Santa Maria

(Madrugada de 27.1.2013)

 

Morri em Santa Maria hoje.

Quem não morreu?

Morri

na Rua dos Andradas, 1925.

Numa ladeira encrespada de fumaça.

 

A fumaça nunca foi tão negra no Rio Grande do Sul.

Nunca uma nuvem foi tão nefasta.

 

Nem as tempestades mais mórbidas e elétricas desejam sua companhia.

Seguirá sozinha, avulsa,

página arrancada de um mapa.

 

A fumaça corrompeu o céu para sempre.

O azul é cinza,

anoitecemos em 27 de janeiro de 2013.

 

As chamas se acalmaram às 5h30, mas a morte

nunca mais será controlada.

 

Morri porque tenho uma filha adolescente que demora a voltar para casa.

Morri porque já entrei em uma boate pensando como sairia dali em caso de incêndio.

Morri porque prefiro ficar perto do palco para ouvir melhor a banda.

Morri porque já confundi a porta de banheiro com a de emergência.

Morri porque jamais o fogo pede desculpas quando passa.

Morri porque já fui de algum jeito todos que morreram.

 

Morri sufocado de excesso de morte;

 

como acordar de novo?

 

O prédio não aterrissou da manhã, como um avião desgovernado na pista.

A saída era uma só e o medo vinha de todos os lados.
Os adolescentes não vão acordar na hora do almoço.

 

Não vão se lembrar de nada.

Ou entender como se distanciaram de repente do futuro.

Mais de duzentos e quarenta jovens sem o último beijo

da mãe, do pai, dos irmãos.

Os telefones ainda tocam no peito das vítimas estendidas no Ginásio Municipal.

As famílias ainda procuram suas crianças.

As crianças universitárias estão eternamente no silencioso.

 

Ninguém tem coragem de atender e avisar o que aconteceu

As palavras perderam o sentido

 

 

 

(Fabrício Carpinejar, 27.01.2013, 22:10)

 

 

 

 

 

 
Helio Fernandes, blog da Tribuna da Imprensa

A TRAGÉDIA DE SANTA MARIA
E O GRANDE POEMA DE FABRICIO
CARPINEJAR, FEITO NA HORA

Santa Maria, o Rio Grande do Sul, o Brasil e o mundo inteiro choram o incêndio devastador, e a displicência e a falta de fiscalização, devastadoras. Alguma coisa tem de ser feita, pelo menos para que não se repita esse crime coletivo. É assim que deve ser identificado.

O poeta não restringe a condenação à ação cúmplice e comprometedora de algumas autoridades. Chora a morte e se solidariza com a vida, tudo com palavras emocionantes. (Que O Globo, jornalisticamente, coloca no alto da Primeira).

Todo o poema é comovente, e o final, que sensibilidade: “Ninguém tem coragem de atender e avisar o que aconteceu. As palavras perderam o sentido”. Se tivesse assinado Carlos Drummond de Andrade, ninguém se surpreenderia.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

28.1.2013