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Vivian Rangel


 

'Não há fronteira entre ficção e realidade'
 

 

Jornal do Brasil

07.01.2006


 

Lúcio, protagonista de 'O último leitor', primeira obra do mexicano David Toscana lançada no Brasil, acredita que o destino de livro ruim é servir de alimento para baratas e formigas

O último leitor
David Toscana
Casa da Palavra
160 páginas, R$ 29
 

Lúcio não lê suplementos literários e tampouco ouviu falar em lista de mais vendidos mas, sem escrever nem sequer uma resenha, pode ser tão cruel quanto Sílvio Romero e Mário Faustino o foram ao interferir no futuro de uma obra. Protagonista de O último leitor, primeiro livro do mexicano David Toscana lançado no Brasil, Lúcio é o bibliotecário da pequena vila de Icamole e censor cruel: os livros que desaprova não são dignos nem mesmo da fogueira, pois em combustão ganhariam utilidade ao gerar calor. O destino dos hereges - os que usam fórmulas pré-fabricadas, clichês, marcas e ênfases desnecessárias - é servir de alimento para baratas e formigas criadas no porão da biblioteca.

Para a felicidade do leitor, isso não aconteceria com a obra de Toscana, que com ritmo e sem floreios eruditos repensa as fronteiras entre realidade e ficção, o papel da literatura e dos leitores. Sugados pela seca, os habitantes de Icamole passam os dias esperando Melquisedec, o rei da justiça na Bíblia, e que na vila mexicana conduz a carroça que faz às vezes de caminhão pipa. A rotina da cidade é preenchida por subsistência e missas para pedir a bênção da chuva, ironia em terras que anos antes eram tomadas pelo mar, o que confere à vila ares de Atlântida apocalíptica. A biblioteca da cidade fica na casa de Lúcio, que há muitos anos não recebe livros do governo e tampouco nenhuma visita. Os moradores da cidade não têm tempo para livros, uma atividade que consideram pouco prática. Até que a rotina do pequeno povoado de 40 casas é abalada quando o corpo de uma menina é encontrado dentro do único poço da cidade, que fica na casa de Remigio, filho de Lúcio.

A morte é a deixa para que o bibliotecário comece a prever e interpretar os acontecimentos com a certeza que as dezenas de obras lidas lhe conferem. Para ele, a menina morta apenas repete em circunstâncias pouco diferentes a trajetória de Babette, protagonista de um romance francês, a qual ''não acreditava em nada em um país que se julgava livre''. Não há surpresas para Lúcio, pois ele sabe ''que há muito mais livros do que vida''. E afiança não haver grandes diferenças entre o mundo sensível e o das idéias, como também acredita Toscana.

- Não existe fronteira entre ficção e realidade, devo muito mais a Dom Quixote que a meu próprio pai. A imaginação e as palavras fazem parte da realidade. Compreendi o sentido da vida em A ponte para o Drina (de Ivo Andrich, Nobel de Literatura em 1961). Raskolnikov é para minha consciência o que os padres não foram, e nesse sentido Dostoievski entendeu melhor Cristo do que os papas - provoca o mexicano, em entrevista ao Idéias.

Comparado a Paul Auster pela crítica americana, David Toscana é autor de seis livros que alcançaram sucesso no México e Estados Unidos. Fã de Juan Carlos Onetti, ''por sua visão de mundo'', de José Donoso, ''por sua locura'', e Juan Rulfo, pela ''sobriedade'', o mexicano é um crítico feroz da literatura de consumo rápido, com veemência e ironia fina. Para ele, os escritores que se acham modernos, porque enchem as páginas com referências sobre moda, rótulos de vinho ou expressões em inglês, não vêem diferença entre literatura e cinema, não entendem que ''um romance sobre o rock se faz com a intensidade e a explosividade do ritmo e não através de centenas de citações a Kurt Cobain''.

Desdenhando de Platão, o escritor constitui uma lógica própria, a lógica ''toscaniada'', definida como um mundo onde as fronteiras entre ficção e realidade são tão tênues que quase inexistem. Os personagens não falam com a autoridade da razão, mas misturam o ordinário e o surreal, muitas vezes subvertendo padrões. E isso não significa que ele seja um herdeiro do realismo mágico.

- De Gabriel García Marquez gosto de pensar que herdei o ritmo, de Jorge Luis Borges, o ''escultor de gelo'', dispenso qualquer legado. Acredito que o que está na imaginação é tão importante quanto o que existe no mundo tangível. Há algo de Dom Quixote, de Kafka e de Beckett na minha obra, mas não existe de sobrenatural, magia ou sonhos. Há mentes desconcertadas e liberdade de imaginar - explica.

O sobrenatural tenta Remigio quando ele considera que os restos mortais da menina podem ser sugados pelo abacateiro de seu quintal e se transformar em frutas fantasmagóricas, como delira no romance o assassino de Babette. Mas a morte para Toscana nada tem de burlesca, seus personagens não tratam o corpo morto com naturalidade e muito menos celebram o Dia dos Mortos, tradicional festa mexicana. Toscana fala do corpo que esfria, endurece, desidrata e apodrece.

Mesmo inerte, o corpo da menina para Remiggio é fonte de desejo, lolita branquinha de pele macia em uma cidade onde as mulheres perdem o viço na segunda década de vida. Presença feminina em uma casa onde o erotismo está em acariciar a casca de abacates, que amanhecem todos os dias desmantelados em manchas verdes no lençol. O desespero de Remigio em conviver com o corpo e o segredo compartilhado apenas com o pai o fazem acreditar que talvez Lúcio tenha razão, talvez seja mesmo possível entender e alterar o presente através da literatura.

O problema, como ressalta Lúcio, é que a maioria dos escritores não condena, querem sempre evitar a tragédia, estão presos a um final feliz. E para isso se rendem a saídas banais e insossas, recusando-se assim a fazer literatura. David Toscana, ao contrário, aceita que está condenado à mediocridade de seus próprios livros (e chega a mandar para o inferno uma de suas próprias obras, Santa María del Circo). Ele acredita que perto do fim todos sucumbem à vergonha. E, antes que a morte vença, ele aguarda, nas areias do mar ou do deserto, que alguém mande ao inferno O último leitor.

 

 

 

 

07.04.2006