Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

Sartre ao vivo e em cores


08.07.2005

Vivo estará ou, pelo menos, redivivo, na imensa bibliografia repetitiva que se pode prever nas comemorações do centenário, havendo até quem o apresente como um pensador para o século XXI (Annie Cohen-Solal. Sartre: um penseur pour le XXIe siècle. Paris: Gallimard, 2005). Vivo ou, pelo menos redivivo, já está sendo no Brasil, com a reedição de suas obras literárias nas clássicas traduções de Sérgio Milliet, homem que sabia francês, sabia português e sabia o que traduzir significa (Os caminhos da liberdade. I: A idade da razão; II: Sursis; III: Com a morte na alma), além dos contos “O muro” (trad. H. Alcântara Silveira) e “A náusea” (trad. Rita Braga), todos na editora Nova Fronteira, 2005.

Autora da biografia exemplar e certamente definitiva (Sartre. Gallimard, 1985), Annie Cohen-Solal nela mencionava, entre outras coisas, que, em sua primeira visita aos Estados Unidos, Sartre, viajando em navio cargueiro, manteve vulcânicas relações com a esposa de um diplomata brasileiro, cujo nome não revela, nem consta que jamais se tenha vangloriado de tão gloriosa aventura. Iniciavam-se com isso os contatos do casal Sartre com os dois continentes, sabendo-se que, anos depois, Simone de Beauvoir conheceria a paixão de sua vida na pessoa de Nelson Algren, aliás pouco propenso aos transportes românticos da bela francesa que o ameaçava com definitiva vida em comum.

O pacto nupcial do casal Sartre estipulava ampla e irrestrita liberdade de comportamento por parte dos dois, o que foi cumprido à risca, se assim me posso exprimir, conforme o novo livro de Annie Cohen-Solal confirma com abundante documentação iconográfica. É certo que, ao fim de tudo, Simone de Beauvoir revelou amargo arrependimento, seja nas rancorosas memórias que escreveu sobre o marido, seja nas suas próprias, cuja última linha é um gemido, digamos, revoltado: “fui tapeada”. Os encontros marítimos de Sartre com a tentadora brasileira prenunciavam de alguma maneira a sua viagem ao nosso país, geralmente negligenciada pelos biógrafos, sem excluir Annie Cohen-Solal, mas que, para nós, e até para mim, tem particular interesse. Vindo a convite da Universidade Federal de Pernambuco para o I Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária (1960), ele estava a caminho de Cuba, em mais uma das suas reconciliações com o Partido Comunista.

Tive a honra de ser incluído na comissão designada para recebê-lo no aeroporto mas, logo à chegada, Jorge Amado se antecipou pela pista ao encontro dos visitantes, acompanhando-os de perto, desde então, pelo périplo brasileiro. Quis o destino que eu viesse junto com eles no mesmo automóvel até ao hotel, em cujo trajeto Simone de Beauvoir — que, aliás, nem mesmo correspondeu ao meu cumprimento — permaneceu em impenetrável silêncio. Morrerei sem jamais ter ouvido a sua voz.

À noite, Jorge Amado pediu-me que fizesse a tradução simultânea do que desejava dizer na saudação ao visitante, do que me desincumbi, claro está, com a fidelidade possível. Em sua conferência, Sartre lançou os postulados taxativos do que deveria ser a literatura brasileira, isto é, instrumento das massas revolucionárias na conquista do poder. Foi um sucesso. Refiro tudo isso a título de curiosidade, como achegas para a pequena história, geralmente ignorada pela grande. A viagem de Sartre realizava-se sob o duplo signo da revolução cubana e da guerra da Argélia, minuciosamente descrita tanto por Annie Cohen-Solal quanto por Simone de Beauvoir em “La force des choses” (1963). Nenhuma delas atribui qualquer importância ao Congresso de Crítica Literária do Recife: Annie Cohen-Solal ignora-o por completo e Simone de Beauvoir descarta-o com uma alusão desdenhosa: “Nous passâmes quelques instants au congrès (...)”. Alguns instantes nos quais Sartre falou por mais de uma hora sobre a responsabilidade política dos intelectuais, tema maior de sua obra.

De minha parte, apenas no que concernia à literatura brasileira e como ele tivesse revelado escasso conhecimento das nossas letras, tomei a liberdade de opor-lhe algumas respeitosas objeções, mas ele, que, segundo Raymond Aron, “jamais tolerou o face-a-face”, nada replicou, morrendo o debate com a mesma brevidade com que se iniciara. Se, durante os dois meses de sua permanência, escrevi em 1986, Sartre não teve oportunidade de falar às “massas brasileiras”, como era de seu propósito evidente, os encontros com intelectuais e estudantes corresponderam à consagração absoluta que se esperava e que então o acolhia pelo mundo todo. Vivendo em “país subdesenvolvido e semicolonizado”, como o definia Simone de Beauvoir, as novas gerações brasileiras, menos politizadas no sentido ideológico da palavra e moderadamente propensas à paixão intelectual, não enterraram Jean-Paul Sartre depois de tê-lo carregado em triunfo: deixaram simplesmente de lê-lo, se é que jamais o haviam lido.

Foi na conferência de Araraquara, publicada mais tarde em edição bilingüe (Rio/São Paulo: Paz e Terra/UNESP, 1986), que ele finalmente, e a contragosto, falou de filosofia, explicitando o provocativo axioma com que se abria e no qual repousava a “Critique de la raison dialectique”: o marxismo era a filosofia insuperável do nosso tempo. O encontro foi provocado por uma pergunta de Fausto Castilho (atualmente professor da Unicamp), desejoso de saber se era possível alguém denominar-se ideólogo em nossos dias sem cair nas dificuldades que Marx assinala a propósito de toda ideologia. Para Simone de Beauvoir, esse “professor L., desejando promover-se, manobrou de tal maneira que Sartre acabou aceitando” (o convite para falar), mas tudo acabaria mal para o ambicioso, pois, tendo um jornal paulista noticiado que o filósofo pregara a revolução, o professor L, segundo o testemunho de um Jorge Amado hilariante, gemia pelos corredores dizendo-se um “homem acabado”.

Assim escrevem a História os predicantes do rigor intelectual e da intransigência ética. Nas melhores tradições francesas, tudo terminaria em canção: tendo dificuldade em acender um cigarro durante a conferência, Sartre descreveu a tensão que isso criou entre ele e a platéia, dizendo que tinha passado de um estado a outro “através de um sistema de crise, de oposição e de síntese e a operação se fez e é a mais simples do mundo”. Com o que o modesto isqueiro entrou para a história da filosofia.

 
 

 

 

 

 

10/01/2006