Sérgio Paulo Rouanet 
Retardatários e Degenerados
 

                  As idéias viajantes experimentam estranhas metamorfoses, conforme as peculiaridades
                  dos países em que fazem escala. As idéias de Euclides da Cunha, muito discutidas este
                  ano devido ao centenário da destruição de Canudos, não constituem nenhuma
                  exceção. Na Alemanha, por exemplo, a recepção de Os sertões foi em grande parte
                  condicionada pelo estado de espírito anti-moderno que hoje em dia influencia tantos
                  intelectuais alemães. Surgiu, em conseqüência, uma curiosa interpretação, segundo a
                  qual Euclides teria sido um precursor dos atuais críticos da modernidade.

                  Se for preciso ver em Euclides um precursor, eu preferiria dizer que ele antecipa, não a
                  crítica, mas a dialética do Iluminismo, tal como exposta por Adorno, Horkheimer e
                  Benjamin.

                  O cerne dessa dialética é que a modernidade iluminista não se emancipou da dimensão
                  tradicional que ela ostensivamente combate, o que vale dizer que a modernidade,
                  contendo em si elementos míticos, não é suficientemente racional, e a pretexto de lutar
                  contra a barbárie, produz freqüentemente efeitos desumanos. O novo que ela promete
                  é uma simples transfiguração do antigo. Ao mesmo tempo, não é possível combater os
                  males gerados pela modernidade e pelo Iluminismo senão recorrendo à própria
                  modernidade e ao próprio Iluminismo.

                  A leitura que Euclides faz do conflito entre tradição e modernidade, em Canudos, se
                  aproxima dessa dialética.

                  As forças que aparentemente representavam a modernidade, na tragédia de Canudos,
                  eram elas próprias arcaicas. O delírio de Canudos tinha uma contrapartida exata na
                  capital. Em Canudos, os jagunços baleavam os intrusos com seus clavinotes, no Rio
                  os florianistas linchavam transeuntes e empastelavam jornais. Para os conselheiristas,
                  a República era o reino do anti-Cristo, para os citadinos, Canudos era o centro de uma
                  conspiração monarquista. Para os cariocas, Canudos era a Vendéia, para os jagunços
                  o Rio era a Babilônia. Os dois campos tinham seus rituais. Os conselheiristas tocavam
                  sinos e cantavam hinos religiosos, as tropas do governo saudavam o aniversário da
                  queda da Bastilha metralhando os jagunços com uma salva de 21 tiros e cantando o
                  Hino Nacional. Os dois campos se interpenetravam. Os soldados e os combatentes do
                  arraial eram idênticos na origem regional, na fala, muitas vezes no vestuário. Sua
                  religiosidade era a mesma. Criados ouvindo lendas sobre os milagres do Conselheiro,
                  os soldados do Norte tinham as mesmas crendices dos jagunços. A dar crédito a
                  Euclides, havia o mesmo arcaísmo entre os oficiais. Todos os que tombavam à entrada
                  de Canudos tinham no peito esquerdo, em medalhas de bronze, a efígie de Floriano e
                  morrendo saudavam sua memória com o mesmo fervor que os jagunços reservavam ao
                  Bom Jesus. A crueldade era idêntica nos dois lados. Os soldados mandavam os
                  prisioneiros gritarem viva a República, e depois os degolavam, fazendo com a faca o
                  que a outra República, a francesa, tinha feito com a guilhotina. Para Euclides, o
                  Conselheiro e o Coronel Moreira César eram figuras simétricas. O Conselheiro era um
                  doente mental, o Coronel um epiléptico. Duas patologias, reforçadas por duas
                  sociedades retrógradas. O uniforme de Moreira César era o avesso do camisolão azul
                  do Conselheiro. Em suma, se houvesse um psiquiatra para as nacionalidades, como os
                  há para os indivíduos - assim termina o livro - ele descobriria no Brasil oficial as
                  mesmas "linhas essenciais da loucura e do crime" que a ciência julgou encontrar no
                  crânio de Antônio Conselheiro.

                  A modernidade que ordenara a destruição de Canudos era falsa, porque representada
                  por elites urbanas que não tinham conseguido absorver verdadeiramente a civilização
                  européia. Por dentro, elas continuavam tão primitivas quanto as populações do
                  interior. Mas eram mais instáveis, porque tinham se confrontado bruscamente com
                  uma cultura superior, para a qual não estavam preparadas, o que gerou graves
                  desequilíbrios psíquicos. Essa civilização de empréstimo, por sua vez, aprofundou o
                  fosso entre o Brasil oficial e o Brasil arcaico. O fosso poderia ter sido reduzido por
                  métodos não-violentos. Em vez disso, conclui Euclides, esses bárbaros que se
                  acreditavam civilizados dizimaram os sertanejos com canhões Krupp.

                  No entanto, Euclides não extrai dessa crítica da pseudo-modernidade uma denúncia da
                  modernidade. Na luta entre o atraso e o progresso, ele se coloca inequivocamente no
                  campo do progresso. Mas como via ele a modernidade autêntica? Ela deveria ter como
                  alicerce a população sertaneja, "a rocha viva de nossa raça". Os sertanejos, pelo fato
                  de terem ficado isolados do mundo exterior, tiveram a sorte de evoluir segundo seu
                  próprio ritmo, num processo de miscigenação por assim dizer autárquico, que formou
                  um tipo racial uniforme, sólido, enérgico, adaptado ao meio. O sertanejo é um
                  retardatário, mas não é um degenerado. Degenerados eram os mestiços litorâneos que
                  devastaram Canudos em nome de uma ideologia republicana que eles não podiam
                  compreender. O sertanejo, pelo contrário, é um titã. Ele é pedra, e sobre essa pedra
                  Euclides quer edificar a nacionalidade futura. Livre de influências européias
                  indesejáveis, num processo evolutivo que poderia, no máximo, ser acelerado por
                  medidas pedagógicas capazes de diminuir a distância que o separava do resto do
                  Brasil, o sertanejo ascenderia progressivamente ao estágio da civilização,
                  transformando-se no sustentáculo de uma modernidade real, sem regressões
                  temporais, sem compromissos com o mundo antigo, sem desníveis de consciência,
                  sem heterogeneidades territoriais.

                  O que complica uma avaliação objetiva das idéias de Euclides é o paradigma racial que
                  ele adota. Mas já que ele próprio acabou se distanciando desse paradigma,
                  negando-se a ver nos sertanejos uma raça inferior, como exigia a ciência do seu tempo,
                  talvez não estivéssemos traindo seu pensamento se transpuséssemos o código racial
                  num código sociológico. Com isso, suas idéias se tornariam pelo menos
                  argumentáveis, perdendo seu aspecto extravagante. Segundo essa "transcodificação",
                  a guerra de Canudos seria a metáfora de uma modernização de fachada, resultante da
                  aliança entre o "feudalismo tacanho" do interior e as frágeis elites burguesas
                  (constituídas, em parte, pelos famosos "mestiços neurastênicos do litoral"). Com isso,
                  desvendaríamos o fundamento sociológico da mistura do velho e do novo que
                  Euclides identificou nas forças pretensamente modernizadoras. A mescla vinha da
                  circunstância de que a burguesia republicana não era na realidade uma força
                  progressista, porque estava comprometida com a grande propriedade e com a antiga
                  classe escravocrata, revelando-se incapaz de cumprir sua missão histórica de realizar a
                  reforma agrária. A "modernização" pretendida por essa burguesia era de fato a
                  perpetuação do latifúndio, o novo a serviço do velho. Os agentes e fundamentos da
                  verdadeira modernização seriam os camponeses - os sertanejos de Euclides, a "rocha
                  viva" sobre a qual se construiria a nova civilização.

                  Em nossa época pós-marxista, talvez muitos considerem esse código sociológico tão
                  pouco plausível quanto o racial. Mas isso não nos impede de encontrar algumas
                  analogias entre as duas dialéticas da modernidade, a de Euclides e a de Adorno.
                  Ambas podem ser resumidas em duas teses: a pseudo-modernidade é na verdade a
                  selvageria, e sem a modernidade não há como implantar uma civilização humana. Em
                  Euclides da Cunha, essas duas teses podem ser ilustradas por duas citações. A
                  primeira denuncia o Iluminismo enquanto barbárie: Canudos só viu "o brilho da
                  civilização através do clarão das descargas". A segunda afirma que a modernidade é
                  inevitável: "Estamos condenados à civilização. Ou progredimos ou desaparecemos".

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