Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

História irreverente


31.07.2004

Nos 85 anos decorridos desde o seu aparecimento até à edição anotada por Isabel Lustosa (São Paulo: Companhia das Letras, 2004), a “História do Brasil pelo método confuso”, de Mendes Fradique, foi perdendo gradativamente o seu potencial humorístico como um líquido quente que se evaporasse na atmosfera: falta-lhe agora o contexto que a tornava engraçada. O manancial inesgotável do humorismo pátrio àquela altura eram as piadas sobre negros, judeus e portugueses, hoje condenadas como politicamente incorretas (nem por isso menos populares).

Lembre-se que nas duas primeiras décadas do século XX a opinião pública no Rio de Janeiro era furiosamente antilusitana, conhecendo campanhas jornalísticas e conflitos de rua da mais extrema violência. João do Rio, por exemplo, tido como defensor dos interesses da colônia, foi fisicamente agredido por um grupo de valorosos oficiais da Marinha, ofendidos nos seus brios nacionalistas. É constrangedor pensar que os ataques mais sórdidos contra ele provinham de Humberto de Campos, escritor então prestigioso, hoje completamente esquecido.

É nessas perspectivas que cabe situar o que Mendes Fradique escreveu sobre a famosa travessia do Atlântico pelos pilotos portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral: “Essa coisa de virem Cabrais dar com os lusitanos costados em terras do Brasil é, sabiamente ( sic , por sabidamente), um mau costume, que vem de longa data. (...) A odisséia de Gago e Cabral é, em toda a linha, uma reprise da aventura de 1500. Apenas diferem as proporções, cabendo a Saca-Gago a feição mais modesta. Cabral I tinha uma esquadra; Cabral II um avião. Cabral I acompanhou-se de uma expedição; Cabral II acompanhou-se de um Gago. (...) Houve na colônia quem afirmasse que Sacadura e Gago se haviam feito acompanhar de 150 homens portugueses pura blague — os 150 homens portugueses nada mais foram do que uma interpretação errônea dos 150 HP, potência do motor do Fairey 17”.

Os leitores terão apreciado a finura do trocadilho, sendo justo mencionar que os brasileiros não eram tampouco poupados, nomeadamente os políticos e os poderosos do momento, além de figuras conhecidas, entre outras o historiador Capistrano de Abreu que as más línguas diziam refratário à água e ao sabonete, tudo glosado por Mendes Fradique em diversas passagens, ao mesmo tempo em que não economizava ironias sobre nomes de pessoas e casas comerciais, para nada dizer das biografias fantasiosas e anacrônicas a respeito de altas personalidades, como, por exemplo, Venceslau Braz: “Pela primeira vez, das praias da Galiléia, onde levava uma vida de pobre pescador, moveu-se Venceslau, o Taciturno , em busca de regiões menos sujeitas à voracidade territorial que ilustra a civilização dos povos do Noroeste Europeu. Emigrou para Alexandria, onde encontrou o seu primo Absalão. (...) Fez-se vendedor de relíquias; vendeu a Eça de Queiroz oitocentas ferraduras da jumenta que conduziu ao Egito a Sagrada Família (...). ...nessa ocasião chegava a Alexandria o cronista internacional João do Rio, vindo de Constantinopla, vestido ainda de odalisco (...)”.

Claro, o fim do governo Venceslau foi dominado por Pinheiro Machado, objeto de um dos melhores perfis. No trecho transcrito há numerosas alusões e subentendidos que nem todos os leitores dos nossos dias serão capazes de perceber. O que nos leva às anotações de Isabel Lustosa na ingente tarefa de identificar personalidades, fatos históricos e obras literárias. Era o tempo em que jornalistas e escritores citavam autores franceses no original, sem necessidade das traduções parentéticas que, segundo parece, se tornaram agora indispensáveis. Contudo, esses cuidados maternais estão estimulando a preguiça mental, no pressuposto de que não se deve exigir nenhum esforço do leitor, entre outros o de consultar o dicionário. Assim mesmo, é pouco provável que seja necessário explicar o significado de palavras comuns, como cavação, cassange, cabalar, carraspana, sarilho, alarve, bestunto, à tripa forra, carrancismo, tresandar, belquior e assim por diante. Quem necessita de cuidados dessa natureza corre o risco de tomar literalmente esta passagem: “Diogo (Álvares Correia) munido de habeas-corpus perambulava calmamente pelas ruas da urbe. Era terça-feira de Carnaval. Chegando à praça Onze, aderiu a um cordão que estava causando sucesso, as Marrões Glaceis da Cidade Nova, constituído em sua maioria por selvagens da tribo dos tupiniquins. (...) Separando-se do cordão às quatro horas da madrugada, dirigiram-se o Diogo e Paraguaçu ao mercado, onde tomaram um fartão de ostras cruas ao parati. (...) ...a foliona, já um pouco alegre, não pôde manter o disfarce, dando-se então a conhecer ao companheiro: não era Paraguaçu, chamava-se Catarina e era polaca. Caramuru desabou”.

É preciso estar bem familiarizado com o estilo de Rui Barbosa para apreciar em sua justa medida a paródia exemplar incluída como prefácio apócrifo: “Agora que venho de terminar a leitura desse chefe d’obra, apresso-me em patentear a minha alta admiração (...). Um simples golpe de vista, e o seu trabalho fez-me escrever-lhe o nome do autor no rol dos que não desanimam, dos que não temem, dos que não lêem, dos que não votam, dos que não medem, dos que não têm senso comum, dos que não pensam, dos que não se avacalham, dos que se não vendem por pouco dinheiro; mas trabalham, mas penetram, mas ousam, mas escrevem, mas imprimem, mas publicam, mas impingem, mas praticam a gaucheria, o civismo, a cavação, o cabotinismo, o amor, a virtude, a coragem, e surgem e lutam e levam na cabeça”.

Mendes Fradique escreveu seu mea culpa no capítulo “Oásis”: “Eu, na qualidade de bom brasileiro, não deixei de hostilizá-lo com a minha pilhéria plebéia e irreverente (...). Rui Barbosa, isolado na grandeza de sua inteligência, é a expressão máxima da inteligência nacional” — palavras canhestras que lhe demonstram a inaptidão para o estilo solene e grandiloqüente. Mas, não resistiu por muito tempo: Rui Barbosa “não foi prosaico como Wilson. Deixando a vida pública (...) recolheu-se à privada”.

Link para Isabel Lustosa

 

 

 

 

 

09/01/2006