Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins


 



Gazeta do Povo, Paraná, 1.7.2002


Moinho de poemas



 

Quem era Luiz Delfino? Mero escritor “de ordem terciária”, praticante do levantismo charlatanesco, caracterizando-se pela “imitação sediça palavrosa, inchada, túrbida do estilo de Victor Hugo, levado ao supremo exagero logomáquico, revestindo umas cenas do Oriente […] que ele nem ao menos conhece como erudito, porque sua ignorância filosófica e histórica é profunda.” E mais: “É um escritor sem livros!… Belo chefe, grande general sem batalhas! […]… poeta palavroso, enfático, desigual, obscuro e áspero. Não tem sentimento, não tem idéias, nem originalidade. […] O estilo é bombástico e martelante; é imitador de Victor Hugo deturpadamente. Atordoa os ouvidos e o bom senso […].”

Mas, afinal, quem era Luiz Delfino? Nascido em Santa Catarina, “é, pela variedade e extensão de sua obra, o maior poeta do Brasil. […] Contentamo-nos em afirmar ser ele de todos os nossos poetas, sem dúvida, o de mais imaginação, o de surtos mais possantes, e talvez o de vocabulário mais rico.” À vista de apreciações tão discordantes, cabe perguntar, não qual era o verdadeiro Luiz Delfino, mas, antes, qual o autêntico Sílvio Romero, autor de ambos os julgamentos a poucos anos de intervalo. São fatos que se prendem à pequena história da vida literária, mais que à história da crítica, relacionados com uma conjuntura em que o pobre Luiz Delfino entrou mais ou menos como Pilatos no Credo.

Tendo velhas contas a ajustar com Machado de Assis desde as críticas desfavoráveis aos seus Cantos do fim do século, Romero encontrou o pretexto em 1882: alegando existir a opinião generalizada de que o poeta e o romancista eram então “legítimos representantes do Naturalismo no Brasil”, escreveu o furibundo panfleto de 50 páginas in-12.º que mandou imprimir nas oficinas da Província de S. Paulo (O Naturalismo em liberatura). Composto em estado de desordem colérica, o panfleto só nos interessa neste momento no que se refere a Luiz Delfino: ridicularizando-o por ser médico e rico, analisa-lhe alguns poemas a fim de demonstrar-lhes a obscuridade ou a verbosidade, para concluir: “não passa de um Leconte de Lisle de dois palmos de altura.”

Daí para ser “o maior poeta do Brasil” na geração de Olavo Bilac e Alberto de Oliveira (que se referiu aos seus “soberbos sonetos”), além de Raimundo Correia, Rodrigo Otávio ou Teófilo Dias a incongruência mais do que evidente derivou de um daqueles rompantes apaixonados e algo esquizofrênicos nele peculiares, explicação lembrada por Lauro Junkes: com o falecimento de Tobias Barreto em 1889, foi apresentado projeto de lei ao Congresso, concedendo à viúva uma pensão de Estado. Aprovado na Câmara, mas encontrando resistência no Senado, Luiz Delfino, então deputado, “pronunciou um dos seus mais inflamados discursos para defendê-lo, elogiando o pensador e jurista Barreto, mas sem referência ao fato de ter sido poeta. Aprovado o projeto, e tendo Sílvio Romero tomando conhecimento da defesa e elogio partidos de Luiz Delfino, alterou radicalmente sua opinião crítica sobre a poesia deste: de poeta medíocre e palavroso, passou a considerá-lo o maior lírico do Brasil” (Luiz Delfino. Poesia completa. I: Sonetos; II: Poemas longos. Org., est. e bibl. por Lauro Junkes. Rev. e atualização lingüística Terezinha Kuhn Junkes. Florianópolis: ACL. 2001).

Pode-se lamentar que esta edição inverta a ordem natural de leitura num poeta cuja biografia literária vai da sensibilidade e das técnicas românticas para o novo código parnasiano. Se o soneto, de fato, foi a forma por assim dizer espontânea e predileta do Parnasianismo, era no poema longo que os românticos se sentiam mais à vontade, o poema de graves harmônicas místicas, sociais, filosóficas, históricas ou políticas. As “idéias novas” passavam para a temática poética, como, por exemplo, o poema “Solemnia verba”, dedicado por Luiz Delfino à Espanha, em 1879, ou, no ano seguinte. “A morte do Legendário – o Marquês de Herval”: “Montado em seu ginete de batalha, / Ele impunha terror mesmo à metralha […].”

Em 1884, refletindo outro clima social, divulgou alguns poemas abolicionistas, como “À arena”, “À Nação’ e “In excelsis”, em que é, talvez, menos dramático e eloqüente do que Castro Alves: “Eu sou a musa nova, a musa da esperança. […] Vem de lá uma voz, que clama: ó mocidade, / Semear a ciência é ter a liberdade”. Contudo, tanto nos poemas longos quanto nos sonetos, ele se entregava à facilidade e ao descuido, como em “Fiat libertas”, inspirado pelo 13 de maio: “Ao ver que não há mais na pátria um só escravo… / Ouço o rumor de um bravo”. No soneto “Tela apagada”, escreve que em agosto do ano anterior havia “mais calor, menos frio”; em outro, refere-se à mulher amada “enfiando uma idéia noutra idéia”; mais grave é o ridículo da expressão infeliz: “E tudo que ela encerra, e nela abunda, / se esconde […]”, encadeamento constrangedor, se jamais houve algum, apesar da vírgula salvadora.

Até a gramática acaba contundida nessa produção desenfreada. Querendo dizer que fugia de uma admiradora, escreve: “vai fugi-la”, incidindo mais uma vez nas regras de regência. Em outro soneto (“O nariz”), deve-se ler que Cellini “pule”, e não “pole”, o marfim novo (verbo polir); da mesma forma, “todos a fogem”, escreve o poeta a respeito da serpente, desejando certamente dizer: “todos lhe fogem”. No impulso do artifício gratuito, ele descreve todas as partes do corpo feminino (quase todas…), numa série sistemática de sonetos: o cabelo, a fronte, os seios, o cotovelo e assim por diante, e mesmo a “unha do dedo mínimo do pé”, terminando numa tragédia de boneca: “Mas esta unha, num dedo escuso, é certo, / Roça-te a carne, um nada, aos pés… desperto / Logo, logo o teu sangue – às armas – grita”.

Recolhida em volumes pelo filho Tomás entre 1926 e 1943, a obra esparsa de Luiz Delfino soma 1.293 poemas, dos quais 1.157 sonetos, num total de 36.987 versos. Grandioso monumento histórico, a edição da Academia Catarinense de Letras é, apesar de tudo, um ato de justiça com relação ao escritor que, chegando a ser votado Príncipe dos Poetas Brasileiros, não pode ser ignorado na história da nossa poesia.


 



Luiz Delfino
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12/08/2005