Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

Civilização eletrônica

Jornal do Brasil
26.11.2005

Escrever sobre televisão é, inevitavelmente, repetir lugares-comuns, embora confirmados, de ano para ano, por novas estatísticas e gráficos de desenvolvimento. Exceção feita das idéias realmente enriquecedoras de Marshall McLuhan, é o que acontece na enorme bibliografia existente, ela própria condenada a tornar-se obsoleta a curto prazo – e agora no livro de Sérgio Miceli (A noite da madrinha e outros ensaios sobre o éter nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 2005).

Dos programas de auditório, que conferiram péssima reputação ao adjetivo “popular”, passando pelo noticiário e projetos de cultura e de interesse público, sem esquecer as telenovelas, essa literatura das famílias, a televisão não é apenas uma “extensão dos nossos sentidos” e a criadora da aldeia global, mas um sentido acrescido aos existentes, agindo cataliticamente sobre os demais. Chegando depois da “galáxia de Gutenberg”, de natureza linear e seqüencial, a civilização eletrônica de natureza circular não a substitui, mas determinou o que, à primeira vista, parece uma fragmentação do público: “A demanda por bens e mensagens veiculados pela indústria cultural brasileira é função sobretudo do estágio em que se encontra a distribuição de renda, de escolaridade e de capital cultural nos diferentes níveis de hierarquia social. E o consumo dos produtos da indústria cultural obedece à mesma lógica social excludente segundo a qual quanto mais destituído dos pontos de vista material e escolar, tanto maior o grau de exposição às mensagens transmitidas pela televisão, mormente nos horários de pico (...). Ao contrário, quanto maior o nível de instrução, tanto mais elevado o consumo de jornais e revistas”.

Na verdade, há pouca “lógica” nessas faixas de comportamento. Se se pode pensar que um segmento importante do público prefere as novelas e não tem maior interesse pelas notícias do dia (e vice-versa), parece evidente que a televisão tende a homogeneizar em nova entidade o que se pode ter como audiência coletiva. É certo que ela oferece de imediato, com variável acréscimo emocional, as notícias que os jornais só publicarão no dia seguinte, mas é também inegável que o noticiário jornalístico abre espaço para pormenores incompatíveis com os 23 minutos dos jornais falados. Há contaminações recíprocas: por um lado, os jornais estão cada vez mais substituindo o texto pela imagem e, por outro lado, a televisão está avançando desproporcionalmente sobre o território da imprensa escrita: as emissoras estão se multiplicando, enquanto os grandes jornais diminuem em número.

Nessas perspectivas, o tópico mais sugestivo refere-se às relações da televisão com a vida política e, nomeadamente, com o processo eleitoral. Existe, mesmo, o aforismo mnemônico segundo o qual “sem televisão não há eleição”, não só porque os comícios dispensam a presença física dos candidatos, mas, ainda, pela força sugestiva da “imagem” contraposta ao “discurso”, ou seja, a passagem do abstrato para o concreto em termos sensoriais. As eleições decidem-se na televisão, não raro pelas circunstâncias mais fortuitas: “O que está em jogo no debate (...) não é a vida pregressa, evidentemente (...) não são as alusões aos pontos fracos de quaisquer dos candidatos, também não é o programa do partido, não é o passado de cada partido (...) o que decide o debate é uma avaliação do desempenho a partir de pequeninos lances e registros que têm a ver com o uso das mãos, a ‘espontaneidade’, a ‘naturalidade’, o ‘artificialismo’, têm a ver com a rapidez e a eficácia da resposta em termos de timing do próprio veículo (...)”. Alguns segundos de hesitação, observa Sérgio Miceli, “podem parecer uma eternidade”.

Candidatos que transpiram, revelando ansiedade ou insegurança, outros, de barba cerrada, catastroficamente ampliada no vídeo, parecem cansados e vencidos. É disso que depende o destino das nações. Não é segredo que os “debates” não se resolvem pelo que se debate: são situações emocionais e suspeitamente demagógicas, cujo “resultado” é avaliado por apreciações puramente subjetivas, quando não partidárias, por parte do público. Sérgio Miceli lembra, a esse propósito, um episódio das eleições paulistas: “A imprensa pôde dizer no dia seguinte: ‘o Covas ganhou o debate’. Mas não foi o Covas que ganhou o debate, foi também o Afif que perdeu o debate (...) porque o que acabou se sedimentando no plano propriamente visual provinha menos da postura ofensiva do Covas dizendo: ‘Você sempre votou contra os trabalhadores na Constituinte’ que da reação hesitante de Afif. (...) Antes ser politicamente derrotado por conta da acusações que lhe foram endereçadas (...) ele foi nocauteado pelo fato de ter se mostrado acachapado, olhando para a câmera como se não tivesse nenhuma resposta (...)”. Com pormenores e em situações diferentes, é a história ao mesmo tempo dramática e ridícula de todos os debates, exercícios de futilidade evidente, porque, no fundo, o resultado está conhecido por antecipação.

Datando de 1984, o capítulo sobre a situação de nossa indústria cultural, tem, já agora, interesse apenas informativo, porque, nessa matéria, os últimos 20 anos conheceram modificações substanciais: a expressão mais comum nessa área refere-se a equipamentos e recursos de “última geração”. A divisão do trabalho, escreve Sérgio Miceli, “motivou mudanças significativas nas arenas de exposição pública do sistema político-partidário, alterando as relações de força entre os grandes empreendimentos e instituições aí atuantes, além de ter afetado consideravelmente a distribuição de poder e influência entre os grupos econômicos que lideram os principais ramos da indústria cultural”.

Trata-se de um sistema que se alimenta por solipsismo, se essa for a palavra exata: o poder da televisão confere poder às empresas que a exploram, assim como as empresas tiram da televisão o seu poder e influência. Já em 1979, diz Sérgio Miceli, “o Brasil ocupava o sétimo lugar em gastos com publicidade e o quinto lugar em despesas de propaganda e televisão”. Os “patrocinadores” só patrocinam programas de grande audiência, com o que adquirem poder suficiente para determinar o cancelamento dos menos afortunados. É um círculo vicioso extremamente lucrativo, aliás inevitável, no qual, afinal de contas, (quase) todos saem ganhando.

 
 

 

 

 

 

10/01/2006