Vitto Santos

A Poesia de Álvaro Pacheco
 
 
            Por caminhos imprevistos vieram-nos as mãos três livros de poesia de Álvaro Pacheco, intelectual moço do Piauí, há muito com tenda armada no Rio de Janeiro.  Os poetas nortistas ou nordestinos costumam ser verbosos, mais na linha do reconhecimento do que da explicação do mundo.  Seus poemas gesticulam, têm cores vivas e coros altissonantes.  Ao contrário dos mineiros, por exemplo, que trefilam o verso, sóbrios, medidos, recatados. Assim, recebemos os livros com certa reserva, mas desde logo tranqüilizam-nos ao saber que o poeta pertence à estirpe dos Pacheco, na qual se destacaram figuras de talento no campo da política, do  Direito e até das letras.  O talento resgata os impulsos.  Além disso, um dos livros vinha acompanhados do aval de Odylo Costa ,Filho que tem  compromissos com o bom gosto e a seriedade literária.  Isso predispôs a leitura à aceitação.  E não nos arrependemos.  Pasto da Solidão, Margem Rio Mundo e Sonho dos Cavalos Selvagens são botelhas de generoso vinho.  Neles transita a veraz poesia, a que nasce da súbita catalisação do momento poético idôneo e prolonga, aprofunda, acera o clima encantatório no manuseio destro da forma.  Vejamos se não temos razão.

            A metáfora do primeiro título, Pasto da Solidão, antecipa ingrediente de segura validez.  A recusa ao mundo quando não é falsa e exila o artista das ligeirezas e banalidade da vida, os condicionamentos burgueses, faz maturar a inquietação, conduz à preparação do diálogo definitivo com o mistério.  Se não falham os meios de expressão, a  obra produzida reveste-se necessariamente das galas da beleza.  Álvaro Pacheco em certas passagens desse livro realiza versos de nobre inspiração e  requintada leitura.  Anotamos: "O brado de esperança era o desejo/ de não ser imortal, porém amante/ de terna margarida florescente".  O poeta adensa a atmosfera do seu viático: "Pouco a pouco irmão o teu amor/ surgirá dos escombros dessas sombras/ sólido, impávido/ incompreensível/ como uma bela construção de pedra e cal".  … uma linguagem econômica e exata, surpreendente num poeta moço.  E também moderno no bom sentido do despojamento.  Temos ainda no mesmo diapasão tenso, substantivo: No ponto de não ser mais/ ou de ser   a vida toda/ e ter na ponta da unha/ sonho, sal, sangue, silêncio."  E se quisermos mais liberdade, isto é, ruptura com os apaziguamentos da vida, ecos talvez de Fernando Pessoa, eis aqui um brado  redentor: Ah!  você é um sujeito difícil de ser feliz, que só serve mesmo para fazer a barba/ dolorosamente todas as manhãs."

            Pasto da Solidão, apesar da precedência cronológica, é dos três livros que oferece material poético mais rico, mais frutuoso, menos epidérmico.  Por certo, foi elaborado na fase mais sofrida da existência do poeta, sofrimento decorrente, sobretudo, do esforço anímico de desafiar  e conquistar o mundo circundante.  À proporção que o poeta se habitua ao mundo, adere ao meio físico, à platéia, aos comparsas, às testemunhas e, por conseguinte, concede, transige, mimetiza-se enfraquece-se o poder criador, a poesia esmorece e não há ginásticas verbais ou recursos técnicos capazes de fazê-la transcender.  … assim até com os poetas maiores, os audazes, os heróis das grandes contestações que muitas vezes, para poupar-se, se repetem.  Mitigados, vão perdendo desconsoladoramente a comunicação com os estágios superiores da poesia.  Álvaro Pacheco, é claro, ainda se encontra em fase de pesquisa formal, ainda não escavou  todo o fundo de sua mina órfica, mas já enfraquece no segundo livro a modulação do canto.  Margem Rio Mundo é mais circunstancial, pois nele a paisagem protagoniza.  E na verdade, que fabricar de novo se tantos concorrentes célebres já esgotaram a geografia nordestina?  O rio, as estradas cruas, a vegetação, o sol, as pequenas cidades, os tipos populares, tudo isso são dados freqüentados que só ganhariam significação poética em sutil transfiguração.  Manipular esses temas não vem a ser senão compromissos românticos com a terra natal.  Mas aqui e ali o poeta se descuida, esquece os horizontes enfocados e deixa escapar a voz  interior:

                         "Plantando minhas semente
                         nas pedras rubras da estrada
                         nos ventos acres do outono
                         nos olhos céu da manhã". 
                         Outro lírio entre folhagens:
                         "Rio de duas cidades
                         dividido entre tristeza
                         uma ponte assim os une
                         não de aço, de pobrezas".  

            Finalmente, esta súbita e mais enérgica retomada do antigo filão. 

                         "Sei.  Esta hora busca perder-me".
            
            Em Margem Rio Mundo, de outra parte, notam-se tentativas menos felizes, para não dizer frustradas, de desatar a linguagem, libertando-a dos comedimentos léxicos e sintáticos.  Em poesia confrangem utilizações como estas: claraboiar-me, esfrangalhar-lhe, afervento-me, escaldo-me, etc.  Tais pecadilhos, porém, podem rapidamente ser perdoados se se vai ao terceiro livro.  O Sonho dos Cavalos Selvagens, e ali nos reconciliamos com o nobre poeta de Pasto da Solidão. 

             Não obstante os pequenos truques de composição, as variações sincopadas do verso, mera cortesia aos trejeitos em voga, a poesia ressurge recompondo-se em idioma próprio que empresta singularidade e, portanto, autenticidade à mensagem.  SÓ se é poeta quando intuitiva ou lucidamente se possui o dom de desvendar novos mistérios.  O poeta é um inventor.  A sua fala não pode nunca ser uma dublagem.  E nesse sentido, não por inteiro, o que seria cobrar impiedosamente de autor tão novo.  Álvaro Pacheco é poeta.  A contraprova está em O Sonho dos Cavalos Selvagens.

            Agora já não o move a paisagem contingente.  Mas o amor, a morte, a visão intemporal, a ‚ânsia de eternidade, a crueldade do mundo, a queda e a dor dos homens, o flagelo do eu implacável.  Um verso como este foi temperado na angustia: 

                         "Sonho de cavalos selvagens disparados pelo sangue". 
                         Tem o sopro do desespero em vigília um verso desta dimensão:
                         "Como não ser aflito
                         com tudo em volta, tão entreaberto
                         e tão pouco tempo para a morte?"

            Antes parecia que no seu ex-libris poético a divisa de Álvaro Pacheco era o sonho, o sal, o sangue, o silêncio, quadratura de símbolos da solidão.  Entretanto, neste terceiro ato o amor sobe ao trono, pois é de amor o mais natural e o mais belo de todos os seus poemas, Mulher.  O trecho reproduzido, remate do artigo, há de convidar os leitores a repetir o encantamento que nos causou a poesia de Álvaro Pacheco:

                                    Ah!  e quem explica este bicho invisível
                                    em sua forma corpórea, carbonitrada,
                                    que é uno e plural (a estrela palpável)
                                    o agente completo do bem e do mal.

 
                                                                                     in “JORNAL DO COMÉRCIO", l4/13/l969
        

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 Página editada  por  Alisson de Castro,  Jornal de Poesia,  22  de  Julho  de  1998