Teixeira de Melo


Ao Sol

Não te amo, ó Sol, senão como rascunho Da luz de Deus! senão como lembrança Da mão que te acendeu, lâmpada de ouro, Por sobre o abismo em que eu treina da morte, A teus pés pela vida às tontas erro. Verme que esconde um átomo da essência Que te anima e renova! Átomo mesmo Do pó da eternidade em frágil vaso Amassado de sangue e pranto e orgulho! Águia sem asas — fito-te um momento E tua luz me embebeda e faz vertigens! Amo o silêncio, a sombra, o isolamento, Embora os do sepulcro! E tu, abutre De asas de fogo, eterno pirilampo Em basta selva, acima esvoaçando De milhões de cadáveres corruptos Que o tempo, rio rápido e revolto, Roda té o mar sem raias do infinito, Insultas minha dor, meu pranto estancas! Tu vês sem dó arcar a humanidade Sob o peso de séculos e séculos Sempre moça e garrida e fátua sempre, À luz dos raios concertando as braças Que o vento desatou, tingindo as faces Macilentas da orgia e das insônias, E abrindo os alvos seios infecundos Ao beijo frio do que tem mais ouro! Tu vês de longe a louca humanidade, Nova Eva despertando entre as delícias Da vida sem a morte, ambicionando Outra vida melhor, mais curta embora! Penélope senil que se não cansa De a eterna teia desmanchar contudo Que o esposo a venha achar tecendo ainda! Ou doida Ofélia a desfolhar sem fino Sua coroa de noiva – antes da noite! E o mundo de Panúrgio e Sancho Pança Te vê passar também como um sarcasmo Palpitante de fel, e ri-se ao ver-te! É sempre nova a velha humanidade! Só o homem passa — palha ou flor de feno — Nas garras do tufão que não te alcança! Como ela viverás... mas momento A mão que te acendeu pode apagar-te. Eu te amaria, ó Sol, se por um dia Conhecesse o segredo que me escondes Das tontas gerações que patinharam — Como as de hoje — na lama e adormeceram Na esteira do passado, entre as neblinas Das era que, impassível como o tempo, Desde o primeiro dia alumiaste. Podes, feixe de luz que te desatas No colo requeimado do universo, Dar-me um raio dos teus com que ilumine Minha cegueira a tatear na sombra Das exploradas minas de ouro puro, Hoje cinza e carvão, dessa linguagem Sublime e rude — do cantor mendigo Da Grécia, o heróico berço em que tu nasces, E onde Byron morreu contigo, ó Grécia! Ó Sol, olho de Deus aberto sempre, Guia meus passos trêmulos ainda Por entre as flores dos jardins celestes Em que Camões ceifou perpétuos louros! Para cantar as lendas esquecidas Do ninho meu paterno, à sombra amiga Das copadas mangueiras embalado Pelas auras dos trópicos aos cantos Da ferrenha araponga do deserto; Para cantar as graças feiticeiras Do meu berço de musgo inda selvagem Como os primeiros que dormiram nele, Dá-me um raio dos teus! um só me bastar Que me esqueçam depois... terei vivido! Que tu, página branca para o mundo, Irás talvez vagar onde eu já durma, No leito frio em que me espera o olvido. Hei de acordar das matas seculares Onde o silêncio é o canto do passado, O gênio adormecido desses tempos Que sob os olhos meus às vezes passam. Dá-me imagens de fogo ainda virgens Das mãos calmas dos cantores todos. Triste bardo das raças do deserto, Hei de perdir-te, ó Sol, que as requeimaste, A história triste das extintas tribos! Hei de rasgar a página mais pura Do livro virginal da natureza! Hei de arrancar ao colibri — das penas O pó dourado e azul — para escrevê-la! Hei de quebrar as asas furta-cores Das nossas borboletas, para dá-las Em saudoso holocausto à pátria e ao lmundo!


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