Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

Em moeda corrente


07.08.2004

Antigamente, a escola era risonha e franca: o autor escrevia o seu livro, oferecia-o com bajulatória introdução a algum poderoso do momento, que, por sua vez, o gratificava com maior ou menor generosidade, permitindo-lhe pagar o impressor e matar a fome por algum tempo. Nessa tradição de nobres antecedentes, a história criou a instituição do mecenato, transformando em substantivo comum o nome de Mecenas, magnífico protetor do poeta Horácio, cuja arte poética fixou as regras do pensamento literário durante séculos.

Aí estava a mais longínqua semente da mercantilização progressiva do trabalho intelectual, até ao momento em que se começou a falar de direitos autorais: a essa altura, o autor o manuscrito de uma vez por todas, sem qualquer outro retorno por parte do impressor. Daí a palavra copyright , que, como o nome indica, é o direito sobre a cópia, sobre os originais adquiridos, transformados em objetos de comércio pelas leis vigentes de compra e venda. A propriedade passava do autor para o livreiro ou impressor: “A relação dos profissionais das corporações organizadas com os autores de livros, desde que teve início a atividade de imprimir e comercializar livros, era de simples compra e venda de um manuscrito, como outro produto qualquer. Os autores vendiam suas obras por um valor determinado, abrindo mão de seus direitos de publicação e de futuros royalties , ainda que o livro viesse a se popularizar e o livreiro obtivesse altos lucros. De acordo com a regulação da Coroa (inglesa), aquele que adquirisse um manuscrito adquiria também o direito exclusivo de cópia de seu conteúdo, isto é, o copyright , a ser registrado no livro da corporação, mediante a inscrição do nome do adquirente” (Marisa Gandelman. “Poder e conhecimento na economia global: o regime internacional da propriedade intelectual da sua formação às regras de comércio atuais”. Rio: Civilização Brasileira, 2004).

Observe-se, a título de curiosidade, que era precisamente por esse regime que, em pleno século XIX, Machado de Assis vendia as suas obras ao editor Garnier. Tudo havia começado na Inglaterra, sendo apenas natural, em retrospecto, que a idéia haja surgido nessa nação de comerciantes, cujo talento passou, no devido tempo, aos seus descendentes de ultramar: “Criado em 1709, o Estatuto de Anne ou Copyright Act reflete uma mudança na forma de entender o tema e o foco da regulação. O novo estatuto pretendia regular o comércio de livros. Entre outras coisas, reduziu o prazo de proteção da obra. (...) O estatuto reconheceu o autor como proprietário de seu trabalho. (...) Até então, os autores eram mantidos por patronos ou mecenas, e não pelo mercado”.

O que estava por trás de tudo isso, lembra Marisa Gandelman, “era a batalha comercial entre vários grupos de livreiros. (...) A limitação do prazo, reflexo de um contexto em que florescia o pensamento liberal, feria os interesses dos livreiros de Londres — o Cartel de Londres, que desde a criação da corporação dos livreiros (Stationers’s Company) dominava e monopolizava a atividade”. Transcorreram dois séculos de avanços, recuos e estagnações para que se aceitasse na prática a idéia da propriedade intelectual, processo de mudança marcado, segundo Marisa Gandelman, por três momentos-chave: a) criação da União de Paris e da União de Berna no fim do século XIX; b) criação da OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual) na década de 1960; c) criação da OMC (Organização Mundial do Comércio) na década de 1990.

O conceito de propriedade intelectual, em germe, no plano teórico, desde o século XVI, chegou aos nossos dias com tais e tantas modificações que o tornariam irreconhecível pelos tratadistas anteriores, sobretudo a partir dos começos do século XX e cada vez mais à medida que avança o seguinte. É que entraram em ação avanços técnicos até então insuspeitados, nomeadamente os de natureza eletrônica. Há um menino novo no bairro, chamado Computador: “A inclusão dos programas de computador na lista de obras protegidas consagra a tendência à ampliação do conceito de propriedade e sua extensão a todas as formas de criatividade humana”.

Já o cinema, arte coletiva entre todas e, afinal de contas, puramente mecânica, resistiu quanto pôde ao reconhecimento da propriedade intelectual. Durante muito tempo discutiu-se a respeito de quem era o “autor” do filme, até que a questão foi resolvida com a fuga para a frente: criou-se o “cinema de autor”, que, na verdade, sempre existiu, mas pretende dar uma formulação jurídica para o problema. A indústria cinematográfica, escreve Marisa Gandelman, “durante muito tempo se opôs à adesão a Berna, justamente em razão da cláusula dos direitos morais. Bettig explica que os produtores contratavam roteiristas para criar histórias a serem filmadas e precisavam ter toda a liberdade para modificá-las de acordo com seus orçamentos de produção, ou para garantir um bom retorno de bilheteria”.

Era um falso problema, facilmente resolvido pela forma habitual, isto é, pagando em moeda corrente todos os interessados. A ironia está em que os estúdios, comprando obras literárias com os livreiros do século XVIII compravam os manuscritos, e os autores, vendendo-as pelo mesmo princípio, retomaram as práticas que o princípio da propriedade intelectual se propôs a abolir. Em nossos dias, os autores mais intransigentes quanto aos seus direitos morais, são os primeiros a insistir no pagamento das cópias xerox tiradas dos seus livros — no que, bem entendido, estão associados soa editores.

Há um subcapítulo interessante em toda essa história: “Os Estados Unidos não aderiram à Convenção de Berna até o fim da década de 1980”, passando a fazer parte “com a intenção de mudar o regime na direção que entedia ser a correta, e que era muito diferente da tradição de pensamento adotado pelo texto original de acordo”. Para mudá-lo, entretanto, era preciso aderir à Convenção, o que acabaram fazendo com a intenção, conclui Marisa Gandelman, “de modificar o acordo e incrementar seus recursos de poder para determinar como deve operar o mercado de bens e serviços que dependem da propriedade intelectual”.

Tema aparentemente pacífico, os direitos autorais tiveram, como estamos vendo, uma história movimentada e conflituosa, o que sempre acontece quando o dinheiro está em causa. O que eu, de minha parte, estou longe de censurar.

 

 

 

 

 

 

09/01/2006