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Sebastião Uchoa Leite




O observador privilegiado

in Folha de São Paulo
Jornal de Resenhas, 14.06.96



 

O espólio intelectual de Alexandre Eulálio, que vem surgindo em publicações post-mortem, entre as quais o substancial ''Livro Involuntário'', seleção de Carlos Augusto Calil e Maria Eugenia Boaventura, revela-se precioso. Os organizadores, pela inteligente classificação do material, surpreenderam a ordem secreta na aparente aleatoriedade dos múltiplos interesses eulalianos. As oito partes são precedidas pelo texto ''A Imaginação do Passado'' e complementadas por posfácio, notas e índices. Assim, o espírito meticuloso do autor parece homenageado: nos detalhes obsessivos, distingue-se o mestre de um método oculto.

''A Imaginação do Passado'' defende uma ''organicidade subterrânea'' de escritos ocasionais, mas estes não se contrapõem ao que o autor chama de ''nobre gueto universitário''. Ele defende as mediações e nega a oposição maniqueísta entre modos de operar diversos. Defende ainda que análise formal e interpretação histórica ''se defrontem numa instância dialógica'', que anularia ''os feixes de intersecção de diacronia e sincronia''. Contra as generalizações, Alexandre exige ainda referenciamentos objetivos e aparato filológico, chegando ao corolário: ''A abrangência da história intelectual como história das formas é antes de mais nada história das idéias''. Nessa utopia, enxerga o perfil ideal da crítica.

Os interesses plurais de Alexandre podem ser rastreados através das várias partes da publicação. A primeira, ''Crônicas do Brasil'', parte do começo dos começos, a carta de Pero Vaz de Caminha, cujo ''cine-olho'', segundo o autor, o identifica como um ''Flaherty quinhentista''. Nesse deslocamento metonímico, comparando Caminha ao documentarista cinematográfico, se espelha um dos aspectos do método eulaliano de aproximação crítica. Do mesmo modo, quando aborda uma das suas paixões, o livro ''Minha Vida de Menina'', de Helena Morley, retira uma lição crítica de evocações descritivas da ''inglesinha''. Naquele livro se surpreenderia um interesse sociológico como crítica ao ambiente da província, onde coexistiam ''dois mundos culturais divergentes (o britânico protestante-liberal e o ibero-católico, mal saído da escravidão) que se contemplam e se julgam no interior de um eu tornado harmonioso pelo equilíbrio mesmo das suas contradições''.

É este método de se retirar lições que se manifesta ainda, na seção ''Desejo de História'', nos vários retratos de Tiradentes, que se torna apenas a ''tragédia individual de um homem'', que seria ''ainda mais imponente dentro de suas limitações'', observação que poderia caber também ao perfil de Tomás Antonio Gonzaga, logo adiante. Observe-se ainda a extrema isenção quanto ao prisma ideológico quando se refere ao folhetim de Joaquim Felício dos Santos, ''As Páginas do Ano de 2000'', ''uma das mais violentas sátiras escritas ao reinado de Pedro 2º''. A capacidade de dissociar valores crítico-literários e valores históricos, sem entrar num juízo pessoal, seria mesmo um dos melhores atributos críticos de Alexandre Eulálio.

Esta isenção se emaranha ainda em maior complexidade quando trata da personalidade dúplice de Paulo Prado, que conciliava um apaixonado da pesquisa histórica e um entusiasta de movimentos artísticos de vanguarda. O ''Retrato do Brasil'' seria ''próspera sementeira de questões e problemas'', que se revelaria como um valor em si mesmo.

Os textos de uma coluna em ''O Globo'' em 1965 estão em ''Matéria e Memória'', título que evoca o filósofo Henri Bergson. É ''matéria filtrada pela memória'', passando pelo filtro de Marcel Proust, para o qual mais se inclinaria o autor. As admirações envolvem do irônico estilista mexicano Júlio Torri e os seus aforismos satíricos, passando pelo louvor de Bocage, ou, antes, os vários Bocages que o autor conheceu, e chegando ao Artur Azevedo da revista teatral ''O Tribofe'', ''óculo de alcance'' de um ''observador privilegiado''. Destaque-se a nota sobre Thomas de Quincey e o seu ''Confessions of an English Opium Eater'', que revela o apego do crítico às ''pesquisas de um imaginário em liberdade'', em contraposição a convenções da época e preconceitos do próprio De Quincey.

No centro do livro, ''Talento Maior'' nos revela um Alexandre talvez inesperado para os que não o conheceram, voltado para questões interpretativas genéricas. Em ''Noble Brutus'', o que importa é o ''dilema psicológico entre o homem privado e o público'', o novo conceito de liberdade e o conceito grego de predestinação conciliados e, enfim, ''a possibilidade de tudo fazer'', que seria ''a grande contribuição de Shakespeare ao teatro moderno''. Esta possibilidade é o centro da questão em ''O Édipo de Gide''. Mais além do Édipo prometéico gideano, dividido entre a predestinação e a afirmação humana ''contra o deus'', mais do que a questão literária entre liberdade & predestinação, o crítico vê o conflito real entre submissão e autoridade, simbolizado na luta de Édipo contra Tirésias.

Das ambiguidades, retira o autor a lição de que a solução para um problema proposto é só aquela solução e mais nada. Não há receitas genéricas. Disso pode-se pular para o extremamente particular, que é o poético no breve ensaio ''Maio em São Cristóvão''. O poeta é Clarice Lispector no conto ''Mistério em São Cristóvão''. Descrevendo-o, Alexandre se torna ele mesmo um crítico-poeta, ao propor que do cotidiano prosaico se passa para a ''ante-sala do desconhecido'', através de uma ''imprevista colocação de peças no tabuleiro de xadrez''.

As ''formas e relações violentamente novas'' criariam o ''clima de alucinação'' do conto clariceano. Ou seja, a ficção como química verbal, alquimia do verbo rimbaudiana.

''Machado, as Mais das Vezes'', reúne textos dedicados a um dos seus ídolos, Machado de Assis. Alexandre escolhe, com ''Esaú e Jacó em Inglês'', o viés da visão de fora, um viés universalista para um Machado que abandonara ''os aspectos fundamentalmente éticos dos romances anteriores (''Quincas Borba'', ''Dom Casmurro'') em favor de um realismo simbólico, que tinha raiz (na) fria maravilha que é o ''Brás Cubas''. Esse viés prossegue em ''Aspiral Ascendente'', pela visão de Jean-Michel Massa da formação jovem de Machado, onde se vêem ''transmutações (...) pouco perceptíveis a olho nu''.

Em contraste com a pesquisa crítica de ''La Jeunesse de Machado de Assis'', estão os quatro volumes de ''Vida e Obra de Machado de Assis'', de R. Magalhães Júnior, com o seu ''enorme luxo de minúcias'', ou seja, a ''lupa faiscante da 'história pequena' (com h minúsculo: petite histoire)''. Contudo, o que mais o interessa é a ''paixão crítica'', ao expor a argúcia de um crítico de fora, o inglês John Gledson em ''Machado de Assis: Ficção e História'', desvendando no mestre a ''intrincada teia de alusões e referências'' do discurso ficcional. O breve estudo final, ''A Estrutura Narrativa de Quincas Borba'', vê em Machado ''uma muito mais radical e duradoura denúncia contra imposturas e mistificações do tempo''.

''Notas de uma Agenda'' será, para certa classe de leitores, uma leitura de mais particular fascínio. Vêem-se evocações sartreanas a propósito de Cruz e Souza e sua negritude; o encontro do decadentista mineiro Severiano de Resende com Miguel Angel Astúrias e sua ''prosa impregnada da forma simbolista'', e, por tabela, o ''encontro'' de Astúrias com James Joyce (entrevisto/observado com curiosidade numa vitrine de antiquário); o encontro de Carlos Felipe (Saldanha), criador do personagem Capitão Fantasma e uma velhinha ''que abominava toda poesia ('Je la déteste, vraiment je la déteste')''; as minúcias linguísticas da ''Lição de Coisas'' de Carlos Drummond de Andrade e o seu ''inventário do atingir o sussurro do 'ptyx', arco mallarmaico, alegoria arbitrária (...) de significado ocluso''; o pedido para se acentuar a última sílaba de ''Caniboswáld'', comentário do Oswald canibal de Benedito Nunes, para não confundir Oswáld (de Andrade) e o ''assassino indigitado do primeiro Kennedy (Lee Ôswald)'', mas sim evocar ''o tempestuoso herói da Corinne, de Madame de Stael'', e outras relações faiscantes pelo arguto jogo de referências e pelo discretíssimo humor eulaliano. Finalmente, anote-se que em ''Um Sentido Mais Puro'' (de Mallarmé) Alexandre revela não estar indiferente ao que passa à sua volta, ao escrever sobre contemporâneos como Maria Ângela Alvim (poeta), Ivan Ângelo (ficcionista) e Roberto Schwarz (ensaísta), distribuindo por eles a moderação do seu juízo crítico, a pertinência de suas referências cruzadas e a sensibilidade alerta para tudo.

''Livro Involuntário'' encerra alguns dos melhores valores do autor: a plasticidade mental com que podia passar da atmosfera densa dos estudos históricos para as anotações mais leves, comentários quase poéticos. Plasticidade que se adapta a qualquer objeto. Às vezes, é este objeto mesmo aquilo em que o autor se reflete, ao falar de ''transmutações diversas'' a propósito de Paulo Prado ou Sérgio Buarque de Holanda, ou das ''pesquisas de um imaginário em liberdade'', a propósito de Thomas de Quincey. Retrata-se, ainda, no provinciano Astúrias, que entrevê, disfarçadamente, Joyce. É a um tempo ''lupa faiscante'' e amplo ''óculo de alcance''.

A linguagem estrita e a mente mais livre possível introduzem, na sua operação crítica, o seu próprio contraditório. Um observador crítico privilegiado que queria compreender e relativizar tudo, sempre em processo, ele parecia querer mais uma crítica des-ajuizada do que encerrada no seu próprio gueto crítico. A crítica eulaliana era a crítica da permanente operação indagatória. O que pode parecer paradoxal, como a exigência de restrições que impunha ao seu método operatório e o seu paralelo afã de liberdade imaginativa, pode ser fonte das características mais originais do seu discurso crítico, onde o mestre rigoroso é contíguo ao espírito de invenção. É preciso que se diga que Alexandre Eulálio, além de ser fascinado pela criação ficcional, era ele mesmo um ficcionista e um poeta ao se colocar diante de personagens de sua escolha.

Basta lembrar a dedicação entusiástica à obra e ao personagem de Blaise Cendrars, ou ainda o seu poema dedicado a Murilo Mendes, e sobretudo o filme que dedicou ao grande poeta. A ponte que traçou entre o seu fascínio pela história brasileira e a sua ligação com o espírito de modernidade nas artes caracteriza a peculiaridade de uma mente crítica inquieta.

O projeto gráfico de Carlos Augusto Calil reflete bem o espírito de curiosidade livre, e nada pedante, da ensaística de Alexandre Eulálio. É um projeto sóbrio que surpreende aos poucos pelos mínimos detalhes, tudo sem a menor pretensão, mas com fascínio discreto pelas curiosidades gráficas em que se mesclam vinhetas de época, pequenas caricaturas e desenhos, e até um antigo anúncio do Biotônico Fontoura. A capa, de Calil e Ettore Bottini, com o pormenor de um mapa manuscrito do século 18, é também uma sábia alegoria desse espírito de ''descoberta'' que é, sem dúvida, um dos mais significativos atributos da escrita eulaliana, sempre em busca de um ''outro'' a ser revelado.


Sebastião Uchoa Leite é poeta e ensaísta, autor, entre outros, de ''A Ficção Vida'' (34 Letras).