Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Vera Queiroz*


 

A mecânica da obsessão

 

Diário do Nordeste, Fortaleza, Ceará, Brasil


 

Quando viva, Hilda Hilst esbravejou com veemência, em crônicas e entrevistas, contra a quase completa obscuridade em que se mantinha sua extraordinária obra literária, composta de romance, poesia, teatro, crônica e a famosa trilogia (ou tetralogia, se incluirmos o livro de poemas “Bufólicas” aos três livros em prosa: “O caderno rosa de Lori Lamby”; “Contos d’escárnio”; “Cartas de um sedutor”), cujo aparecimento marca a tentativa da autora de fazer-se conhecida (e amada) pelo grande público. Um ano após sua morte, a notícia mais alvissareira quanto a tal visibilidade surge na belíssima reedição das obras completas pela Editora Globo, organizada e prefaciada pelo professor Alcir Pécora. No entanto, poucos leitores ainda compartilham o intenso prazer e a profunda comoção advindos da leitura de seus textos. E de onde vem a paixão que fisga cada leitor disposto a entregar-se ao desmesurado e à radicalidade propostos pelo discurso hilstiano?

Primeiro, da aposta que Hilst faz na desconstrução visceral do bom tom e da literatura morna em favor de um discurso de altíssima voltagem lírica, cuja pungência maior advém do encontro de estilos em que o escatológico, e mesmo o coprológico, se lêem como contraface do mesmo movimento lírico. Hybris dionisíaca e pagã, a voz que perpassa o discurso ficcional hilstiano refrata e coloca em cena um mundo em caos, cujos estilhaços compõem a face do homem contemporâneo em sua solidão e desamparo, submetido às violentas desordens sociais impostas pelo viés mais cruel das economais de mercado.

Segundo, do insistente desafio para quem busca compreender a mecânica da obsessão, que fundamenta a obra, em torno de prementes questões, muitas das quais aparecem sob a forma de diálogos com um Deus cuja marca de presença se dá exatamente no eco de vozes narrativas que não cessam de chamar, de clamar, e cuja intangibilidade deflagra o mecanismo mesmo da construção textual: aos vazios de respostas, ele espirala-se obsessivamente em torno de si, formulando perguntas acerca do inominável das constrições humanas, em busca de sentidos para nossa existência.

Terceiro, do caráter agônico e performativo de seu discurso literário, face ao qual o leitor é levado de roldão pela voracidade e pela ferocidade das questões que os sujeitos narrativos encaminham – a Deus, a ninguém, a cada um de nós. Não há concessões nesse universo, ninguém sai ileso do turbilhão que a engrenagem discursiva hilstiana põe em movimento. Mas quem não se aventurar, tampouco provará da doçura de seu lirismo, da pungência de sua alta literatura.


*Vera Queiroz é doutora em Literaturas de Língua Portuguesa, pela Pontificia Universidade Católica (PUC-Rio) e fez pós-doutorado na Brown University, EUA. Atualmente é aposentada pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e leciona Literatura Brasileira na Universidade Federal do Ceará (UFC). Em suas pesquisas, trabalha com questões de gênero na representação literária. Entre seus livros publicados está “Hilda Hilst - três leituras”.

 

Hilda Hilst

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20.01.2006