Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Vânia Moreira Diniz


 

O Jornal Ecos entrevista o Escritor,
Poeta e Médico Raymundo Silveira


10 Agosto 2005 - Edição N°22

 

Você nasceu na cidade de Massapé do grande estado do Ceará, como foi sua vida nesse tempo da infância?

Não cabe aqui, Vaninha. Darei uma amostra relembrando um pouco as casas onde morei. Eu tinha dez anos quando deixei a casa onde nasci para me mudar para outra. Nunca havia me separado dela. Faz mais ou menos dez anos que a vi pela última vez. Ficava numa esquina, tinha um pé-direito alto, uma calçada em declive e duas enormes pedras servindo de batentes ou de degraus para que se pudesse alcançá-la. Isto, como disse, revi há mais ou menos dez anos. Mas a parte interna, que só vi pela última vez quando eu tinha dez anos, está tão presente na minha lembrança quanto a calçada. O quarto onde nasci, onde dormi, a sala de jantar a de brincar e, principalmente, a enorme cumeeira de caule de carnaubeira da qual eu tinha medo porque diziam que era por ali que entravam os fantasmas. Com efeito, entraram em mim multidões de fantasmas ao longo da vida, mas nenhum deles, pelo teto daquela casa. Há muito tempo que não vejo a outra: a casa onde cresci. Ou melhor, há muito tempo que não olho para ela, porque, na verdade eu a vejo todos os dias. O cajueiro carregado de maturis e, mais tarde, de frutos maduros, rubros, suculentos, enormes, aos quais faço sem querer uma livre associação com os corações das pessoas que lá moravam comigo. Era uma construção mais moderna do que a outra. Havia uma grande área frontal onde crescia um misto de jardim e de pomar. As ateiras se misturando com as roseiras. Os troncos das outras árvores frutíferas, serpenteados de trepadeiras.


A relação com seus pais e sua família ajudou muito em sua movimentada vida?

Não muito. Mãe, praticamente não tive, pois sempre a conheci inválida. Meu pai também era muito doente. Mas até completar 16 ou 17 anos, nada nos faltou, pelo menos em termos materiais. Nesta época meu pai também se tornou inválido.


Você se formou em Medicina, mas até lá, como foi a escalada? Até se formar tinha outro emprego?

Sim. Felizmente (ou infelizmente), não posso dizer: "não devo nada a ninguém". Devo, sim. Ao me mudar para Fortaleza para cursar a segunda etapa do segundo grau e, quem sabe, um curso superior, fui nomeado, através de clientelismo político, para exercer as funções de Estafeta. Nunca tinha ouvido esta palavra, nem me preocupei em olhar no dicionário. Pelos cumprimentos que recebia achava que se tratava de um cargo muito importante. No dia em que assumi, recebi cerca de oitenta telegramas para entregar. Numa cidade grande que não conhecia. Comecei o trabalho por volta das 8 da manhã e terminei às 4 da tarde. Era uma sexta-feira. Só voltei para trabalhar, na segunda. Recebi uma admoestação severa e foram anotadas duas faltas no meu prontuário. Só então fiquei sabendo que para aquele trabalho jamais haveria descanso. Nem nos sábados, nem nos domingos, nem na sexta do natal nem na quarta da paixão, nem na segunda da aleluia, nem nunca... Quando da minha aposentadoria fui prejudicado por causa daquelas duas faltas. Não me queixo do meu trabalho. Afinal, não fui forçado a executá-lo. Assumi porque quis. E ainda hoje rezo para quem me pôs lá. Mas estaria mentindo se dissesse que não me sinto um pouco ressentido pela injustiça da falta de dias de descanso. Afinal, até animais têm os seus. Diante disto, tenho como um milagre a minha aprovação no vestibular de medicina, na sexta colocação.


Sua vida como médico foi brilhante inclusive com importantes publicações científicas. Acha que serviu de base para o literato que é atualmente?

Sem dúvida. Mas antes de escrever textos científicos já lia muito. Como disse, até os 16 ou 17 anos nada me faltou. Estudei numa excelente instituição: o Seminário de Sobral. Foi lá onde desenvolvi o amor pelo estudo e pelas letras. Foi lá onde conheci os clássicos da nossa literatura. Apesar dos meus 12, 13 e 14 anos (que corresponderam ao tempo que estudei lá), lia Vieira, Camões, Garret e outros. A civilização grega ainda me era estranha. Mas nesta época já travara conhecimento com a cultura latina. Conhecia, inclusive, alguns textos de Virgílio e de Cícero. Em latim. Certamente este foi o estopim da minha, digamos, mania pelas letras.


Tinha um mestre ou guru que admirasse a ponto de influenciá-lo?

Sim, vários. Mas tenho uma confissão a fazer a qual acho que faço pela primeira vez. Durante o meu curso médico (que foi tecnicamente EXCELENTE, diga-se a bem da verdade), não tive praticamente contato com elementares conceitos de Deontologia Médica. Neste aspecto, tudo o que adquiri (se é que adquiri) devo ao médico e escritor Pedro Nava, através da leitura das suas memórias. Até hoje o releio, quase diariamente.


Qual a especialidade que escolheu na medicina e o fez por inclinação ou porque no momento era a direção mais propícia?

Sempre quis ser médico. Depois que comecei a estudar medicina, sempre quis ser ginecologista. Há vários motivos para esta escolha. Tenho centenas de páginas onde trato daquilo que chamo "minha opção preferencial pelas mulheres". Nada a ver com a atração meramente biológica entre os gêneros. Existem inclusive condicionamentos de ordem afetiva, nunca sexuais. Enfim, sou criticado quase toda vez que declaro isto, mas como se trata de uma convicção, não há por que me envergonhar dela: para mim, as mulheres merecem um tratamento diferenciado em relação aos homens. Até por razões biológicas. E o que ainda se vê, é exatamente o inverso. Quem duvidar disto, porque acha que neste lado do hemisfério não acontecem mais discriminações, que dê uma voltinha pelo outro.


Como escreveu seu primeiro trabalho literário? Teve um momento especial ou como surgiu?

É uma longa história. E até meio cômica. Mas vou tentar resumir. Só vim a conhecer a Internet em 1996. Só a utilizava para ler e estudar. Nada mais. Até que deparei com um site: "Conte a Sua Viagem". Como viajei bastante, não tive dúvida: durante todo o meu tempo livre (que era pouco, mas havia), passei a descrever minhas viagens. Redigia os textos diretamente no site. Não sabia o que era WORD. Conhecia só de ouvir falarem. Não sabia também que era possível copiar, cortar e colar palavras. Cada vez que descobria coisas como essas, era um espanto. Quando não tive mais viagens para contar, desandei a escrever sobre o que me viesse à cabeça. Passei a incomodar. Até hoje não entendo por que gostar de escrever incomoda tanto a quem não gosta. Foi então que, casualmente, deparei com um dos sites literários. Antes, nem sonhava que existissem. Comecei, então, a enviar para lá os meus textos e foram bem aceitos. E... Aqui estou.


Quais os escritores que mais leu ou qual deles mais o empolgava?

Li praticamente todos os mais conhecidos, Vaninha. Não vou citar aqui porque a enfiada é longa. Os de língua não portuguesa, apenas em traduções, claro. Só aprendi inglês aos 36 anos. Para viajar. Mas conheço um pouco de quase todos os autores. Quanto aos de língua portuguesa, li reli e ainda releio diariamente Eça (para mim o MAIOR de todos), Machado, Camilo, Ramalho, Bilac, Pessoa. E, mais recentemente, Nava, Saramago e outros (em livros de papel). Na Internet leio muita gente. Mas isso não vou dizer, pois posso esquecer alguém.


Como se dá seu "momento de criação"?

Todo momento para mim é momento. Nunca tive esta tal de inspiração. Só sou capaz de criar alguma coisa se forçar a barra. Sento ao computador e vou digitando o que me vem à cabeça. Depois, apago o que acho que não presta e escrevo de novo até achar que está mais ou menos. Quando escrevia para revistas médicas levava 2 a 3 dias e uma resma de papel para produzir duas páginas. Hoje sou capaz de produzir a mesma coisa em poucas horas. Simplesmente, abandonaria definitivamente a escrita se, de repente, acabassem os computadores. Não consigo escrever nada a mão. Nem me lembro mais como é uma máquina de escrever.


Sendo um dos mais produtivos e lidos escritores de nossa net como define esse dom. Nascido repentinamente ou o trazia latente durante toda sua vida ?

Como disse, a maior influência foi a atmosfera cultural que envolvia o Seminário. Não conheço um só dos meus colegas que não tenha pelo menos um curso superior. Quando não é um grande intelectual, escritor ou poeta. Não é o meu caso. Mas certamente é o do Soares Feitosa, um grande poeta e editor do maior Jornal de Poesia em língua portuguesa. Foi meu colega de classe, lá no Seminário de Sobral, nos idos de 1957. Mas não posso negar que a mosca azul da escrita sempre revoou sobre a família da minha mãe.


Não acha que a defesa em demasia pode levar à discriminação das mulheres de uma certa forma?

Não. Tenho certeza que não. Pelo menos quando se trata de defender mulheres pobres e indefesas. Convivi (até me aposentar) com a violência que enfrentam com passividade de gado. Quase vi uma delas sendo esfaqueada na frente dos filhos sem nenhum motivo. Sequer motivo banal. Não. Não as discrimino de modo algum. Pode até ser que o meu esforço nunca tenha adiantado de nada. É quase certo que não adiantou mesmo. Mas não contribuo para discriminar. Se com meu trabalho não as ajudei nem ajudo, tenho certeza que também não faço mal.


O nosso espaço está à sua disposição, se quiser falar ou dizer qualquer coisa aos seus inúmeros admiradores.

Você é uma criatura fabulosa, Vaninha. Tenho só a agradecer. Não só em meu nome, como no de todos os outros escritores da Internet, a quem você tem prestado tantos serviços.


Jornal'Ecos -Ray, foi muito importante a sua entrevista e agradeço muitíssimo. Sei que os leitores ficarão entusiasmados e aproveito para agradecer a grande e brilhante colaboração que tem oferecido ao Jornal'Ecos


 

Raymundo Silveira

Leia Raymundo Silveira

 

 

 

 

 

24.08.2005