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Wilson Martins


 


Vozes poéticas

Jornal do Brasil
10.09.2005

 

O título Vestígios (Rocco) evoca um dos temas característicos de Affonso Romano de Sant’Anna – o fascínio pelo testemunho deixado ao longo dos séculos pelas civilizações que se extingüiram. É a meditação, entre tantas, de “A catedral de Colônia”, que há 25 anos lhe inspirou um dos mais belos poemas jamais escritos em português ou em qualquer outra língua, agora reevocado pela memória sentimental: “Esta Catedral/ a vejo 25 anos depois/ de diversos prismas do Oriente, o Sol / numa rajada a iluminou. / À noite, uma luz azul / de qualquer ângulo que a contemplo / a contamina (...). ”

É o canto épico de gerações incontáveis, que só pode ser sentido em sua intensidade e significação por quem já via a majestosa igreja, por quem, vendo-a, vê, ao mesmo tempo, o mundo que representa, o gênio humano que a criou, o surdo murmúrio das idades que se sucederam e que, passando e desaparecendo, também se acumularam numa história orgânica: “Aqui, de novo, vago nos seus adros / contemplo seus transeptos/ contorno seus altares / me trespasso em vitrais. / E às gárgulas feroses / que na entrada me espreitam / com suas garras e dentes / enfim / me submeto” (“Catedral revisitada”) .

“A catedral de Colônia” é um poema de cultura humanística, pressupondo leitores suficientemente cultos para perceber o que significam tanto a catedral quanto o poema. Ler poesia não é apenas ler as palavras com que foi escrita, mas incorporá-las no mundo intelectual de que provém, o que mostra a distância mental que vai de Affonso Romano de Sant´Anna aos exercícios escolares (não raro de escola primária) que freqüentemente querem passar por poesia literária. São os “vestígios” que o atraem: “De algumas coisas não se têm vestígios / utensílios / obras / costumes / e sentimentos / que caíram em desuso. // De algumas coisas não se têm mais vestígios (...). ”

Visitando Pasárgada, a cidade real que Manuel Bandeira tornou imaginária, o poeta vive a sensação por assim dizer concreta e histórica da realidade imaterial e fictícia que é o tempo, tema que percorre em filigrana toda a sua poesia: “Aqui jaz 'o rei dos reis' / cujo império da Babilônia à Etiópia / do Afeganistão à Capadócia / ia onde seus arqueiros e cavalos / chegassem (...) . Caminho entre derribadas pedras / me atrevo entrar no Portal da Casa / na Sala de Audiências / no Palácio Residencial / e piso os quatro degraus restantes / do Altar do Fogo / com quatro homens alados em releve (...)”.

Ubi Sunt?, perguntam os poetas através das idades. Contudo, as coisas mais frágeis e insubstanciais resistem e sobrevivem onde as pedras se desintegram: a obra de arte sobrevive às cidades e aos monumentos de bronze. Nessas perspectivas, Affonso Romano de Sant´Anna escreveu com “Eles também” um poema inquietante, irônico e resignado: “Eles também ouviram Mozart e Bach / Eles também assistiram Sófocles e Shakespeare / admiraram Dostoiévski, Kafka e Balzac (...) Eles também citaram Platão, Hegel e Nietzsche / passearam pelas ruínas gregas pelos canais de Veneza / e se encantaram com Paris (...) Alguns foram notáveis / outros nunca apareceram nos jornais”. A lição de tudo isso irrompe no último verso como o boneco de mola saltando da caixa: “E, no entanto...”.

Toda a existência humana contêm-se nesse advérbio – o advérbio do destino, mas era preciso que um poeta o assinalasse. Ele passou por Delfos – onde foi Delgos, em busca da resposta definitiva: “Alguma coisa / o oráculo dizia / dizia / dizia alguma coisa / que decifrar não conseguia”. Há também a ironia da História e das glórias que se desfizeram ao atrito dos anos: “No Palácio de Agamenon / em ruína / um guarda de boné / palita os dentes / enquanto nós / ruminamos a história (...). Onde é Ítaca? Onde é Ítaca? ”. E Persépolis, outra Pasárgada mitológica. “Dario no trono majestático / tem na mão a flor do lótus e o cajado real (...). ”

Na pintura de outras épocas cristalizaram-se em imagens a filosofia de vida e o código de costumes, registros a que, como se sabe, Affonso Romano de Sant´Anna não é indiferente, acompanhando-os com a sensibilidade, a competência e o interesse que conhecemos. Nessa pauta, nossa época terá deixado alguns vestígios sardônicos e anticlimáticos: “Estou diante da Batalha de São Romano, de Paolo Uccelo. / E exijo respeito. // Não me venham falar de Marcel Duchamp”. Num mundo de tanta beleza idealizada, como a Maria Madalena de Perugino, que nos permite entender “o que nela viu Nosso Senhor”, devemos pendurar idealmente, como um memento mori, os quadros de Piranesi, “que fez das ruínas sua obra”: “Outros pintavam / o que resplandecia, ele / às ruínas se aplicava: / colunas partidas / sarcófagos / árvores carcomidas / serpentes e prisões escuras / desoladas paisagens / de Roma antiga”.

Com a mesma sensibilidade e cultura literária, além da sabedoria ancestral e orgânica, é outra a arte poética de Marina Colasanti: “Quando Nero queria ver / o mundo melhor / olhava-o através de uma esmeralda. // Quando quero ver melhor / o mundo / eu o olho através / das palavras” (Fino Sangue, Record). Sua poesia responde ao conceito clássico de lirismo, isto é, toma as emoções pessoais e sentimentos íntimos como fonte de inspiração, sem excluir a visão irônica da realidade quotidiana: “Aquele homem tinha um zoológico / no armário. / Um dia / no almoço / trouxe elefantes no peito ... girafas rodeavam-lhe o pescoço ... houve joaninhas / gatos e macacos ... / A todos ignorava / embora os escolhesse / com cuidado. / E sem olhar-lhes o pêlo / ou pena ... a todos igualmente chamava / gravatas”.

Há vários instantâneos da vida moderna, como a água, que já não bebemos da fonte, mas compramos no mercado, pegando “na saída / com cartão”, ou a extraordinária visão de Marco Polo na Quinta Avenida, “esquina do mundo”, em paralelo com o lado melancólico e até sombrio – as lembranças da guerra e as evocações de infância de uma Europa que só vive na memória. É poeta que gosta do poema “que fala de ovo frito e latido de cão”, e que sabe ver, realmente ver, “aquela fruteira ... com duas laranjas e uma pera”, poeta, em suma, integrada no mundo físico e na realidade palpável.
 

 

 


 

24/11/2005