Soares
Feitosa |
Jornal
de Poesia
|
Salomão
O
Relato
do
Capitão
Chorar
com lágrimas é sinal
de dor
moderada; chorar
sem lágrimas
é sinal de maior dor;
e chorar
com riso
é sinal
de dor
suma e excessiva...
Padre Antônio,
in Os Sermões.
|
Neste
instante estou em minha cela-voluntária da Casa de Detenção,
para onde há alguns séculos me recolhi com propósitos de
leituras. Sou um preso-voluntário, mas tenho o status de preso,
inclusive os riscos que esse “cargo” supõe.
Outros
detentos aqui existem — ainda em pequeno número, que espero e
desejo sinceramente que aumente —, com o propósito único de
aprendizado, porque chegamos, eu e os detentos-alunos, à
conclusão de que os caminhos estavam completamente errados.
Estamos
na noite do dia 13 de março do ano Dez Mil, o tão sonhado Século
Cem, de Ésquilo. Aproveito uma das Cantorias que o meu Coronel
cantava com um entusiasmo como se fosse dele, a Ode Triunfal,
dessa sinistra raça de Antônios, e lhes digo: “Tenho febre e
escrevo”.
Sou
um negro de poucas letras e de muito chão de mundo, e a mim me
prometera que jamais em tempo algum escreveria sobre os fatos
terríveis de que participei, ora como testemunha, ora como
envolvido dentro deles até o mais recôndito de minha alma.
Alma
— este o meu secreto terror, a minha angústia. Não pela
minha, que já sei condenada ao fogo eterno, mas pela do meu
Coronel, pois desconfio que a dele também esteja condenada,
porque insuficientes as 365 igrejas que ele mandou construir na
cidade da Bahia e muitas outras ao redor do mundo. Porque, se
meu Coronel tivesse mandado construir Bibliotecas, ah, sim,
talvez eu não me angustiasse tanto.
Desconfiei,
mas sempre neguei a mim avançar este pensamento, que um dia
teria de escrever. E foi nos poucos livros da Biblioteca da Casa
de Detenção, para onde voluntariamente — afinal, sou um
Capitão!, só voluntariamente eu me aceitaria preso — eu me
recolhi, e tem sido sob a supervisão do prisioneiro nº 90.811,
Djalma Ribeiro Cavalcante, o nosso Bibliotecário, que aprendi
umas poucas letras, que agora as percebo de muita utilidade
neste relato, O Relato do Capitão.
Hoje,
do alto desses Cem Séculos decorridos, e isto é apenas uma
insignificante fração do “tempo-geral”, jamais extinguível
(nem sei onde li isto, certamente numa das muitas revistas
velhas, descartadas de tão envelhecidas, dos consultórios médicos,
que chegam aqui na prisão), pois bem, em cima dessa experiência
de um tempo-real-virtual tão longo, confirmo o que um dia o
Coronel leu na sala-de-janta da casa grande, e eu — presente,
tratando de maldades — ouvi de ouvido e guardei de ouvido:
Só
a Arte fica!
Era
um escrito — depois confirmei noutras leituras, nuns velhos
jornais — de um senhor, dito Coelho, parece-me Marcelo, era
Marcelo, o mesmo nome do moleque-bailarino que os gringos me
roubaram numa das muitas expedições negreiras que realizei
para o meu Coronel.
No
escrito desse senhor Marcelo, coisa de uns oitenta séculos
passados, ele falava na permanência da arte, e falava isso da
parte de um outro senhor, um tal Lévi — e aqui já me arrepio
em escrever esse nome de origem sinistra: um judeu.
Agora
lhes conto coisas de minhas viagens negreiras e também um fato
terrível que deve, com certeza, me impedir de ver a aurora do
Dia do Menino, para logo mais daqui umas poucas horas, 14 de março
do Ano Dez Mil, o Século Cem, de Ésquilo.
Negros,
os que trouxe da África para o meu Coronel, sempre os escolhi
fortes; negras para o meu Coronel, sempre novas, cheias de graça,
as mulheres de chã, como dizia meu Coronel com os olhos cheios
de safadeza... e eu também.
Mesmo
com todos os cuidados da boa escolha, os cuidados que uma
mercadoria valiosa impunha, afinal jamais trouxe negros
desvalorizados, alguns desarranjavam, talvez pelo balanço do
brigue em mar-alto e os efeitos da gordura da carne-seca que o
Coronel fornecia para o rancho do veleiro.
Ah,
descubro só agora que o Coronel era do Ceará: a carne-seca, a
carne-do-Ceará, coisa atualmente da minha mais absoluta repugnância.
E aqueles poucos negros que
desarranjavam as tripas no efeito da gordura salgada e do balanço
do meu veleiro, quando alguns extenuavam, eu mesmo com a força
dos meus braços os rebolei de amurada abaixo. Vivos! Jamais os
matei antes, e se não os matei não foi por piedade, mas como
quem dissesse vai, negro!, enfrenta os peixes e a correnteza,
eis a tua chance, vai! E disso não tenho remorsos. Era o jogo
da vida.
Doutras
feitas, e isso era impossível deixar de fazer, pois o meu sexo
insaciável sempre foi insaciável, violei algumas negras
jovens, e me tomava de algum remorso — não por elas, mas pela
honra do meu Coronel, porque as primícias das escolhidas eram
do Coronel.
E,
se nos olhos delas o prazer, nos meus o mar profundo pela traição
ao meu senhor Coronel — mas disso também não me aflijo agora
nem um pouco.
E
entre o chicote e a mão-carinho tangi os tempos e tangi os
homens que tombavam sob minha mão de ferro. Assim também o meu
Coronel, e sei que assim aprendi dele.
O
Coronel, não obstante, era um homem calmo. Uma única vez eu o
vi rasgar palavras. Foi no dia em que estávamos numa vila, no
Ceará, e um cabra de lá das bandas de um tal Rio Macacos
falava de um mestre-escola, um menino sem braços que uns
brancos salvaram. O cabra contava que lá naquele fim-de-mundo
de beira de rio tinha letra para toda a criançada, inclusive
para os de-maior.
O
cabra contava aquilo com tanto exagero que até desconfio que
fosse uma Biblioteca. Reclamava que na vila para onde se mudara
não havia mestre-escola para os filhos.
Ah,
meus amigos, nunca vi meu Coronel se agitar tanto como quando o
cabra ia contando a história e foi começando a dizer o nome do
professor, parece que começava com a letra E, mas ninguém
conseguiu escutar direito, pois, naquele segundo exato em que o
cabra ajeitava os sons na boca para pronunciá-los, o Coronel,
movido por uma força que só podia ser mesmo a do demônio,
saltou nas goelas do cabra e disse dentro da boca do cabra, a
essas alturas completamente emudecida:
—
Era a letra que faltava...
O
Coronel não disse mais nada, nem me atrevi jamais a perguntar
sobre o episódio, nem sobre a letra. E nem ninguém falou nada,
porque ali todos tínhamos juízo.
Aqui
na prisão aparecem livros de todo o tipo, alguns muito
estranhos. Os livros recebidos têm sido muito poucos. Participo
do desespero do nosso querido Bibliotecário, Djalma, o tempo
todo escrevendo para os mais diversos autores, como escreveu
também, naquele tempo, para um tal Cajazeira — a mesma raça
de Antônios! — pedindo um livro, e o referido Cajazeira
respondeu pedindo desculpas por ter retido o livro que sempre
(?) fora do Bibliotecário.
Até
hoje não entendi essa história e tenho certeza de que esses
indivíduos que escrevem versos são completamente loucos.
Como
poderia o nosso modesto Bibliotecário ser dono de livro algum,
se ele, Djalma, mandava pedir o livro em doação, esclarecendo
de logo que não podia pagar? Loucos, não tenho dúvida!
E
num desses estranhos livros, de magia pura, total feitiçaria,
abri uma página a esmo, e lá estava a tal letra E, que talvez
até fosse mesmo o E que tanto perturbou meu Coronel na cena da
taverna do Ceará.
Vejam,
ainda guardo as anotações:
“E — ei — en
— Plutarco sugere sete explicações para
interpretar o misterioso E inscrito no templo. As sete
explicações provam que os acessórios do culto de
Apolo se haviam tornado objetos de reflexão. Os fiéis
se interrogavam sobre eles, e o sentido mais carregado
de possibilidades místicas era sempre o que tinha
mais chance de ser preferido.
"E é o signo
do número cinco. Se tinha sido escolhido pelos sábios,
era para assinalar que eles haviam excluído do
hebdomadário primitivo dois tiranos indignos de
figurar entre os privilegiados do deus.
“E é a segunda
vogal do alfabeto grego, que representa o Sol, como
representa Apolo. A mesma observação pode ser
encontrada ao examinarmos as Leis de Platão e a
imagem délfica que delas se incorpora.
“E ou Ei é também
o se interrogativo (si latino) pelo qual começam
tantas consultas, e se refere ao deus consultado. Mas
Ei pode ser o eqüivalente de eithé — (praza aos céus,
queira Deus) — e nesse caso se dirige ao deus que é
implorado.
“El — se (si
latino) condicional, introduz ao silogismo, o que
condiz perfeitamente com Apolo, pois ele é, na
verdade, o primeiro deus dialético. Retomado em função
de algarismo, o E é questionado de novo sobre seu
valor em matemática, em fisiologia, em filosofia, em
música. A mística dos números, de Pitágoras a
Plutarco, já tinha feito muitas descobertas.
“Mas a mais bela
das exegeses, e na qual Plutarco se detém com satisfação,
é a que descobre, na letra E, a segunda pessoa do
singular do verbo ser: és, tu és. Esta é a afirmação
essencial do fiel diante de Deus. Apolo, como Yhaveh
para os judeus, é aquele que é. Alguns antigos, de
resto, diziam não somente Ei, tu és, mas Ei En, tu
és uma unidade.
“E — na notação
algébrica dos jogos dos deuses (xadrez), a letra E é
casa dos Reis, o Preto e o Branco.
“E — na
Mathematica Superior, é o símbolo do Fundamental
Transcendente.
“E — na
Phisica, símbolo da Energia, e = mc2.
“E — na
Philosophia, é o símbolo da Proposição Universal
Negativa.”
|
.
E, numa anotação no pé da página, uma letra rija
que até achei parecida com a letra do meu Coronel:
“E — primeira
letra de Estamos, em elipse, da Catedral, do Menino.
É também a primeira letra do nome do...” |
.
.
Um borrão de tinta impedia de ver o nome de quem. Só
naquele momento em que o cabra ia pronunciar o nome do tal
professor sem braços, uma única vez é que vi meu Coronel
perder as estribeiras.
Já
revirei todos os livros da nossa pobre Biblioteca, mas o livro
sumiu. Certamente algum prisioneiro dado a feitiçarias o retém.
Desculpem contar essa história antiga e insignificante.
Ontem,
12 de março do Ano Dez Mil, Século Cem, de Ésquilo, depois de
muitos séculos que não me encontrava com o meu Coronel, ele me
apareceu aqui na prisão, não sei se preso ou carcereiro, se
político atrás de votos ou pastor atrás de almas, afinal meu
Coronel é mesmo capaz das mais imprevistas missões. Pois bem,
depois de muitos anos, meus olhos enrijecidos pela maldade
contemplaram aquele que para mim sempre foi um deus, mas na
verdade um demônio também.
O
Coronel trazia debaixo do braço uma Cantoria estranhíssima que
ele mesmo recitou aos berros, e a Cantoria tinha o meu nome,
Salomão, nome que ele mesmo botou neste negro-aqui que lhes
escreve, quando ele mesmo, o Coronel, com um caneco d’água,
me batizou na religião dos padres judeus. E se minhas aflições
já me impediam, por longos séculos, de dormir um sono solto,
como aquele que eu dormia no baloiço do brigue ao lado de uma
negra nova, daquelas de riso e gesto de chã (receita de negra
que se preza, segundo o meu Coronel, e eu confirmo
integralmente), a leitura que o Coronel fez da Cantoria dele, do
tal poema Salomão, terminou por me assombrar.
Amanhã,
daqui a poucas horas, será o dia 14 de março do ano Dez Mil.
Amanhã, me disse o Coronel, serão comemorados os anos de ouro
do Menino, que não foram nem de leve comemorados no maldito
sesquicentenário, 14 de março de 1997.
Naquele
ano miserável, 1997, foi preciso que um poeta de nome russo, um
certo Alexei, desabalasse de lá das terras do Coronel Marcelo
para fazer uma zoada sobre o Menino. O máximo que conseguiu foi
um livro que um Coronel de nome alemão mandou pagar. Quem disse
que distribuíram o livro ao povo?! Theatro, quem disse que teve
theatro? Era no convite, só entravam os “convidados”; nem
pagando o povo entraria!
Discurso,
quem disse que teve? Aproveitaram quatro pingados gatos, entre
eles um poeta, Geraldo, dito Maia, um dos poucos a favor do
Menino, e outros quatro gatos também pingados fizeram um comício
contra o novo Coronel-da-Cidade, Antônio, não o verdadeiro.
Agora
sim, o Coronel garante festa. Falam num tal Ésquilo, e todos
dizem que esse senhor, Ésquilo, de quem nunca vimos um livro
aqui na Biblioteca da prisão, está de volta, e que ele é o
Menino, ou, ao contrário, o Menino é ele; isto ainda não
ficou claro, mas os dois não são dois, são um só, parece. E
este o motivo do meu terror.
O
Coronel me disse que o tal Ésquilo, ou o Menino, tanto faz, vai
recitar um pedaço da Cantoria que o Coronel apelidou de Salomão,
e que eu terei licença aqui do presídio para comparecer às
solenidades como um dos homenageados. Disse também ao Bibliotecário
que ele é um dos convidados. Disse ainda ao Bibliotecário que
a partir de amanhã um senhor completamente cego virá tomar
conta da Biblioteca da prisão. Só pode ser maluquice botar um
cego para tomar conta dos livros!...
Estou
simplesmente aterrorizado. Menti para o Coronel! Aquela história
do negrinho, a quem os abutres-urubus já tinham furado os olhos
antes de eu chegar, é uma fraude. Aliás, não é não, a história
é estupidamente verdadeira, como também verdadeira a história
de Francisco, outro molequinho, do Ceará, que morreu
perguntando à mãe se no Céu tem pão; como também verdadeira
a história do tal professor sem braços que os brancos
salvaram, entre eles, parece, o Coronel.
Mas
a fraude contra tudo o que a minha madrinha me ensinava da fé-cristã
está na maneira como contei o episódio ao Coronel, e que ele,
tal qual contei, botou na Cantoria que vai ser lida amanhã nas
festas do Menino. Tudo mentira. A verdade conto agora, coisa de
uns oito mil anos antes, um pouco mais, um pouco menos, que não
sou dado às anotações de datas.
Cheguei
certa vez às terras negras e avancei de mato adentro. Também
queria conhecer. Não me conformava em não conhecer aquelas
terras e de ficar somente na palavra dos negros encarregados do
tráfico. E botei chão na frente dos meus olhos.
Numa
manhã de muito sol quente, cheguei a uma aldeia abandonada. A
fome era a senhora rainha de toda aquela vastidão. Porque os
negros guerreavam entre si. O Coronel sempre me disse: —
Cuidado, negro, a maldade não ter cor!
No
meio dos cinzentos do sol e da paisagem seca, destacava-se uma
manada de abutres, bichos terríveis, muito maiores do que
aqueles que aqui chamamos urubus.
Imaginei
que fosse alguma besta selvagem morta por ali. Era um moleque.
Um caco de moleque, aliás. Avaliei se aquele traste teria preço
no outro lado do mar azul. Não tinha. Refugo. Refugo do Capitão.
Eu
disse: é a minha chance, este negrinho veio a calhar! Vou ser
um pintor famoso! Agora sim, sou um artista verdadeiro, e não
um desconhecido construtor de muralhas de pedras toscas ou um
reles escolhedor de negros para o tráfico de um Coronel
poderoso.
Ajeitei
com os pés o molequinho para um visual mais sinistro, acendi
meu cigarro, catei uns carvões e pintei. E ganhei o prêmio
recorde! Salomão é pintor, diziam onde eu chegava.
Virei-me
para os horizontes, contemplei os cinzentos do dia, acendi mais
um cigarro, xô urubu, mais outro cigarro, e nunca toquei no
moleque com as minhas mãos, porque minhas mãos estavam em
arte!
Não
sei do fim do moleque. Sei do meu. Ali mesmo morri. Ganhei o prêmio,
ganhei a Glória, e minha alma, desde aquele instante em que me
afastava e ouvia os sons como se fossem de uma coisa rasgada —
talvez fosse mesmo, rasgada, não olhei para trás para conferir
— senti que ela, a alma, estava entregue a todos os demônios
do universo para todo o sempre.
Agora
me aparece o Coronel e diz que amanhã, Dia do Menino, 14 de março
do ano Dez Mil, o Menino ou esse tal Ésquilo, ou qualquer
desses muitos Antônios chegados a poetar, vai recitar aos
berros a passagem gloriosa do tal canto Salomão, passagem que
é muito mais imunda do que os braços podres do professor sem
braços.
E
o pior é que ele me disse que virão para a solenidade esses
demônios embatinados — afinal, o papa reconheceu a grande
besteira de ter retirado a batina dos padres, e a missa voltou a
ser solene e em latim. Pois os embatinados estarão benzendo de
água de feitiçaria branca todo o palanque da festa do Menino.
Como
suportarei esse suplício se não suporto os sonhos em que o
maldito negrinho da pintura premiada me aparece, todas as
noites, os olhos súplices — não estavam furados ainda, isto
eu inventei e botei na pintura —, e, numa vozinha miserável,
me diz:
—
Capitão, sou eu.
—
Eu quem, maldito, quem és tu?
—
O Menino, Capitão, sou o Menino!
Então
me aparece o Demônio-em-chefe, o Coronel dos Infernos:
—
Por que, negro, tu não socorreste o negrinho?
—
Socorrer como, senhor, se eu não levava nenhum mantimento de boca e o
mal do negrinho era a fome?
—
Mas Salomão, tu tinhas coisa a dar ao molequinho; tinhas, sim!
—
Tinha não! Minhas mãos abanavam, apenas os cigarros, e
certamente o negrinho não iria querer fumá-los.
—
Tinhas, negro, tinhas alguma coisa! Foi a ambição muito
maior que te perdeu. Estás perdido!
—
Perdido? Como poderei estar perdido, se o senhor está aqui
rondando minha alma para me levar! Se vou para sua casa, não
estarei perdido jamais. No mínimo, estou na companhia de Vossa
Excelência!
—
Engano teu, Salomão, teu crime foi o maior dos crimes, lá na
minha casa não tem lugar para ti! És maior do que o
Inferno! Tu não vais acreditar, mas neste crime teu, estou
contra ti, como se fosse a serviço do Outro, cujo nome não
ouso chamar!
—
Mas, senhor Coronel-Demônio, juro que eu não tinha nenhuma
bolacha nos bolsos, nem cantil, nem nada, só os cigarros...
—
A tua saliva, maldito! E teus braços de acalanto
serviriam. Bastava cuspir na boca do negrinho, a tua saliva de
negro forte, quem sabe, teria dado... Tempo! Sempre temos alguma
coisa, sempre temos algo, seja para o bem, para o mal, sempre
temos!
—
Por favor, senhor Coronel-Demônio, então eu não poderia
realizar minha pintura?
—
Não, maldito! Naquele instante tu não poderias realizar
pintura alguma. Aquele fiapo de moleque foi posto ali pelo
Outro, para te tentar. Não fui eu que o coloquei... A ti
cumpria apenas um acalanto e a desistência... Poderias pintar
depois, de ouvido, mas colocaste a arte dos homens acima da
Arte-do-Homem!
—
Mas o moleque ia morrer de qualquer maneira... De morte eu
entendo: sou o senhor-da-morte no meu brigue...
—
Está no relatório da tua maldita pintura, negro: «...depois
de fazer a foto, ele espantou o abutre e ficou observando...». —
? —
Foto coisa nenhuma! Primeiro, e não depois, espantarias o abutre e acudirias o moleque. Se
ele havia de morrer, que morresse em teus braços! Eu, o Coronel dos
Infernos, o demônio-em-chefe, era o Abutre! O moleque era o Outr...
E
aí, terrivelmente pior do que a visão do Sinistro, que
desaparece aos impropérios, surge uma malta de judeus entoando
salmos que não entendo e músicas que detesto, e me dizem que
aquele moleque miserável era ...o Menino. Chega agora o Coronel
e fala num Menino que também seria Ésquilo, e afinal não sei
ao certo quem seja mesmo. E se for o moleque dos abutres?
Acredito que os abutres o tenham estraçalhado. Por outra, me
indago como seria possível ele me aparecer para me aterrorizar
todas as noites. E se for ele? E se me reconhecer?!
—
Salomão, que papéis são estes?
—
Bibliotecário Djalma, estes papéis são uma Cantoria que o meu
Coronel recitou ontem, 12 de março do Ano Dez Mil, para mim, e
eu copiei ontem mesmo, de memória.
—
Eu já havia lido, você tinha saído para o banho de sol, e
muito me admirei com as peripécias que você nunca me havia
contado. E esta foto, Capitão, de quem é?
—
[...]
—
Isto, senhor Capitão, é a história-verdadeira?!
—
Sim, Djalma, meu caro senhor Bibliotecário Djalma, esta pintura
é a única e verdadeira-história onde alguém, eu, o Capitão,
ultrapassa os limites da Arte.
Morreu
Kevin Carter aos 33 anos, o fotógrafo sul africano, sob
suspeita de inalação de monóxido de carbono. No ano
passado, Carter fez a foto que o consagrou, uma imagem
contundente da fome no Sudão. Nela, um abutre observa
uma criança faminta. A foto lhe rendeu neste ano o prêmio
Pulitzer, o mais importante do jornalismo americano. Carter
estava deprimido com a violência da realidade que
retratava e também com o assassinato de um amigo dias
antes de ser anunciada a sua premiação. Segundo seu
relato, depois de fazer a foto ele espantou o abutre e ficou
observando a criança com horas a fio, "chorando e
fumando". Dia 27 de junho em Johannesburgo.
[Revista VEJA, Brasil, 24 de agosto de 1994.]
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