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			Wilson Martins 
   
			
			
  28.07.97
 
			
 Discussão Ociosa
 
 
			
   
			A 7.ª edição do famoso Manifesto 
			Regionalista, de Gilberto Freyre (org. Fátima Quintas. Recife: 
			Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana, 1996) procura reavivar 
			uma polêmica que já se pode legitimamente considerar como ociosa. Em 
			uma palavra, trata-se de saber se esse texto foi escrito em 1926 e 
			então publicado como lançamento do chamado Movimento Regionalista do 
			Nordeste, ou se foi escrito somente em 1952, já sob a forma 
			retrospectiva que veio a adquirir, aceita pelos estudiosos até que o 
			próprio autor reconhecesse expressamente a mistificação.  
			Porque a verdade é que a reconheceu: a 
			primeira edição aparecia "vinte e cinco anos depois de ter surgido 
			oralmente", escreveu no prefácio para a 6.ª edição, embora em 1951 
			houvesse afirmado, em palestra no Instituto Joaquim Nabuco, que 
			realmente escrevera e lera durante o Congresso "as palavras que 
			ficaram conhecidas como 'Manifesto Regionalista'." Na realidade, e 
			segundo o noticiário do Diário de Pernambuco (9/2/1926), o trabalho 
			lido na primeira sessão plenária tratava da "estética e as tradições 
			da cozinha nordestina", tradições, essas, que estavam se perdendo. A 
			tal ponto que "a nova geração de moças já não sabe fazer doces. Já 
			não tem gosto para ler os livros de receita de família." O que, no 
			seu entender, era a "verdadeira leitura para mulheres, além dos livros de missa."
 
			Para a primeira edição, em 1952, ele 
			"reconstituiu com alguns pequenos acréscimos" (sic} o manuscrito "há 
			anos abandonado". Assim, o pronunciamento durante o Congresso foi 
			"algum tempo depois publicado como Manifesto" - algum tempo sendo, 
			no caso, 25 anos. Divulgado "em parte por jornais da época", 
			escreveu no prefácio para a 5ª edição, o texto reaparecia "sem nenhuma alteração 
			essencial", o que, bem entendido, não excluía desenvolvimentos 
			inspirados por sua própria história intelectual e pelas novas 
			perspectivas abertas pela trajetória do texto no quarto de século 
			desde
 então transcorrido.
 
			Em 1926, tinha sido apenas uma dentre 
			as numerosas comunicações apresentadas num simpósio que Amaury de 
			Medeiros, orador oficial no encerramento, dizia estar sendo chamado, 
			"talvez um pouco enfaticamente, Congresso Regionalista do Nordeste". 
			De qualquer maneira, ninguém jamais lhe contestou a realização; o 
			que se pode contestar, segundo o testemunho autorizado de Gilberto 
			Freyre, é que o respectivo Manifesto tenha sido escrito como tal 
			naquele ano. Nessas perspectivas, torna-se despropositada a tática 
			advocatícia de desqualificar a testemunha, nomeadamente o jornalista 
			Joaquim Inojosa, aliás introdutor do Modernismo no Nordeste, como 
			responsável pela polêmica que acabou por esclarecer a questão (na 
			qual, ai de mim! eu mesmo tive alguma parte).
 
			Tratando-se de uma fixação de datas, 
			compreende-se mal que Antônio Dimas o censure, no prefácio, por sua 
			"obsessão cronológica e nominalista", o mesmo Antônio Dimas que, 
			entretanto, confirma: "Tudo indica que, de fato, Gilberto maquilou 
			seu passado, neste caso, e que Inojosa tem razão." As primeiras 
			vítimas das polêmicas tendenciosas são o raciocínio desapaixonado e 
			a isenção sentimental. Aceita-se hoje sem relutância, conclui Antônio Dimas, que "o Manifesto Regionalista 
			só veio a público em 1952 e que, portanto, não pode ser tomado como 
			documento fidedigno de posições defendidas há setenta anos," - mas, 
			acrescenta em conclusão que inadvertidamente o reduz à 
			insignificância: "não se pode, por outro lado, fazer de conta que 
			tudo depende dele, porque um outro documento, o Livro do Nordeste, 
			pode
 perfeitamente informar sobre as pretensões em voga naqueles anos na 
			capital de Pernambuco."
 
			Não há dificuldade em aceitar que, em 
			1925, a edição especial do Diário de Pernambuco contivesse em germe 
			as concepções regionalistas de Gilberto Freyre. Mas, daí a antedatar 
			para 1924 o Congresso e seu marífico Manifesto vai a enorme 
			distância que não se pode transpor. O propósito evidente dessa 
			reconstrução da história era torná-los contemporâneos do Modernismo 
			de 1922, sugerindo, ao mesmo tempo e contraditoriamente, a sua 
			independência e as afinidades com o que se fazia em São Paulo.
			 
			As referências ao "Regionalismo 
			tradicionalista e, a seu modo, modernista" tornaram-se obsessivas 
			nos escritos de Gilberto Freyre, até culminarem na locução 
			hifenizada que o descaracterizava: Movimento 
			"Regionalista-Tradicionalista - Modernista" (prefácio para a 6.ª 
			edição), assim como o Marxismo foi metamorfoseado, por idêntico jogo 
			de hífens, em "Marxismo-Leninismo - Stalinismo", até que as 
			vicissitudes da história o fossem, gradativa e sub-repticiamente, 
			despojando dos apendículos, para torná-lo de novo, em nossos dias, o 
			velho e bom marxismo do século XIX. Paralelamente, os títulos das 
			sucessivas edições passaram a discretamente omitir, desde os anos 
			50, o fatídico milésimo de 1926.  
			O que até hoje tem sido negligenciado 
			é o estudo da ideologia por assim dizer implícita refletida na 
			ênfase ao tradicionalismo do Congresso. Claro, trata-se, por 
			definição, de ideologia de Direita, no que não vejo nada a censurar, 
			reputando-a simétrica e correspondente à de Esquerda, e, por isso, 
			igualmente legítima. Mas, seria necessário assinalar que os mestres de pensamento referidos no Livro do 
			Centenário e no Manifesto são representantes paradigmáticos da 
			Direita européia: o "espírito poético" de Mistral e a "inteligência 
			realista" de Maurras, por exemplo. O ensaio inicial do Livro do 
			Centenário "deveria escrevê-lo o insigne Antônio Sardinha", enquanto 
			Odilon Nestor era louvado por ser barresiano, e, para não faltar 
			nada, lisongeava-se por ter no Conde de Aurora, em Portugal, um dos 
			grandes entusiastas do tradicionalismo recifense. Claro.
 
 
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