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Wilson Martins


 


Estante da crítica (II)


09.04.2005
 

Integradas nos estilos de época (eles próprios resultantes de um feixe extremamente complexo de fatores), as escolas literárias e artísticas não têm existência autônoma, respondendo a momentos históricos determinados. Claro, é impossível fixar-lhes datas rigorosas de começo e fim, sendo, antes, estados de espírito que reagem contra os códigos vigentes, parte por antagonismo, parte por prolongamento: as regiões fronteiriças são fluidas e indecisas por natureza (Ivan Junqueira, org. Escolas literárias no Brasil. 2 vols. Rio: Academia Brasileira de Letras, 2004).

Contudo, sem a delimitação cronológica tão rigorosa quanto possível não se pode falar de “escola” ou “movimento”, pois toda a sua caracterização depende das famosas “idéias claras e distintas”, requisito cartesiano incontornável do exercício epistemológico: “Entende-se por ‘escola’, em arte e literatura, como a visão do mundo que surge numa certa época e certa cultura passando a ser, depois de aceita, tendência dominante na atuação e formação do artista. Por quê? Porque a arte se renova de época para época, sua dinâmica é fenômeno conhecido na sociologia da cultura” (Nelson Mello e Souza).

Há temperamentos e obras românticas fora da escola, como há anacrônicos ou temporões, cabendo, por conseqüência, não confundir exemplos esporádicos de sensibilidade por um lado e, por outro, programas estéticos deliberados. Pode-se pensar, por exemplo, que o realismo de visão ou de sensibilidade existiu em todas as épocas como um dos tropismos da criação literária, o outro sendo a fantasia, que não se confunde com a imaginação. Há tanta imaginação nas grandes obras realistas quanto nas românticas, simbolistas e experimentais, mas a fantasia tem o seu domínio próprio. É possível generalizar para todas as escolas o que Eduardo Portella escreve sobre o realismo, “um dos movimentos mais indefinidos da história literária. Não porque toda definição já seja em si uma temeridade. Mas provavelmente porque ele, no lugar de ser uma escola, com tudo o que esta possa ter de convencional, é antes o modo de ver a realidade, a disjuntiva do olhar, a apreensão para além do visível, a sinuosa exposição do acontecimento”.

Mesmo assim, ou por isso mesmo, não haverá capítulo da história literária e da crítica mais sujeito aos caprichos idiossincrásicos dos especialistas (?) ou à falta de rigor metodológico. Eis um caso típico: “O ponto de partida para refletirmos sobre o parnasianismo é o seguinte: o movimento costuma ser estigmatizado por não ser o que ele não se propôs a ser. Existem contra ele críticas dessa natureza: o parnasianismo não tem a carga emotiva do romantismo, então o parnasianismo, nesse viés, é um romantismo desfalcado de emoção; o parnasianismo não tem a complexidade do simbolismo; o parnasianismo não carrega a carga irônica de nosso primeiro modernismo. Observe-se, em todas essas condenações, uma espécie de definição negativa, de tentar dizer que o movimento é aquilo que deixou de ser” (Antônio Carlos Secchin).

Por mais que o ignorem os militantes das rupturas vanguardistas, o problema da continuidade e da descontinuidade é central no pensamento crítico da história literária. Leia-se o que Alfredo Bosi escreveu, como seria de esperar, num dos capítulos mais substanciosos da coletânea: “A história literária não obedece apenas a vetores da continuidade, que, sem dúvida, são evidentes quando se consideram as influências, os intertextos, os retornos, as afinidades. A história literária traz também, como tudo o que vive no tempo, as surpresas da descontinuidade. O primeiro Murilo Mendes tem muito a ver com Oswald de Andrade, mas, no conjunto de sua obra, é o seu oposto. Cabral tem a ver com um certo Bandeira, mestre de todos, mas dele se separa pela qualidade ácida do seu lirismo antilírico. Graciliano, por sua vez, teria mais a ver com Maupassant, Eça de Queiroz, Machado e os grandes russos do que com 22. E Guimarães Rosa pouco tem a ver com Graciliano... Jorge de Lima converteu-se ao moderno antiparnasiano depois que escreveu ‘O mundo do menino impossível’, mas o seu roteiro arcaico, afro, bíblico, cristão, daria as costas para 22”.

Oswald de Andrade, Murilo Mendes, Cabral, Graciliano, Guimarães Rosa... estaremos em pleno modernismo? Nem de longe, com exclusão do primeiro, que se tornou progressivamente anacrônico na exata medida em que prolongava a ideologia de 1920. Os outros são modernos, em grande parte antagônicos ao modernismo. Para Lêdo Ivo, cedendo ao rancor nordestino contra os que José Lins do Rego chamava com escárnio “os modernistas de São Paulo” (no momento, aliás, em que eles próprios já se haviam transformado em modernos), a Semana de Arte Moderna e seus desdobramentos foram apenas uma jogada propagandística, sem qualquer conteúdo real: eram mitos, esparrela em que caíram os inocentes brasileiros de outros estados, inclusive muitos nordestinos. O paradoxo está em que Lêdo Ivo, negando a realidade do modernismo, estende-o até aos nossos dias, identificando-o com o moderno. Os “modernistas de São Paulo” foram os modernos do seu tempo, mas os modernos do nosso tempo, a partir, digamos, dos anos de 1940, já não eram mais modernistas.

No movimento dialético “continuidade/descontinuidade”, a literatura moderna só pôde existir, inclusive e sobretudo nas grandes massas do romance chamado, precisamente, de “nordestino”, porque os “modernistas de São Paulo” haviam aberto o caminho, instituindo, nas palavras de Mário de Andrade, o direito permanente à pesquisa estética, a atualização da inteligência artística brasileira e a estabilização de uma consciência criadora nacional, tudo condicionado pela nova sensibilidade que, abortada pela Primeira Guerra mundial, veio a frutificar depois da Segunda.

A lição andradina bem poderia ter sido a de Gilberto Freyre, dominado intelectualmente por outros valores. Ele próprio, anos mais tarde, procurou recuperar o terreno perdido ao reivindicar para o seu regionalismo saudosista a qualidade, aliás discutível, de ser “um modernismo à sua maneira”.

 

 

 


 

24/11/2005