Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins


 



Prosa & Verso, O Globo



As numerosas mansões da crítica literária
 


 


 

Também na Casa da Crítica há numerosas mansões, e não apenas duas, a impressionista e a universitária (?), como queria o nosso eminente teórico (Afrânio Coutinho), que, aliás, abordava as teorias com espírito impressionista. Há críticos superficiais de leituras apressadas, como Assis Brasil ("Teoria e prática da crítica literária", Rio: Topbooks, 1995) e críticos de insopitáveis impulsos polêmicos, como Marcos de Farias Costa ("À queima-roupa", Maceió: SER-GASA, 1995), cujos artigos, diz na introdução, valem pelas qualidades dos seus defeitos. É um espadachim de província, "líder intelectual da geração nas Alagoas (...) personalidade que ninguém segura (...) batalhador aguerrido em várias frentes" (prefácio de Xavier Placer).

Mesmo quando admira, pode-se dizer que é algo excessivo: escrevendo sobre o "último livro de poemas de João Cabral" ("Agrestes", 1985), considera-o o "maior lançamento da década, o que prova que a poesia é o que revivifica a língua", enquanto Augusto de Campos teria produzido àquela altura "o mais belo livro composto no Brasil nos últimos anos". Uma das características do seu estilo é a falta de respeito intelectual e até de equilíbrio, qualificando, por exemplo, Josué Montello de "múmia das letras brasileiras" ou Gilda de Melo e Sousa como "nossa Rita Hayworth de massa cinzenta". Isso para elogiá-la. O livro reúne breves ensaios de divulgação sobre música e literatura de autores estrangeiros, a mesma tendência cosmopolita que distingue, se assim me posso exprimir, o crítico e historiador Assis Brasil.

A crítica brasileira, "começando incipiente", como ele diz, chegou a grande desenvolvimento com o romantismo. Houve também um "período de transição" entre o simbolismo e o modernismo, depois do que chegou à maioridade (sic). Inicia-se em 1956 o que denomina a Nova Literatura, sem esclarecer-lhe a natureza nem a permanência. Apesar de tudo, a conclusão é animadora: "A crítica literária de hoje assume assim e incorpora uma verdadeira soma de tendências, ora mais ligadas à lingüística, ora às filosofias do momento, e até mesmo tenta uma volta salutar ao impressionismo." Segue-se "uma visão dos anos 80", com as resenhas que publicou ao longo da década. Assis Brasil, de seu nome completo Francisco de Assis Almeida Brasil, "já alcançou a casa dos 82 livros".

Casa, estamos vendo, que é uma das mansões da crítica, em cujo exercício, dizia o velho Fidelino Figueiredo, pioneiro em língua portuguesa da crítica literária como ciência, há sempre dois momentos impressionistas: o ponto de partida e o ponto de chegada, somente no trajeto intermediário entre os objetivos de investigação e análise. É o modelo que propõe Antônio Carlos Secchin com os "escritos sobre poesia & alguma prosa" ("Poesia e desordem". Rio: Topbooks, 96). Nos comentários ao livro ambicioso em que Eduardo Prado Coelho procurou triangular "Os universos da crítica" (82), ele enfrenta essas discussões mais ou menos solipsistas: "Constatada a insuficiência de métodos estruturalistas para dar conta da obra de arte, passamos aparentemente a uma espécie de era de permissividade analítica que é, todavia, tão pouco permissiva quanto a anterior. Saiu de cena a ditadura do modelo objetivo, entrou a da idiossincrasia não assumida, mascarada em imanência do texto".

Se bem o compreendi, ele recusa a crítica como obra arbitrária de imaginação em que a fantasia do analista procura rivalizar com a obra de arte literária. Seria de aconselhar que se limitassem a ler - mas que saibam ler, a exemplo dos modelos propostos por Carlos Felipe Moisés num pequeno tratado prático de finalidades didáticas ("Poesia não é difícil". Porto Alegre: Artes e Ofícios, 96). De minha parte, preferiria que o texto fosse didático sem ser paternalista (dirigindo-se aos supostos estudantes como crianças algo retardadas) e menos propenso ao populismo (no tratamento coloquial e descontraído: "Se você estiver interessado em saber, digamos, o que é mecânica celeste(...)."

Essa "introdução à análise do texto poético" é um exercício de leitura e compreensão de poemas específicos que vão de Sá de Miranda a João Cabral de Melo Neto, segundo dez categorias temáticas: autoconhecimento; paisagem, natureza; devaneio; cotidiano; utilidade ou beleza; infância, memória; amor; a morte; o eu e o outro, e, finalmente, a própria poesia. A mansão, no caso, é apenas uma sala de aula, com demonstrações no quadro-negro e outros recursos pedagógicos (pois a tendência contemporânea é tornar o ensino divertido e a aprendizagem mais divertida ainda). No fundo, trata-se de convencer as inteligências opacas de que a poesia não é difícil - enquanto disciplina do currículo escolar.

Mas, em outro plano, pode ser naturalmente difícil, tanto para o crítico quanto para o leitor, se encararmos os poemas pelas minúcias transitórias de sua história textual, como no livro de Telê Ancona Lopez ("Mariodeandradiando". São Paulo: Hucitec, 96). Ela é, com certeza, nossa autoridade máxima em Mário de Andrade, mas agora o seu saber está adquirindo traços místicos de culto e celebração iniciática no Instituto de Estudos Brasileiros da USP, Capela Andradina de Adoração Perpétua.

Com isso, saímos, naturalmente, dos domínios racionalistas e profanos da crítica literária. De qualquer maneira, é impossível imaginar em outro especialista uma identificação tão profunda e autêntica com o seu objetivo de estudo, agora transformado em ícone literário. O que nem de longe desagradaria a um escritor tão ansioso quanto Mário de Andrade pelo reconhecimento e multiplicação dos discípulos.
 

 

 

 

 

11/08/2005