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Wilson Martins


 


Discursos acadêmicos (II)

Jornal do Brasil
29.10.2005

 

 

O acaso das vagas que se sucedem nem sempre permite adequada consonância intelectual sobre os eleitos, por um lado, e, por outro, os patronos e antecessores da cadeira. Foi o caso de Rachel de Queiroz, escolhida numa seriação de juristas, entre os quais, de toda evidência, não se sentia à vontade, e o de Josué Montello, que encarou com bravura e resignação os louvores a Cláudio de Sousa a que esteve obrigado pelo protocolo de posse. São episódios destinados a futuros volumes de Discursos acadêmicos certamente programados pela Academia Brasileira de Letras na série das excelentes publicações que vem desenvolvendo na presidência Ivan Junqueira. Mesmo neste volume, há circunstâncias curiosas.

Confessando-se “escritor por acidente”, Euclides da Cunha viu-se em contingências semelhantes ao tomar posse em 1906: “Avaliai, portanto, os meus embaraços ao ocupar a cadeira de Castro Alves. Estou, mais uma vez, ante uma grandeza que à primeira vista não admiro, porque não a compreendo. O que diviso é dúbio e incaracterístico: certo, um grande lírico, entre os maiores engenhados pela nossa ardente afetividade (...). Recito-lhe os versos (...). Fascinado pelo fulgor de sua idealização exagerada, assisto ao abstrato de uma mascarada indescritível, onde se misturam, emparceirando-se nas mesmas farândulas tumultuárias, reis decaídos, pontífices em apuros, heróis ‘que tropeçam na eternidade’, mártires a entrarem, trôpegos e aos cambaleios, pela história a dentro, ‘estatuários de colossos’, e caboclos nus, espantados... Aqui, ‘as cortinas do infinito’ descerradas à perspectiva de novos continentes; além, a cordilheira de píncaros fantásticos que, ‘como braços alevantados, apontam para a amplidão’; mais longe, dentre o fragor de rimas clangorosas, os oceanos em tropa, e a imaginativa esgota-se acompanhando o desmedido de um arrancado vôo de leviatãs alados, que possam, imprimido nos cenários o trágico pré-esquiliano das remotas idades geológicas...”

Palavras que devem ter soado como música divina aos ouvidos de Sílvio Romero, que o recebia e não perdeu a ocasião (embora inoportuna) de fazer mais uma vez o panegírico de Tobias Barreto, esse grande poeta injustiçado pela má vontade dos contemporâneos... Estávamos, entretanto, em nova idade intelectual, em outro ciclo de civilização, para além de Castro Alves, Tobias Barreto e até Sílvio Romero, o que Euclides da Cunha percebia melhor do que ninguém: o poeta baiano tinha sido “dos últimos românticos. Depois dele, em todo o período que vem de 1875 até hoje, temos mudado muito e vamos mudando ainda, sem que se note uma situação de parada, das que se fazem ao menos para avaliar quanto se andou”.

Era o momento da Idéia Nova, como a denominou Valentim Magalhães em soneto de 1870, ano pivotante de nossa história. Foi a “figura mais representativa” de uma geração que “devia ser o que foi”, disse o implacável Euclides a propósito do antecessor, “fecunda, inquieta, brilhantemente anárquica, tonteando no desequilíbrio de um progresso mental precipitado a destoar de um estado emocional que não poderia mudar com a mesma rapidez; e a sua vida, a sua carreira literária vertiginosa, toda disposta a nobilíssimas tentativas reduzidas a belíssimos preâmbulos, a nossa própria vida literária, impaciente e doidejante, brilhando fugazmente à superfície das coisas, inapta às análises fecundas pelo muito ofuscar-se com as lantejoulas das generalizações precipitadas”.

Palavras que Romero certamente ouviu com prazer não menor. Carreira reduzida a “belíssimos preâmbulos”, brilhos fugazes na superfície das coisas, lantejoulas de generalizações precipitadas, nenhum retrato de Valentim Magalhães pode comparar-se a esse em precisão e crueldade. Euclides da Cunha reescreveu com frieza de cientista o que Romero havia escrito no calor emocionado da polêmica em que se envolvera contra Valentim Magalhães e as brigadas da Idéia Nova, exemplo quase palpável da rotineira mudança de gerações. O que, bem entendido, resultava da mudança de épocas ou a refletia: foi tema do discurso de João do Rio (Paulo Barreto), um dos mais brilhantes na história da Academia.

Contudo, não era apenas um jovem que entrava com ele na Academia – era a juventude que chegava, conforme proclamou Coelho Neto no discurso de recepção, cerimônia em tudo oposta à que o futuro lhe reservava para 1924: “A Academia acaba de abrir as suas portas aos novos; é bom que assim seja para que se não insista em dizer que, nesta Casa, onde assistem (...) os espíritos superiores de nossa literatura, tudo é gélido e retransido e pelos cantos, enconchadas em sono veternoso, jazem ancianias tórpidas que, ao extremunharem, resmungam conceitos serôdios, esmoem versos sediços, bradam contra a irreverência dos moços e, cabeceando, reagem na modorna, arrepanhando às gelhas e aos perigalhos as pontas da túnica”.

“Alas à Primavera”, concluía ele, mas a Primavera só chegaria com os seus tufões sazonais alguns anos depois. Pode-se pensar que, a essa altura, já estava fermentando o processo de atualização intelectual e mental, pois os avanços tecnológicos transformavam o mundo conhecido: “A vida fez a renovação de todas as figuras estéticas (...). A paisagem com a vegetação dos canos das usinas, as sombras fugitivas dos aeroplanos e a disparada dos automóveis, os oceanos sulcados rapidamente, desventrados pelos submarinos, os dramas que esses ambientes novos dão às cidades cortadas de aço (...) a nevrose do reclamo em iluminação mágica”, esse quadro modernista traçado por João do Rio, a ser representado pelo Modernismo uma ou duas décadas depois.

Enquanto isso, e antes disso, os acadêmicos tinham ouvido e continuariam a ouvir discursos modelares, tanto como orações acadêmicas quanto ensaios de literatura de mais alta qualidade, a exemplo do elogio de Varnhagen por Oliveira Lima, autores, um e outro, de obras fundamentais em nossa historiografia. Cadeira privilegiada entre todas arrolou ocupantes de uma dinastia incomparável: José de Alencar, como patrono, mais Machado de Assis, Lafayette Rodrigues Pereira e Alfredo Pujol, seriação não se pode imaginar mais acadêmica no sentido nobre da palavra. Caberia a este último, autor da biografia clássica de Machado de Assis, pronunciar o elogio de Lafayette, que não tomou posse e que, ele próprio, atacara Sílvio Romero em livro igualmente clássico, no qual, diga-se de passagem, o romancista foi apenas o pretexto para um ajuste de contas já antiga: como o título indica, Vindiciea foi a vingança de Lafayette contra Romero, mais que o desagravo de Machado de Assis contra o crítico que o atacara.
 

 

 


 

24/11/2005