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Valéria Nogueira Eik


 


O circo


 

 

A cidade era tão pequena que quase poderia ser chamada de vila ou patrimônio.

Uma agitação surgiu na entrada do lugarejo e seguiu pelas ruas, feito procissão da Virgem Maria.

- É o circo! Chegou!

Veio cheio de pompa, tentando mostrar uma imponência que só causava furor numa cidade minúscula e pobre do interior.

As crianças corriam atrás dos caminhões cheios de tranqueiras toscas, gritando pontos de exclamação.

Estavam recepcionando os reis do riso com os seus melhores sorrisos.

Enfim, o circo começou a tomar forma.

A ferragem ficou em pé e sobre ela, a grande lona cheia de furos se deitou.

O chão de terra, coberto de pó de serra, encheu-se de estrelas em pleno meio dia.

A pobreza tomava conta das cores desbotadas, da magreza dos palhaços e das formas nada exuberantes das mulheres que eram contorcionistas, equilibristas, ajudantes do mágico e nas horas vagas, vendedoras de pipocas e amendoins.

Tudo era seguido muito de perto pelos olhos curiosos e ansiosos dos meninos e das meninas.

- Não mexe aí, moleque!

E o palhaço vestido de gente dava uma carreira no guri que espiava muito mais do que devia.

Os martelos socavam pregos e dedos.

As arquibancadas se amontoavam umas sobre as outras e quase caíam no colo do picadeiro.

E do alto da lona despencava toda uma parafernália equilibrista, que não inspirava confiança.

A noite prometia alegria.

Heleninha, muito tímida em seus dez anos, observava os vãos existentes entre uma realidade e outra.

Seus olhos viam o dia a dia dos artistas repleto de glórias.

As roupas surradas eram puro ouro sobre azul.

Os trailers mancos eram tendas douradas num oásis.

E o velho e pobre macarrão tinha gosto de saciedade e aconchego.

Seu pequeno coração, iniciando a jornada da adolescência, disparou e quase parou diante dos olhos verdes do galã.

Ele era lindo, era sultão, era rei, era seu ídolo.

Ela perdeu a fala nos confins da timidez, e o rubor cobriu seu rosto, denunciando seus pensamentos.

Correu para casa, tropeçando na vontade de fazer parte daquele universo sem fronteiras.

Estava apaixonada.

Fechou-se em seu quarto e em si mesma, visualizando o amor e a felicidade.

Quando o dia amanheceu, Heleninha voltou ao circo.

Só queria ver o rei em seu habitat natural.

E logo ele apareceu, com a roupa tresnoitada e a cara amassada de sono, todo remelento e lindo!

Apenas uma vez o galã se dirigiu à ela:

- Oi. Você já assistiu ao espetáculo?

A voz da menina tremeu nas cordas vocais, se arrastou numa longa viagem, e quando atingiu o ar, nada mais era que um débil e ridículo “oi”.
Voltou correndo para casa, levando um troféu em seu cérebro apaixonado.

- Que voz encantadora! Ai! Que voz!

Ela perdeu a noção do tempo.

Na sua inocência de menina moça, achava que o circo ficaria plantado naquela cidade esquecida por Deus para sempre.

E foi com espanto e dor que, numa manhã qualquer, enxergou apenas um grande espaço vazio, onde somente algumas galinhas ciscavam num resto de pó de serra.

O rei tinha ido embora.

O castelo sumira como por encanto.

Heleninha voltou para casa, pálida e triste, como uma viúva de pouco tempo.

Fechou-se mais uma vez em seu quarto e as lágrimas molharam a realidade crua da sua primeira decepção.

Mas, amargura de gente pequena não tem consistência, e sobrevive por um período tão curto que nem dá tempo de sofrer.

A vontade de seguir com o circo, para onde quer que ele fosse desapareceu, assim que um novo filme de amor estreou no cinema.

- Dio come ti amo! Ai! Que lindo!



 

 

 


 

27/07/2006