Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins


 



11 de Junho de 1998



Livros úteis

 

 

 

Nada tendo de democrática, a República das Letras é de estrutura imperial e aristocrática, organizada em pirâmide: não só entre os autores, mas também entre os livros, há grão-duques, nobreza de sangue e de toga, marechais e almirantes, cardeais e abades de grande linhagem, ao lado dos párocos de aldeia, em organização gradativamente plebeizante que passa pelos altos funcionários e pelos serviços de manutenção.

E também por academias literárias e classes chamadas ‘‘conservadoras’’, do comércio e da indústria, pela segurança e postos fiscais, tudo repousando na intendência e dela dependendo, além da infantaria anônima que são os livros úteis, tão indispensáveis quanto menos prezados pelos aristocratas do palácio.

São as obras de referência, consultadas às escondidas, como os dicionários, e raramente ‘‘referidas’’ elas próprias, pois delas só nos lembramos em busca de socorro urgente nas emergências, atrás de títulos exatos, datas corretas, bibliografias confiáveis e nomes completos.

São esses, contudo, os marcos quilométricos permanentes, orientadores do trabalho intelectual, como, por exemplo, o "Índice geral da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro" (a. 159, nº 400, jul./set. 1998), cobrindo toda a sua existência desde 1838 aos nossos dias, no 160º aniversário do Instituto: quando uma publicação como essa alcança o número 400, lê-se na apresentação, ‘‘cada qual com algumas centenas de páginas, estamos diante de uma Monumenta que corre o risco de se tornar muito arduamente decifrável, com a informação diluída em volumes, partes e seções e nem sempre intitulada pelos próprios autores à cartesiana, com idéias claras e distintas’’ - donde, claro está, a necessidade de um guia com índices de autores, títulos e assuntos.

As obras de referência precisam de outras obras de referência, como a bibliografia organizada e comentada com competência por Ann Hartness ("Brasil: obras de referência". 1965-1998. Brasília: Briquet de Lemos, 1999). É livro, diz a introdução, que se destina a ser ‘‘utilizado por quem estiver interessado nas humanidades, artes ou ciências sociais, e sua cobertura de assuntos nestas áreas é bem ampla, embora não seja exaustiva. Outras áreas, como, por exemplo, educação, história natural e agricultura, também são incluídas, mas sua cobertura é bastante limitada. Aí se encontram apenas aquelas obras consideradas potencialmente úteis para os usuários principais desta bibliografia. Por exemplo, ‘O livro do mate’, um compêndio de fatos sobre a erva-mate, que se encontra no capítulo ‘Agricultura’, poderá servir para quem estiver interessado na economia, história, literatura, folclore e outros campos, além do especialista em agricultura".

Cobertura, no caso, ‘‘bastante limitada’’, pois, registrando um opúsculo de ‘‘informações sucintas’’ (Teresa Urban. "O livro do mate", 1990), ignora o melhor trabalho existente sobre a matéria (Temístocles Linhares. "História econômica do mate", 1969). O que prova, diga-se de passagem, a necessidade de boas compilações de referência, como, digamos, o "Catálogo dos periódicos da Coleção Plínio Doyle", organizado por Beatriz Amaral de Salles Coelho (Rio: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1998). São 1.730 títulos, atualizados até fevereiro de 1998, porque Plínio Doyle tem a virtude dos bons bibliófilos, quero dizer, a de jamais considerar completa qualquer bibliografia.

Na apresentação do volume, Homero Senna observa ‘‘como era rico, em outros tempos, o comércio de livros e publicações antigas no Rio de Janeiro. Um advogado como Plínio Doyle, ao deixar seu escritório no fim da tarde, podia correr os alfarrabistas e encontrar preciosidades como as que pacientemente soube reunir". Contudo, trata-se de um bibliófilo atípico, pela generosidade com que abria os seus tesouros à consulta de pesquisadores dos mais variados países, sendo freqüente encontrar-lhe o nome nas colunas de agradecimentos de teses universitárias.

É desnecessário acentuar a importância dessas coleções, conclui Homero Senna, ‘‘não só pela sua raridade (todo mundo lia, mas pouco gente se lembrava de guardar os jornais), senão também porque nelas se reflete a evolução de nossa literatura, nestes últimos sessenta anos". Homero Senna lembra ter ‘‘suscitado reparos’’, em 1965, a afirmação do jornalista que considerara a biblioteca de Plínio Doyle como ‘‘a maior coleção de livros raros do Brasil". A doyleana era, de fato, preciosíssima, ‘‘tanto que acabou sendo adquirida para a Casa de Rui Barbosa, cujo acervo bibliográfico, já reconhecidamente amplo e valioso, hoje enriquece sobremaneira".

Devem-se, igualmente, a Plínio Doyle a idéia germinal e os recursos bibliográficos do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira, que, sob a chefia de Eliane Vasconcellos, vem publicando indispensáveis inventários de escritores, o último em data (1999) dedicado a Vinicius de Morais, na série que, iniciada com Thiers Martins Moreira, prosseguiu com Augusto Meyer, Manuel Bandeira, Lúcio Cardoso, Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade.

Esses são aristocratas da monarquia literária, na qual, pela força das coisas, marcaram o seu lugar hierárquico e na ordem simbólica da inteligência. Foram assim sagrados e consagrados pelo juiz infalível e implacável que se chama posteridade - essa inimiga da atualidade e das modas. Mas, só garantem referência aos seus nomes quando incluídos nas obras de referência.
 

 

 

 

 

 

22/09/2005