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Um esboço de Da Vinci

 

 

Soares Feitosa

Jornal de Poesia

 

Salomão

 

Quarto Movimento

— O estupro das águas —


 

        'Stamos em pleno mar!

                            Antônio,  in O Navio.



Coronel, nas minhas marinhagens 
os ímpios perguntam por que o Menino 
colocou na porta da Catedral
um Estamos cortado, tirando o 
e os ímpios me zombam:

            “Recurso, 
            recurso poético, 
            para dar certo 
            nos metros.”


Foi não, Capitão! Ajuntei 
meus cantadores, profetas e violeiros
e mandei  apurar. 
O Menino não precisava cortar 
palavras; nem o Capitão jamais precisou cortar caminhos; 
quem sabe, sabe: numa muralha, 
as pedras, as coloca inteiras;
do ponto de chegar, do ponto de partir;
em partida, em chegada — 
                                 a hora, Capitão!

Assim te ensinei: —  o mar, a terra.

É assim mesmo, Coronel: 
sempre risquei no olho 
o monte de pedras; o largo dos caminhos,
o dorso do mar que também risquei;
a muralha obscura — risquei-os todos
entre olho de riscar e mão do fazer, 
sempre tracei 
o prumo de não pender, assim! 
 

Porque, Coronel, 
o prumo de afiar, o prumo de segurar 
têm de estarem “lá dentro”..., 
de fora, as muralhas; 
as viagens morrem na chegada porque de dentro 
é o rumo. 
 

Porque, Coronel, se no meu brigue tem 
astrolábio, 
tem, claro que tem, do melhor; 
capitão-Capitão, no espinhaço do mar,
navega de ouvido, 
zombando à noite larga, 
por mais que se aflijam os aflitos...
olha os céus, olha os caminhos, 
só de deleite, quando quer.


Como se fosse, Coronel, o falcão-gavião 
voando atrás da juriti, o vôo da morte 
entre as penedias, o rapinento a lhe medir
as distâncias, no bico curvo, o bote vil: 
(os dentes crivados por entre os dentes)
assim!, Coronel! 
 

 É assim mesmo, Capitão:
 às fera, o caminho de romper;
 à juriti, o caminho da espera! 


Também às muralha, Coronel;
as negras desembarcadas
(dinheiro, Coronel, muito dinheiro!):
nos olhos levo, nos olhos trago,
carrego comigo o dia da volta.

 

Agora me diga, Coronel, o segredo,
por que, afinal, o menino
riscou o “E”?

Capitão Salomão, 
capitão meu de meus negreiros,
nenhuma palavra é mais forte 
do que esta:
                 Tãm!
Escuta, Capitão, 
o baque da montanha avalanchada
é assim: 
           Tãm!

O  baque da ave de rapina despencada 
dos céus, sob o meu seteiro rijo
é assim: 
           Tãm!

O baque do negro que desaba na água,
de tua mão terrível, jogado aos peixes
no avanço do brigue viageiro,
é assim: 
           Tãm!

Vê, Capitão, 
o Menino não adejava canto macio
porque o momento não era macio;
ele rompe as rochas do Tempo, 
rasga a cortina do Mundo,
assim:
         Tãm!


               ’Tamos em pleno mar, Capitão!

Naquele instante, Capitão,
nos quengos do Menino,
formou-se o estupro das águas...
Assim:
         Tãm! 
 

E um colosso de matéria líquida
explodiu
em todos os trons, Capitão:
                                          Tãm!

 

’Tamos em pleno mar, Capitão!
 

Dize, Capitão,
quem maior lhe foi?

Só se foi, Capitão, o rasgão do véu, 
o ensurdecer do dia em pleno dia, o Templo,
o rebentar das sepulturas, 
os mortos lívidos de susto,
as rochas se esmigalhando ao meio,
as paredes em pedregulho, 
o esturro dos céus:
                        — expirou o Crucificado!
 

Ah, meu senhor Coronel, agora eu já sei!
Estava em pleno mar!
Um estrupício d’água, 

uma montanha líquida
subiu 
aos céus;
o mar secava, Coronel, 
e enchia outra vez; 
quando me cuidei,
o veleiro, cheio de negros (era
uma bela partida, 
mercadoria de primeira, a marca 
de Comércio & Indústria,
a Feitoria do Coronel, os escolhidos 
do Capitão®, as negras do Capitão®, 
seriam de lucro vasto!) 
quando me dei conta 
o brigue baloiçava em terra súbita: 

      — Varrei os mares, tufão! —
 

 

Porque a ventania, Coronel, 
de tão medonha,
arrancou todos os negreiros, 
os viajados e os viageiros,
negreiros que nem existiam mais;
ajuntou outros que estavam por vir, outros 

que nem construídos estavam;
ajuntou-os a todos, como se os pegasse 
numa mão de ferro, e os barcos com todos os negros, 
e os barcos com todas as negras,
arrmetidos foram 
nos morros da cidade-lá-em-cima.

 

 

Nenhuma diferença agora, Coronel: 

                                                    de mar
                                               —e—
                                         morro!

 


Não há mais veleiros, Coronel, encerrei
a carreira de mar;
velejo hoje em terra falsa,
nuns charqueados também velejo; 
às palafitas, invado rios, invado mangues, 

paliças minhas... o mar em seco. 

E os negros pendem,
e as negras pendem, 
das mesmas amuradas pendem, 
os elementos detonados do Menino 
                                                   pendem...
 

É vento, é água: 
                        pendem! 
 

É água, é vento: 
                         pendem!
 

Tudo coisa de mar-alto:
                         pendem!
 

Agora no alto os veleiros 

                         pendem!
 

E da cidade-lá-em-cima
                          é o baque da noite!

 

'Tãmos em pleno morro!
 

 

 

                                                      E a terra me corre, 
                                                    me falta nos pés,
                                                extravia-se a terra, 
                                             embaixo a paliça;
                                          os negros correm, 
                                        as negras correm,
                                      trêmulos da noite, 
                                   horrendos da festa,
                                o açoite do vento, 
                             o ronco das águas
                          e na manhã, Coronel, 
                       cavoucamos os mortos!
 

 

‘Tãmos em pleno morro!

 

 

Tiziano, O sagrad e o profano

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Tiziano, O sagrado e o profano

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