Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

Artes do conto


22.05.2004

As artes do conto são, também, por definição, as suas artimanhas: da simplicidade epigramática no bem denominado “Epitáfio”, de Flávio Paranhos (São Paulo: Nankin, 2003) à complexidade das peripécias de Domingos Pellegrini (“Conversas de amor”. Rio: Record, 2004) e às páginas em que a memória sentimental se transforma em ficção (Fábio Campana. “Todo o sangue”. Curitiba: Travessa dos Editores, 2004), é sempre a diversidade humana que aparece, recuperada pela unidade essencial que a condiciona.

Pelos quadros comuns das situações banais, Flávio Paranhos denuncia o absurdo existencial do dia-a-dia como se manifesta por acaso em nossa vida. Situações banais? Parece simples e evidente, até lermos o conto intitulado, precisamente, “Situação”. Trata-se de um encontro de bar: “Examinei meu interlocutor atentamente. Como não esboçasse reação e parecia até mesmo incomodado por minha atitude, desviei o olhar. (...) Não era possível que me considerasse isso ou aquilo, pois, afinal, me era absolutamente indiferente toda aquela situação”.

É onde começam as dificuldades: “O que é uma situação? Não respondeu. Ficou me observando em silêncio. — O que quer dizer? — perguntou finalmente, um tanto confuso. — Quero saber se estamos em uma situação. Quero que você me ajude. Para saber se estamos em uma situação, é preciso que saibamos primeiro o que é uma”. A “situação” se complica e não tarda a degenerar em inesperada animosidade, quando os interlocutores procuram ligar a televisão: “Teremos uma situação e como conversar sobre ela. Aliás, já temos uma. — Temos? — Sim. Eu me levantei e fui até à televisão. Tentei ligar e não consegui. — Não é possível sem o controle remoto”.

Os contos de Flávio Paranhos desenvolvem-se ou desdobram-se por “situações” estáticas, que, entretanto, contêm nelas mesmas a sua dinâmica, muitas vezes escritas por simples diálogos, o que impede a transcrição ilustrativa nesta oportunidade. Em Fábio Campanha, é a realidade pura e crua que se metamorfoseia em literatura, na evocação de momentos em que o narrador vive ou revive, por exemplo, uma cena revolucionária: “E eis que esse tempo foi curto como um relâmpago. E eis que o sonho foi despertado pelo soco. Algemas. Uma sala, os golpes, o choque. Paredes manchadas de sangue. Um corpo despido no cimento áspero. Uma voz insistente. Perguntas. E o mundo era feito de sons. Gemidos, tiros, gritos, lamentos, sirenes, murmúrios, ordens”.

Contudo, a vida não se faz apenas pelos momentos dramáticos, mas também pelos episódios de alegre comédia, como na história das belas portenhas que as vicissitudes atiraram às praias urbanas de Curitiba — La Ronde, Cadiz, Moulin Rouge, Marrocos, nomes míticos que se incorporaram à geografia da cidade. Aportaram nos idos dos anos 40 e 50, eram tão bonitas, elegantes, charmosas, que não poderiam ter outra origem. Vieram atraídas pela nossa Idade do Ouro. A descoberta do café fez o Paraná rico e generoso, perdulário. (...) Todos os meses, os prefeitos do interior vinham buscar a parte dos seus municípios na arrecadação dos impostos. Era de lei. O artigo vinte da Constituição. As gringas sabiam de cor essa parte a legislação. E conheciam os políticos da época como ninguém. — Morocha, llegó el artigo veinte. Era a senha para identificar a entrada de cidadãos deslumbrados, algibeira cheia, ansiosos por mil e umas noites de prazeres.

Há, também, a história fabulosa de Don Alvar Nuñez Cabeza de Vaca, “personagem favorito” de Fábio Campana, que “passou por terras paranaenses em 1547 à procura de um império de ruas pavimentadas de ouro. Cruzou o Atlântico e andou milhares de léguas antes de admitir o fracasso. (...) Antes de sua viagem paranaense, Cabeza de Vaca errou durante oito anos pelos pântanos da Flórida, certo de que encontraria a fonte de juventude”. Ele “fala do desconforto a que (os exploradores) se submeteram durante meses na paisagem estranha, imersos no caos de catinga e insetos, cansaço e privações, obrigados à convivência com os índios e, pior, com o pequeno exército arrebanhado na escória dos portos espanhóis, onde não faltavam fugitivos, criminosos, loucos não declarados e frades corrompidos. Conta os esforços para ultrapassar as terras vertiginosas na serra do mar, as paisagens de pedra que se erguem no meio dos campos, as florestas quase impenetráveis tão espessas que cobriam o céu, tão escuras que lembravam o inferno”.

Tendo chegado a tomar posse, em nome da Espanha, do que seria quatro séculos depois o estado do Paraná, “foi deposto em Assunção por Domingos de Trala, que o enviou preso e acorrentado de volta a Sevilha”, assim terminando em tragédia como tantos outros visionários. Mais felizes foram os visionários que, já em nosso tempo, conquistaram o norte do Paraná, realizando sem querer e sem saber dele o sonho ou a ambição de Cabeza de Vaca. Domingos Pellegrini é o contista das situações-limite, tratadas com extraordinário vigor narrativo e incomparável fidelidade nos diálogos. Seu compasso vai do grotesco afetivo da vida em família (“Minha estação de mar”) aos episódios de coragem viril em que o homem comum dá a medida de sua grandeza (“A maior ponte do mundo”, reproduzido de volume anterior), além das histórias de pioneiros que realizaram o bandeirismo do século XX, não menos heróico que o outro e que, como o outro, expandiu as fronteiras do Brasil (“De pai para filho”).

Esta última é a temática pellegriniana por assim dizer antonomásica, história de conquistadores que abriam estradas metro por metro no exato momento em que começavam a busca do mito fascinante. Mas, como seria de esperar, era um caminho (nos dois sentidos da palavra) repleto de armadilhas e obstáculos: “Por via das dúvidas, o motorista ligou o jipe, para encostar mais na beira da estrada (...) o jipe roncou, roncou, afundando mais na valeta (...) era preciso aliviar peso (...)”. Essas histórias em que o homem se supera a si mesmo, superando as dificuldades, são as histórias em que o homem, conquistando territórios, construindo pontes, enfrentando os ridículos imprevistos, introduz uma nota de ironia no que a ambição pode ter de heróico e de desmedido.
 

 

 

 

 

 

 

06/01/2006