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			Wilson Martins 
   
			
			
  Prosa & Verso, O Globo
 
			
 O universo feminino de 
			Nísia Floresta
 
 
			
 
 
			E dizer que tudo começou por um 
			mal-entendido semântico! De fato, como, depois da Revolução, a 
			Constituinte francesa estivesse discutindo o capítulo dos direitos 
			do homem, Mary Wollstonecraft (1759-1797), imaginando esquecidos ou 
			menosprezados pelos legisladores os direitos da mulher, escreveu 
			febrilmente um ardoroso panfleto ("A vindication of the rights of 
			woman", 1792), imediatamente traduzido para o francês, de onde o 
			tomou Nísia Floresta (1810-1885) para a "tradução livre" que era, 
			antes, uma adaptação, publicada no Recife, em 1832, sob o título de 
			"Direitos das mulheres e injustiças dos homens". 
			Note-se que, em simetria com o texto 
			do projeto francês, a feminista inglesa empregou no singular a 
			palavra woman, o que, num caso e noutro, tinha propósitos puramente 
			jurídicos e legais, como era de sua própria natureza. Contudo, 
			introduzindo uma primeira distorção (sobre a qual se funda, diga-se 
			de passagem, todo o feminismo contemporâneo), Nísia Floresta usou o 
			plural para sugerir conotações sociais mais amplas, embora mais 
			vagas. Não se trata de chinesices lingüísticas e a prova está em 
			que, dois anos antes da sua própria vindication, Mary Wollstonecraft 
			publicara uma outra - a dos rights of men, no plural, por onde 
			entramos nas sutilezas semânticas que o vocabulário feminista 
			claramente ignora (nos dois sentidos da palavra). 
			A palavra men, no plural, observei na 
			"História da inteligência brasileira II", foi empregada no sentido 
			comum de gênero humano, o mesmo em que, no singular, é entendida nas 
			línguas neolatinas, sem qualquer conotação machista. Em latim, de 
			onde veio tudo isso, homo designa o gênero humano, por oposição aos 
			animais, e vir é a designação do homem, por oposição à mulher. Como 
			as feministas, em outra incorreção característica, passaram a 
			designar como "gênero" a condição da mulher, essas noções 
			desaparecem, sem falar no imperialismo implícito que parece atribuir 
			apenas às mulheres a condição de gênero humano. 
			Aqui, entretanto, não é de semântica 
			que se trata, mas da falta de correspondente, em língua inglesa, 
			para distinguir o homo do vir. Na verdade, os romanos raramente 
			empregavam homo para se referir aos indivíduos do sexo masculino, 
			mas isso é outra história, talvez indispensável para realmente 
			compreendermos todas essas veredas que se bifurcam. De qualquer 
			maneira, escrevia Mary Wollstonecraft no panfleto de 1792 (primeira 
			resposta ao livro de Burke, "Reflections on the French Revolution"): 
			"É necessário repetir que há direitos que os homens, como criaturas 
			racionais elevadas acima dos brutos pelo desenvolvimento de suas 
			faculdades, herdam ao nascer; não pode haver prescrição contra esses 
			direitos naturais, que os homens recebem, não de seus antepassados, 
			mas de Deus". 
			Ela tirava analogia entre o que a 
			Revolução Francesa estava fazendo pelos "direitos do homem" e o que 
			se devia fazer pelos "direitos da mulher" (no singular): "Podem-se 
			esperar os mais salutares efeitos de uma revolução nos costumes 
			femininos para o aperfeiçoamento da humanidade". Revolução houve, 
			realmente, com o conseqüente regime de Terror dois séculos mais 
			tarde, logo seguido pelo período termidoriano das ilusões perdidas e 
			das reflexões realistas. Foi uma revolução que começou pela tática 
			das guerrilhas, conduzidas por destemidas combatentes isoladas - 
			menos isoladas, aliás, do que geralmente se diz com propósitos 
			polêmicos. 
			Tendo promovido a reedição dos 
			Direitos das mulheres e injustiças dos homens (São Paulo: Cortez, 
			1989), Constância Lima Duarte acrescenta-lhe agora a biografia de 
			Nísia Floresta (Natal: UFRN, 1995), com o desejo de questionar "a 
			afirmação de que a mulher brasileira viveu subjugada à família 
			patriarcal e alheia à realidade política do país (...). Ainda que 
			esta tenha sido a condição de vida da grande maioria da população 
			feminina, sempre houve, por outro lado, as que questionaram a 
			dominação e protestaram escrevendo livros, criando escolas e 
			jornais". 
			Uma delas, Nísia Floresta, que, por 
			isso mesmo, desautoriza os lugares-comuns da retórica feminista. 
			Além disso, exceção feita do seu primeiro livro, ela acompanhou 
			docilmente as convenções temáticas e estilísticas do seu tempo. A 
			exemplo dos biógrafos anteriores, Constância silencia sobre alguns 
			aspectos dessa existência, permanecendo nas exterioridades 
			cronológicas. É certo, como ela escreve que "a aura de mistério, 
			aliada ao preconceito que a envolveu, contribuíram para mantê-la 
			mais distante e desconhecida para nós". Se o preconceito é bem 
			conhecido e até corriqueiro, a autora nada faz para elucidar o 
			mistério - e esse é intrigante. 
			Não se sabe quais eram os recursos 
			materiais, certamente vultosos, que lhe permitiram não só residir em 
			cidades européias de vida cara, mas nelas permanecer inúmeros anos, 
			entregando-se, além disso, a freqüentes viagens turísticas, não 
			menos dispendiosas. Nada se sabe, tampouco, das suas relações com os 
			editores europeus: eram os seus livros publicados em conta de autor, 
			pressupondo, nesse caso, disponibilidades ainda maiores de 
			numerário? 
			Qual foi a repercussão dos livros? 
			Freqüentou os meios literários de Paris ou Roma e, se for o caso, 
			com que resultados? A esse propósito, a autora refere as suas 
			relações de amizade com marquesas, condessas e princesas da 
			aristocracia italiana. Sabendo-se que não é fácil penetrar nesses 
			meios altamente seletivos, seria indispensável conhecer os 
			pormenores de sua avançada social, mantida pela autora no plano 
			hipotético das suposições: "Pelas circunstâncias e pelo que nos é 
			dado conhecer, é possível deduzir que (os amigos romanos de Nísia 
			Floresta) pertenciam, na sua maioria, à classe alta, incluindo aí a 
			aristocracia, os intelectuais e os artistas mais renomados". São 
			aspectos que ainda esperam a biografia investigativa que complete as 
			biografias narrativas convencionais.
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