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Wilson Martins


 


Gilbertiana

Jornal do Brasil
15.10.2005

 

 

Ninguém permanece indiferente diante de Gilberto Freyre. Há os animadores incondicionais e fervorosos, como Odilon Ribeiro Coutinho (Gilberto Freyre ou o ideário brasileiro, Rio/Recife: Topbooks/Fundação Gilberto Freyre, 2005), e há a vasta gama em que se incluem os críticos de boa-fé em busca de objetividade e isenção, ao lado dos ideólogos de variada pelagem que dele discordam e o atacam pelos mais diversos motivos, nem todos realmente pertinentes à matéria dos seus livros. Os argumentos destes últimos, diz Ribeiro Coutinho, “não são nunca de ordem científica, mas de nítida e iniludível razão política. É suficiente que as observações do sociólogo dêem a impressão de contradizer dogmas inatingíveis, os princípios doutrinários, ou até mesmo as simplistas palavras de ordem do momento, de uma facção ideológica ou grupo partidário, para que logo o crítico sectário [...] invista sobre as torres do pensamento gilbertiano com redobrado fervor belicoso”.

Deixando de lado as razões do oportunismo político e seus interesses, cabe lembrar que, de fato, a faculdade predominante de Gilberto Freyre é a sua recusa do pensamento dogmático. Ou, ainda nas palavras de Ribeiro Coutinho, as suas idéias, ao longo de meio século, “ficaram, em termos de favor ou de rejeição das correntes ideológicas, sujeitas ao movimento das marés políticas”. Como intelectual e historiador da sociedade brasileira do Nordeste, ele sempre reagiu contra as verdades aceitas enquanto eram apenas isso, quero dizer, banalidades convencionais a respeito de realidades complexas, a começar pela questão racial.

Nesse particular, sua influência impôs outras vaidades aceitas, hoje tão indiscutíveis quanto as anteriores, muitas delas agora garantidas contra ele pelos que se desejam mais católicos do que o papa, oponentes a quem falta a flexibilidade de espírito que antes de mais nada o distingue. Odilon Ribeiro Coutinho pertence aos incontáveis polemistas que consideram erradas e até criminosas as concepções científicas em matéria racial, tornadas obsoletas na segunda metade do século 20 em reação que o nazismo precipitou e consolidou. Capítulo em que ele não esconde sua indignação moral, condicionada pelo farisaísmo ideológico e pelos simplismos mentais que se tornaram, por sua vez, irreprocháveis.

Não tem limites, por exemplo, a sua reação insultuosa contra Gobineau, acusando-o de “irresponsabilidade científica” e tratando-o de “calhorda” e outros qualificativos menos respeitosos. Entretanto, reconhece, e não poderia deixar de reconhecer, que ele e outros respeitados cientistas sociais da mesma época, “impressionaram vivamente” outros calhordas como Euclides da Cunha e Oliveira Viana, para nada dizer de Paulo Prado e Monteiro Lobato, igualmente incluídos em referências depreciativas. O pobre Paulo Prado teve a infelicidade de escrever o Retrato do Brasil, “impregnado de preconceitos que devem ter se entranhado nos longos séjours em Paris”, hipótese em que as viagens ao exterior exerceram papel maléfico exatamente oposto aos benefícios enriquecedores que Gilberto Freyre retirou das suas, sem esquecer o insuspeito Monteiro Lobato, não menos “racista”, autor de um romance racista sobre os EUA.

Diga-se, a esse propósito, que Ribeiro Coutinho comete um contra-senso: no discurso de 1919, Rui Barbosa (besta negra de Gilberto Freyre) não “descobriu” o caboclo brasileiro, apenas tomando o Jeca Tatu, numa obra de literatura, como paradigma do atraso brasileiro. Escrevendo em estilo de alta qualidade e renovação expressiva, boa parte das resistências mentais encontrada por Gilberto Freyre (e não só no Brasil) provém exatamente disso: era homem que escrevia bem numa profissão em que escrever mal é prova de cientificidade. Ele próprio tinha consciência do problema: “Se eu puder vir a ser alguém, a realizar alguma coisa, não é sociólogo, nem antropólogo, nem historiador que desejo ser [...]. Nem a obra de minha inspiração principal não é a de pura realização científica [...] nem em história ou filosofia sistemática. E sim obra de escritor que se sirva de sua formação em parte científica, em parte humanística, para ser escritor”.

O que afirmava, bem entendido, reivindicando sua formação científica em Biologia, Geologia, Psicologia e Ciências Políticas, Jurídicas e Sociais, estas últimas com a intenção evidente de menoscabar os conhecimentos puramente jurídicos de Rui Barbosa, já então superados, segundo afirmava. Com essas e outras alusões depreciativas, menosprezava, precisamente, o que a personalidade de Rui Barbosa representava no Brasil do seu tempo e de todos os tempos: a força moral e educativa em face de instituições e costumes que punham toda a ênfase num juriscidismo mecânico e burocrático.
Se, como já se disse, é autobiografia toda obra de literatura, isso é especificamente verdadeiro no que se refere a Gilberto Freyre e Casa Grande & Senzala, observa Ribeiro Coutinho em verdade que se pode aplicar a toda a sua obra, e, entre todas, as que lhe inspirou a visita oficial às antigas possessões portuguesas de Ultramar. O que, levado pela vaidade, bem pode ter sido o grande erro de sua vida, fossem quais fossem as reservas mentais com que a empreendeu. Data daí, como se sabe, o recrudescimento dos ataques que passou a sofrer e dos quais jamais se recuperou por completo. Era um “narcisista declarado”, observa Ribeiro Coutinho, lembrando os ares desafiadores com que desembarcou no Recife, de volta dos Estados Unidos, vivendo por algum tempo o papel de “retorno do nativo”, desajustado na mediocridade do ambiente, “indivíduo sob muitos aspectos antipático, irritante, esnobe, usando um monóculo que lhe acentuava o ar pedante, um Derby hat, roupas e meias inglesas e americanas” (Diogo de Mello Menezes).

Por pitorescas que sejam, mais tarde corrigidas pelo amadurecimento, essas singularidades revelam traços de caráter que percorrem em filigrana não só sua obra, mas a sua personalidade, o que tudo seja dito sem a menor intenção depreciativa e sem faltar ao respeito que merece. Se a obra é autobiográfica, o personagem pode ser visto como figura literária, completando-se por traços psicológicos que conferem sabor quase físico à leitura, a “avidez dos sentidos”, assinalada por Ribeiro Coutinho: o Nordeste “com todas as suas cores e formas... o barroco das igrejas... sabores e gostos: peixe cozido com pirão e doces de tabuleiro ... acetinado de manga e lisas superfícies de jacarandá antigo, que evocam carne de mulher [...].”
Ele apresentou Nordeste como “livro quase impressionista”, qualificativo que se pode aplicar a toda a sua obra, não como censura, mas pelo que realmente é, quero dizer, técnica de expressão e a maneira de ver o mundo, em que a luz substitui a linha e a cor é um elemento orgânico. Parte desse impressionismo contaminou a imagem do Brasil que desejou transmitir como imagem ampliada do Nordeste, origem de contestações contra as quais sempre reagiu e que acabou aceitando com relutância quando conheceu melhor o Brasil meridional.
Wilson Martins escreve semanalmente no JB

 

 

 


 

24/11/2005