Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

Poeta do nosso tempo


14.02.2004

Talvez a poesia seja tudo isso ao mesmo tempo: ironia e sarcasmo, unamuniano sentimento trágico da vida, visão fatídica da existência, espírito oracular e crença nos oráculos, a luta pela expressão em que Fidelino de Figueiredo resumia o destino do escritor, a ânsia de vencer o que Graça Aranha chamava de terror cósmico (sob generalizada incompreensão), o impulso de superar o homem, enfim, em termos literários, “lirismo epopéia drama”, triângulo proposto por Ernest Bovet para enquadrar as três “idades” da literatura (“Lyrisme Epopée Drame: une loi de l’histoire littéraire expliquée par l’évolution genérale”. Paris, 1911).

Se a poesia for isso, então Eduardo Mondolfo será um poeta do nosso tempo (“Tríptico”. Rio: Topbooks, 2003). Segundo Alexei Bueno no posfácio, ele “faz o inventário satírico, trágico e utópico da nossa vida nesse impávido colosso que é o Brasil”. Na verdade, vai mais longe (ou vem de mais longe...), incluindo o país enquanto entidade mental, a ser visto essencialmente como fenômeno de civilização nas perspectivas da História. No caso, os três poemas aqui reunidos formam, em essência, um único poema, “falam de três países diferentes: do Brasil oscilando entre o gozo e o desastre; de Nova York deixando de ser, do novo século, o centro; e de paisagens emocionais que deslocam a pátria para aquele velho palco interno”.

Comecemos pelas cidades, fruto e conseqüência da História, que, entretanto, as originou: surgiram ao acaso, desenvolvendo-se espontaneamente pelos imperativos de sua própria lógica orgânica, contrapostas às duas ou três expressamente planejadas como projeto de lógica urbana, logo contrariada pelas obscuras leis que as pranchetas não poderiam incluir. Assim, Brasília, que, na concepção original, seria a cidade socialista e igualitária do futuro, começou por tornar impossível o deslocamento fácil, rápido e barato dos trabalhadores — e, programada para a renovação política, recaiu nos mecanismos “burgueses” das velhas repúblicas. O que, aliás, era previsível.

Em Brasília, diz o poeta com alguma violência, os “cachorros com terno e gravata” protegem as próprias ninhadas, partindo daí para o novo retrato do Brasil na sólida pauta do antiufanismo: “Já vi fuzileiros navais guiando táxis / depois do quartel, para fazer mercado. (...) Já vi almirantes que não sabiam nadar / e testavam estratégicas jogando baralho. // Já vi generais que não sabiam atirar / e por isso fizeram de alvo o Estado. / Tivemos presidentes que só decidiam drogados (...) tivemos estadistas que se suicidaram / e uma maioria douta em criar cadáveres (...)”.

O requisitório continua com o capítulo das misérias e das grandezas em que, segundo parece, as misérias predominam, ao contrário do que aprendemos na escola e nos manuais de instrução moral e cívica: “Somos um prostíbulo, com um incêndio interminável / onde juízes fogem da justiça, e são entrevistados / em shows ao vivo, na TV, domingo à tarde. / Temos governadores que nasceram no rádio / e montaram um governo só com pediatras (...). Temos senadores que são anjos do narcotráfico / e assaltantes pobres que morrem atrás das grades. / Banqueiros cujas dívidas nos são tributadas / e hospitais onde se morre de simples resfriado (...).”

“São versos de amor e de desabafo”, diz o poeta em outra passagem, porque, afinal de contas, Brasília é também o emblema de nosso tropismo para a modernidade, não se tendo transformado, apesar de tudo, nas ruínas arqueológicas antecipadas por Otto Maria Carpeaux num momento de pessimismo. Eduardo Mondolfo está longe de ser o novo conde de Afonso Celso, situando-se no movimento pendular oposto que nos leva intermitentemente para o ufanismo e o antiufanismo. Cidades mais importantes e de grande arrogância acabaram por receber o fogo destruidor do céu, objeto do que será o mais belo segmento do conjunto (“A grande visão”). O tom e a abordagem lembram a drummondiana “Máquina do mundo”, transmitindo a inesperada visão de uma testemunha: “Cheguei, como de costume, ao escritório / naquele onze de setembro / pegando o metrô das sete horas / até o World Trade Center. (...) Na casa de subúrbio onde moro / esquilos entram e saem sem receio. (...) No céu azul de Nova York / surgia a mesma riqueza de sempre. (...) De repente, ouvi um grande estrondo / como se Deus desse um soco na mesa (...). Parecia mais um terremoto / Ou vulcão, porque enxerguei labaredas. E línguas de fogo e fumaça e corpos / subiram aos céus, como chuva, da terra. / Seguiram-se explosões. Ainda que menores. / Convulsões de aço. Flocos de concreto. (...)”.

As citações fragmentárias reduzem o texto a excetos episódicos, exatamente opostos à unidade profunda do poema, cuja verdadeira grandeza só se pode perceber à leitura integral na sua palpitação visceral. Não se trata de um desastre urbano, mas da nova tempestade de ferro e fogo, provinda do Antigo Testamento com suas maldições bíblicas. O ataque puramente mecânico toma o corpo e o sentido de uma convulsão cósmica, com animais mitológicos sobrevoando a cidade em formas pré-históricas: “No céu azul, nós nos víamos grudados / à imagem afastada da tela / até que a Grande Visão tomou cara / e soubemo-nos o alvo certo. / No canto do vídeo, uma nova aeronave / surgiu como um míssil, na trégua. / Soubemos então que era um ataque / Um tiro no coração da América. (...) Olhei na janela e o vi entrar / com seu bico e a boca aberta. (...) O grande bico rompendo-nos em parte / e ferindo de morte a América. / O grande bico da águia de aço / fazendo-nos sentir alimento. / O grande bico da grande estocada / de caça que se armou com gente. / O grande bico, e depois, as duas asas / e a explosão na qual dissolvemo-nos”.

O que bem pode ser reminiscência involuntária dos versos premonitórios de Drummond: “A morte baixou dos ermos, / gavião molhado (...) Seu bico / vai lavrando o paredão / e dissolvendo a cidade”. Caberia ainda aludir a “Morte no avião”, poema encerrado, entretanto, numa nota de ceticismo fatalista, enquanto o terceiro painel do “Tríptico” regressa, por inesperado, à nota lírica (depois da epopéia e do drama), para terminar numa lição de esperança e otimismo, certamente anticlimática. A inoportuna intromissão do lugar-comum sentimental e da facilidade repetitiva no corpo do poema corresponde àquela “eiva congênita” que o tenebroso Hamlet dizia existir na compleição de certos homens, marcando-os como defeito irreparável: a ruptura de tom compromete a harmonia do conjunto. Até a desgastada lua dos adolescentes românticos reaparece como imagem “poética”: “Querendo perder-se na amada / como a lua se esconde ao nascente”.

Com isso, Mondolfo ficou sendo um bom poeta do nosso tempo, quando poderia ter sido um grande poeta do nosso tempo. O cataclisma das duas torres, que outrora vigiavam a cidade como animais pré-históricos perambulando pelos arredores, foi qualquer coisa como a metáfora de idades geológicas que desapareceram, prenúncio do sempre ameaçador Juízo Final com que nos atemorizam desde o começo dos tempos.

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03/01/2006