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            Fabrício Carpinejar 
 
            
 Não pára, não!
 
 
 GRAVATA: Fabrício Carpinejar encontra virtudes na poesia de 
            Sebastião Uchoa Leite.
 LEGENDA: Para Carpinejar, Uchoa Leite usa a desorientação como 
            método.
 
            Dedicado aos amigos
 Rogério Pereira e Paulo Polzonoff Jr.
 
 Nunca 
            entendi como o comportamento de intelectuais aparentemente pacatos 
            se torna agressivo em bando. Como pessoas lincham outras, que nada 
            fizeram, sob o escudo de uma torcida de futebol, e depois voltam 
            para casa, desobrigados com o destino, a segurar suas crianças no 
            colo, a rir com amigos e a beijar sua esposa. Essa dupla 
            personalidade me assusta, assim como o jornalismo que escolhe a 
            polêmica antes de valorizar o que verdadeiramente presta. Entendo um 
            pouco por dia e me esforço por acompanhar o debate literário, que 
            está tão perto da violência física. Não guardo a paciência do 
            búlgaro Elias Canetti, Prêmio Nobel de 1981, que levou 35 anos para 
            escrever Massa e poder, no qual tece em 11 capítulos as múltiplas 
            reações humanas diante da autoridade. Tendo às costas as 
            experiências de duas guerras, ele retrata como perfis bem 
            equilibrados se dissolvem na multidão. Um de seus pontos de estudo é 
            a massa negativa, a massa da destruição, onde é criada uma rede 
            paranóica em que os inimigos são classificados pela aparência. 
            “Quanto mais energicamente os homens se apertarem uns contra os 
            outros, tanto mais seguros eles se sentirão de não se temerem 
            mutuamente.” A crítica 
            O separador de sílabas, da edição de março do Rascunho, merece 
            resposta para ampliar o debate. A hostilidade não convence e o 
            sectarismo impede a livre interpretação. Não participo do quadro da 
            Defensoria Pública, longe da qualificação para exercer a advocacia. 
            Sei que todos que tentarem apartar uma briga, sempre vão apanhar 
            mais do que os contendores. Só que omissão é também opinião. Não é a 
            única vez em que tentaram matar Sebastião Uchoa Leite. Recordo que o 
            autor recebeu o Prêmio Nacional de Poesia Murilo Mendes, em 2001, e 
            um importante jornal do Rio de Janeiro chegou a comentar, de forma 
            equivocada, que a premiação havia sido póstuma. Não é também a 
            última vez que ele ressuscita. O que me incomoda no texto é a 
            paranóia criada em torno do concretismo, marcando seus filhos e 
            netos (quem traçou a árvore genealógica?) com uma marca na testa e 
            maldição nos ombros. Não há poeta que não se declare favorável ao 
            movimento. O assunto nunca passa em branco. Isso já está ficando 
            chato. Se a reiteração acontece, a conclusão dos concretistas é que 
            sua tendência é a mais importante da última metade do século 20. 
            Será?  Paranóia
 
 Assim 
            como um integrante de uma torcida adversária, Sebastião Uchoa Leite 
            acabou emparedado ao sair do estádio. E ninguém ouviu o 
            contraditório. Afinal, o que está se falando? Dos livros dele, creio 
            que não. O concretismo canaliza a raiva de outros estados ao 
            egocentrismo de São Paulo, uma inveja enrustida ao modelo autônomo 
            da USP e da Folha de S. Paulo. Não estamos mais falando de 
            literatura. É um amor/ódio que não se esgota no sotaque, 
            evidenciando uma defesa da produção regional às suas dificuldades de 
            ser reparada fora do eixo. Não é possível encontrar ingênuos nas 
            trincheiras. Cabe evitar maniqueísmo. As musas concretistas 
            realmente vivem em uma sala de espelhos, pouco abertas ao diálogo e 
            aos talentos que não escrevem um poema em vários idiomas. Com 
            exceção de Cabral e Drummond, já consolidados, esqueceram a maioria 
            dos autores que poderiam fazer sombra. Em qualquer canto, a 
            intolerância tem apressado a cadeia alimentar. Ao ser amigo de um 
            poeta, alguém está assumindo indiretamente seus inimigos. É bom se 
            cuidar! Se me aproximo de Carlito Azevedo, Alexei Bueno se afasta. 
            Se cumprimento Haroldo de Campos, Bruno Tolentino cospe no meu 
            prato. Não adianta pedir bolachas de sal ou oferecer biscoitos, o 
            vinho branco envelhece na boca. A coisa está ficando séria. Coloco a 
            mão na respiração para conferir se estou vivo. A poesia virou um 
            circo de horrores, uma guerra santa, até o Papa lançou seus poemas. 
            Noto duas possibilidades: partimos para a solidão em grupo (o pior 
            dos isolamentos). Ou respeitamos as diferenças e tentamos entender a 
            mensagem que não foi escrita pela vaidade de nossa letra. Pela 
            lógica, há mais lugar fora da cova do que dentro dela.  O mundo é bão, Sebastião!
 
 Sebastião 
            Uchoa Leite lança seu décimo livro: A regra secreta, motivo do 
            alarde e sirenes, pela nova coleção Alguidar da editora Landy. Não é 
            sua melhor aparição (continua sendo a antologia Obra em dobras, que 
            reúne os seis primeiros livros), mas tem seu valor e coerência de 
            acordo com uma forma de pensamento. O escritor se posiciona com 
            desconfiança perante a própria escrita. Não está criando nenhuma 
            realidade, fabulando sobre o possível. Mira de lado, como um vesgo 
            que tudo vê sem denunciar a direção dos olhos. O que alguns entendem 
            como desleixo é desconforto crítico. Seguindo a linha desarmônica de 
            A espreita, sua posição não é de um autor em campo, mas de um 
            treinador, ocupando um espaço intermediário entre o livro e o 
            leitor, como que prevendo os passos do verbo. É um voyeur lírico, 
            antecipando-se na imaginação da leitura. O silêncio tem a estratégia 
            de persuasão. Saber mais é saber menos. A erudição articula o 
            abismo. O escritor não está ali para ostentar sua fé na literatura, 
            mas para pô-la à prova, em atitude cínica e irônica. Quem o lê ao pé 
            da letra não o lê. É preferível esperar sentado. “O filósofo sabia 
            mas/O saber/ Preferia calar”, senha que em sua estréia tinha 
            semelhante nomenclatura: “tempo de meu silêncio enquanto falo (Dez 
            sonetos sem matéria, 1959). Por um adensamento crítico e aguçamento 
            das lacunas, sua obra passa a ter a equivalência de um ensaio. Um 
            ensaio que esconde mostrando. A melhor forma de guardar o segredo é 
            contando. A explicitude carrega algo de ilícito. “Um gosto 
            desagradável/ de cadáveres/ A melancolia do mal/ Já cantada/ A torto 
            e direito/ Só sabe/ Do arfar/ Do susto/ Do embrulho-enigma de tudo.” 
            Ele deflagra o jogo entre ficção e cotidiano, presentes em versos 
            como: “Vergonha/ de não ter/ uma verdade” e “Sou o que sou./ Ou 
            minto? Será isso/ uma regra secreta?” Ele dissimula a todo momento, 
            confunde com indícios, provoca a interlocução com a veracidade das 
            mentiras. “Lá estive ligado/ Todo o tempo/ Até a desmemória de tudo/ 
            E monitorado/ Sonhei com a consciência/ De me desligar/ De tudo o 
            que não eu mesmo.” O poeta se sacrifica no alheamento voluntário. 
            Faz uma crítica à insuficiência lírica. “Não sei rimar exceto/ com 
            ‘disfarçados urinóis’.” Coloca um cruzamento de citações, uma 
            estrutura de alusões, fragmentos e paralelismos, orquestrando 
            autênticas ilusões. São diferentes linguagens e correntes temáticas 
            como cinema, quadrinhos e poesia, que espremem situações prosaicas e 
            clichês, extraindo o banal do mais banal. A descrição funciona para 
            despistar. Os poemas já começam no final. Como afirma João Alexandre 
            Barbosa: “Uchoa Leite propõe um enunciado que já surge 
            problematizado pelas relações entre sujeito e objetos líricos”. O 
            escritor não tenta salvar ou converter um lugar-comum em preciosismo 
            literário. Portanto, adere à pobreza da matéria lingüística, sob “o 
            suor do pânico”. Em Antilogia (1979), antecipava sua aversão ao 
            verso, procurando o fedor refinado de muitos fedores, por entre vias 
            de urina. Ele se submete ao desagradável para adquirir o real. Em 
            seus versos, o leitor escreve mais do que o autor. Nesta insana 
            metalinguagem, as palavras de Uchoa Leite sobre François Villon 
            cabem perfeitamente em sua algibeira: “há um processo de acumulação 
            lexical e imagética que consiste em associar tudo que pode provocar 
            repugnância”. O ambiente é o do espião, do homem acuado, saltando 
            referências às portas cerradas, às fechaduras, às trancas e aos 
            enigmas. O maior movimento em cena é o de abrir e fechar, de lacrar 
            e deslacrar. “Fechar portas/ sem deixar frestas.” Processo de 
            vigília e censura, de susto e rompante, de esconderijos à sombra de 
            uma consciência atormentada e enfastiada de conselhos dos clássicos. 
            Uchoa Leite usa a desorientação como método. Não economiza sarcasmo 
            com o mundo, incluindo seu jeito de dizer, sendo presa e predador ao 
            mesmo tempo. Poesia feita das margens, da periferia de uma voz, 
            fascinada com o incêndio e o tamanho do desastre.  Fabrício Carpinejar é jornalista e poeta. Autor de 
            Biografia de uma árvore e Terceira sede, entre outros.
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