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Silas Corrêa Leite




A Selfgrafia da Alma-Árvore do Poeta Português José Félix
 


 

O maravilhoso mundo virtual propicia tantas gracezas e prazeiranças inspiradas.

E entre tantas viagens virtuais sem fronteiras, descobertas do verdadeiro irmão-humanus e também, paradoxalmente, do outro lado bem pouco ético da globalização-mercado como agente dominador, quando, ao mesmo tempo, espetacularmente apresenta-nos a distantes amigos virtuais de outros continentes e oceanos, ligados a nós por feituras, satélites e altas tecnologias de resultados criativos.

É quando acabamos descobrindo que, essa aldeia global é mesmo muito pequena. A própria geografia da terra-nave um mero grão de mostarda na celestial família cósmica.

E foi assim que, em labiríntico rocambole de buscas, acabei me vendo num desespelho: eu, um poeta aprendiz de feiticeiro em terra brasilis, descendente de ancestrais judeus oriundos da Ilha da Madeira, e mãe tupi-afro de antepassados oriundos de Angola, vim a entrar na seara lítero-cultural do Poeta José Nascimento Félix (Luanda, Angola) que está atualmente plantado em Portugal, e esse irmão-virtual, com mesma origem davídica, nasceu em Luanda e, fazendo o caminho de volta, o inverso, é um criativo lusonauta na navegação internética em teares líricos plangentes.

Assim, amigos e sonhos, bandeiras e referenciais, trocamos figurinhas carimbadas de teares poéticos, ficamos amigos porque é o espírito que ama o espírito, antes do corpo e da arte amar o corpo e a arte, e quando senti, tinha eu sido premiado com o belo livro Geografia da Árvore de José Félix, Coleção Poéticas de Lavras, Múchia Publicações Ltda, da Ilha da Madeira, Portugal, Coordenação de Edição do Crítico Português José António Gonçalves, Impressão Outubro 2003. Rendemo-nos, afinal, iguais no mesmo ninhal-matrix, um igual lado Sentidor.

E a assumida “falta de chão” de José Félix, com suas diásporas-banzos, exílios-andantes e buscas do ser-se de si, propiciou a criação de sua interessante poética de águas, nesse não-lugar havendo então o poeta-ourives de mão cheia e mavioso quilate de palavras de ótimos confeitos imagéticos. As rugas da mãe presa no cabelo.

Porque a poesia de José Félix é a ancora de sua alma, sempre mergulhada na andança de rios, caminhos de chuvas, veias de tempestades, quase árvore de si mesmo, pois que só o enlevo poético-espiritual lê a selfgrafia da árvore de sua vida inteira de buscador, um peregrino talentoso, como nau frágil atrás das próprias pegadas íntimas, feito alma nau também. O dentro e o fora, anulação de contradição.

Poesia de horizontes. De águas guardadas em cisternas de raízes ancestrais, poesia que reinventa o dizer novo, inédito, profundo, num flash, num insight, um close de olhar, mergulhando a sua tez chão em doces memórias guardadas a ferro e fogo, com acréscimos decantados de instintos tribais revisitando desertos, savanas, ilhas da memória, numa feliz edição de sensibilidade à flor da pele. Memória feita com crivo.

Flui magistralmente o seu mosaico de criames, palavreia com estilo, orna-se em harmonia e ritmo, instrumental baladeiro gesta a coragem limpa de dizer o incenso inédito de sua alma-andaluz, estruturando o poema como se a lhe dar rosto, forma, moenda, cálice e encantário sonoro.

E a tudo solda com estupenda fagulha que extrapola a lucidez toda própria, e assim, pousa sua alma-olaria de asa-criação no textual, inventando o inexistente com lírica pertinente, mergulho em acervo e lastro. Raiz substantiva.

“A palavra na nervura”(...) Em mágoas-banzos, justifica-se pela sua água íntima, transparente, cicatrizada e cristalizada no seu poetar de visitador. Fonte e ponte. Cais e farol. Ravina agreste nas palavras.

Perspectiva de vela à margem, aguardando vento-gaivota, feito peixe elétrico que voa-imaginação e vislumbra um círio-lume. O verbo é o seu remo. O poetar, o fazer poético, a combustão que busca uma bússola de si para si mesmo, árvore dando poemas-frutos às pencas, na selfgrafia da alma-accua.

Toda a poesia tecida em correnteza interior, vazão e cal de libertação. Todo o arame da água, poço sem fundo de reminiscência, refluxo de algum duto-vetor do inconsciente purgando a mora de sobreviver, apesar da língua-pátria estar aonde o poeta está.

Esse é José Félix, trovatore pós-moderno, apegado ao piano andante da palavra, entrando pela natureza das coisas, com contentezas e sofrências, com fragmentos em cardumes de linguagens, na palavra-pólen, maná e sal da terra.

Creio comigo que, a poesia é a respiração da alma. Por via de Freud ou de Jung, deixamos o ossário de nossas vidas, mas, podemos criar também o enxame poético de nosso lado nodal, dar testemunho de resistência sensorial, habitando o tabernáculo da palavra, servindo o nosso noturno íntimo, o pão ázimo, a neblina tenda, a terceira margem intraduzível de nosso butim de tristices, entre muros e lamentações adquiridas por fugas, diásporas, exílios e isolamentos cíclicos.

Essa é a poética das águas de José Félix. Uma procura-ninhal. Uma resultante-livro. A reinvenção da memória-árvore.

Como não podemos fugir do lugar em que estamos, de sermos o que somos, feridos de sensibilidade e dor tendemos a deixar a nossa marca nas coisas e pertencimentos. E a palavra talhada rompe a pedra-dor; fazemo-nos de fortes, quando temos então o sudário de nosso escrever-despojo como documento de labuta, sangria de árvores em campos de centeio, questionário lavrador. Cirro-estrato de um céu impossível?.

Porque a árvore pode ser uma estrada; a árvore pode ser uma nuvem; a árvore pode ser uma tempestade em corpo de água, podendo ainda ser uma válvula de escape em desertos adquiridos por trajetos e manejos.

Mas, quase sempre, tudo isso pode resultar ao bom colhedor, ainda dar um bom livro de recolhes de vinhedos. Como cantou Dom Helder Câmara: -Devemos ser como a cana. Pisados, ralados, postos na moenda da vida, mas ainda assim temos que dar açúcar.

Na poética das águas, o açúcar-poesia de José Félix é o testemunho de sua seiva-penumbra, seu horizonte-gume, seu construir pela explicitação de verbos, ainda assim alta sensibilidade, ainda assim documental almanaque de renúncias, talvez por isso mesmo exercícios de colorir silêncios náuticos, portanto, fazedor de poemas-salmos contemporâneos plangentes, assim na terra como no céu, porque o humanus-árvore tem a raiz no chão e bebe os ares da libertação do ser de si pelo que escreve como domínio instintal e técnica de refino poético em ótimo ponto de degustação.

Ler José Félix, é como ler o tuareg que deixou o deserto na fuga, mas, ainda assim mesmo, traz dentro de si o sal da terra que tem de ser, sempre, para, ainda que ferido, ainda que buscador, ainda que manejador de sensibilidades revistadas na sua árvore de resiliência e sensibilidade fora de série, dar sempre o júbilo testemunhal de sua existência artística com veia poética e veio peculiar nesse Planeta Água de tantas riquezas injustas e existências desérticas.

O exílio, nas palavras. O elixir-livro. A geografia do ser-se de si mesmo.
 




Leia a obra de José Nascimento Félix
 

 

 

 

10/03/2005