Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins


 



Prosa & Verso, 12.2.2005



Estante de romances (II)




 

Desenvolvendo-se “em espiral”, somente nas páginas finais o romance de Liberato Vieira da Cunha (“O homem que colecionava manhãs”. Rio: Objetiva, 2004) revela a verdadeira história do pequeno funcionário municipal de Porto Alegre, a princípio apresentado não como “o homem que colecionava manhãs” (título ao mesmo tempo fantasioso e despropositado), mas como o biscateiro que, para completar os magros proventos do serviço público, assume as antigas funções de “escriba de aldeia”, aliás orgulhoso do seu talento escriturário, encarregando-se da correspondência dos que não sabiam escrever.

Ele mesmo se identifica enquanto protagonista-narrador, revelando, de passagem, alguns hábitos de modesto hedonismo: “Como pode um homem, aos 36 anos de sua solidão, passar sem vinho? Como pode passar sem conhaque, sem cana, quando a grana é escassa e sua ocupação é perder a vida?”. É por aí que se envolve em situações desagradáveis, sem relação direta com a intriga, mas todas derivadas dos destinatários. Ele mesmo esclarece que as suas ocupações são outras, além de perder ou passar a vida: “Das 13h30m às 18h30m, ainda horário de guerra, sou o almoxarife de uma seção da Diretoria de Praças e Jardins da Prefeitura. É uma repartição pequena e minhas tarefas também: cuido de que não roubem material de expediente, vasos, arandelas, tesouras de aparar grama, veneno de formiga, regadores e um monte de outras inutilidades. Mas um almoxarife ganha um conto e quinhentos. E como só estou substituindo o almoxarife-titular, o Amilcar, de momento internado na Santa Casa por umas complicações de pulmão, me pagam por meu verdadeiro cargo, de auxiliar, o que me reduz a míseros 750 cruzeiros a cada fim de mês. O que me defende são as cartas, com que reforço o orçamento à noite, entre dois goles de vinho”.

A atualidade da história — conseqüência de velhos dramas de família que serão revelados pouco a pouco — passa-se durante a guerra, conforme menciona de passagem ao referir o horário do expediente, quando a moeda já era o cruzeiro, de forma que a alusão anterior ao “conto e quinhentos” se deve a uma distração do romancista em busca de “cor local”. Não importa. O que importa é o sucessivo aparecimento de figurantes destinados a papéis importantes, como o irmão Alfredo e o crápula Faura: “Aprendi a ser condescendente com os débitos alheios e com os meus próprios. Sobre os débitos alheios: meu irmão Alfredo, o jurisconsulto, me prometeu colocação em sua banca de advocacia, na Secretaria da Fazenda, no IPE. Mas Alfredo é um tanto esquecido. Entre uma promessa e outra fui professor particular, balconista de livraria, caixeiro-viajante, representante de uma indústria de calendários com mulher pelada, acabei tendo de topar o emprego na Diretoria de Praças e Jardins (...)”.

Esse currículo adquire sentido quando viermos a conhecer suas origens familiares, banido pelo episódio dramático só mais tarde revelado: “Em Alhandra meu pai reunia dez, 12 convivas aos sábados. Eram pessoas de qualidade: o prefeito, o juiz, o promotor, o vigário, advogados, comerciantes, fazendeiros. Aqueles almoços servidos em louça inglesa por um pequeno exército de empregados nunca terminavam antes da quatro”. O mesmo pai, rememora em outra passagem, que o expulsou de casa por meio de maldições bíblicas: “Meu pai não estava interessado no que eu lhe dizia, agoniado. Largou meus ombros, me olhou com um ódio tão concentrado, que tremi: — O senhor se vá — ordenou. — Nunca torne a esta casa. Você nunca foi meu filho”.

Aí está o segredo tenebroso que dá sentido ao comportamento do protagonista e suas relações com os demais figurantes, de forma que só em retrospecto o romance se configura de forma coerente. O que parecia fragmentário e dispersivo acaba por se estruturar no quadro em que as perspectivas de leitura se modificam na medida mesmo em que prosseguem. É o que acontece nos segmentos ocupados pela “deusa de olhar diáfano”, ocasionalmente entrevista aqui e ali, antes de poder encontrá-la em circunstâncias igualmente misteriosas. Há um instantâneo de rua: “É mesmo um mistério. Aqui estou eu em primeiro plano. Ao fundo está a deusa. A deusa fala com alguém. A deusa fala com Alfredo, o jurisconsulto. Minhas hipóteses são quatro. A deusa pediu uma informação a Alfredo, ela não é daqui, ainda não se orienta bem na cidade. (...) A deusa conhece Alfredo. É evidentemente uma dama da alta, pelo jeito com que se veste. (...). A deusa conhece muito bem Alfredo. Alfredo é o advogado dela, está tratando de renovar seu visto, está dando um jeito de naturalizá-la brasileira. (...) Hipótese quarta. A deusa está tendo um caso com Alfredo, ambos precisam ser discretos (...)”.

Afinal, uma notícia de jornal revela que a deusa era Victoria Sofia de Austria y Rosales, por onde entramos pelo romance de capa e espada: essa Victoria, que se chamava Sofia, que se chamava Pilar, “era evidente que ela lutara na Guerra Civil, nas fileiras dos republicanos, e que era uma refugiada”, tudo isso correlacionado a homicídios brutais cometidos pela cidade com suspeitas motivações políticas. Levada à polícia, “contara que era espanhola. Que seu nome real era Pilar Lucientes. Que o trocara por motivos políticos (...). Que muito jovem se unira à luta dos republicanos contra Franco, como aliás sua família e seu noivo, morto num dos bombardeios de Barcelona. Que com a vitória dos golpistas fora presa e torturada em um campo de concentração”, etc., etc..

Tudo termina no plano romanesco que convém: retirando-se para as águas termais de Santo Isidoro, em Turvo, a deusa não esqueceu de comunicar o endereço ao bem-amado, que, saltando do trem em Coqueiros, comunica-lhe a chegada, pedindo-lhe que se apresse e tome um carro para buscá-lo. Ele se promete gastar “cem séculos de eternidade colecionando manhãs”. No auto parado que o espera “tem uma voz angustiada falando espanhol”, assim concluindo uma história escrita com graça e imaginação, rica em peripécias, sem jamais, ou quase nunca, cair no melodrama e no sentimentalismo.

 


 



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12/08/2005