lançado candidato a senador pela UDN” – ele que, segundo Vanderlei Rebelo, “tinha a alma udenista”, para nada dizer da pouca afinidade com a fauna política e assemelhada que o assediava, nada fazendo para dissimular o tédio com que a encarava. Foi, de fato, “um intelectual na correnteza política”, onde poucas vezes encontrou interlocutores com quem pudesse dialogar.

 
 

 

 

 

20/01/2006