Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

Raymundo Silveira


 

Praia do Futuro

 

O hálito suave de Fortaleza exalando fragrâncias de natureza soprava na face e ele aspirava com sofreguidão, enchendo os pulmões. Era hora de quietude... alta madrugada. Só escutava o ruído do motor do conversível. Vinha de um baile no Clube do Médico, na Praia do Futuro. E um futuro de glórias o esperava, ou assim ele cuidava, fantasiando e fantasiado com as fantasias dos vinte e oito carnavais. Dirigia a uma velocidade moderada. Nem tão veloz a ponto de expor ao perigo a si e a outras pessoas, nem tão lentamente que corresse o risco de ser assaltado. De repente, a uma distância de mais ou menos cem ou duzentos metros, uma mulher acenando uma carona. Uma premonição mandava não parar... Parou. Deparou com uma moça atraente como quase toda jovem mulher.

Bêbada. Este teu toca-fitas toca fitas? posso pôr este cassete para ouvirmos, é um lançamento do Roberto, músicas lindas, há uma que adoro, fala num carro em alta velocidade indo de São Paulo a Santos... uma estrada cheia de curvas, amo a velocidade, o perigo me excita, este teu carro só desenvolve isto? ou tens medo de correr? escuta: na estrada de Santos você vai me conhecer... mais, corre mais, por favor, estou ficando excitada, mais, mais forte, o que temes? pareces tão nervoso, corre mais, cara, deixa de ser medroso, estamos apenas a oitenta por hora, acelera este troço ou isto é um calhambeque bibipo? escuta: eu prefiro as curvas, da estrada de Santos onde eu tento esquecer... é tudo o que eu queria: esquecer, esquecer, esquecer... ou morrer, não me peça pra não chorar, somente corra, é tudo o quanto pode fazer por mim, mais, mais por favor, cara, estamos apenas a noventa, ouve: mas se o amor que eu perdi eu novamente encontrar... queria um amor, que não tivesse medo, que me excitasse de perigo, esta cidade parece não ter homens de verdade, são todos uns medrosos, uns covar... isso, agora tá bom cento e vinte, será que este carango bota cento e trinta? experimenta, por favor...

Não foi numa curva da estrada de Santos, mas numa esquina da Santos Dumont, ao dobrar à direita para entrar numa via perpendicular. A porta se abriu violentamente e a garota foi atirada contra um poste. Examinou rapidamente... Miolos expostos... Traumatismo craniano. Morte imediata. Como um louco, não raciocinava. Nem sabia como agir... Abandonou corpo e almas. A dele junto com a dela. Saiu em disparada. Dirigia instintivamente. Acordou cedo. Boca de azinhavre, cabeça de prego sendo martelado, náuseas... A princípio não lembrava sequer como chegou em casa. Apenas de ter enchido um copo de uísque pelas beiradas e entornado junto com pílulas de desvaliuns. Aos poucos, a memória foi chegando e junto, o terror...

Levantou-se e abriu a janela. A lufada que recebeu em cheio, não era mais o hálito da madrugada, senão o fartum de outra Fortaleza. Agora, o vento soprava incertezas. O mesmo bafio a que estava acostumado a inspirar, oito anos antes. O Deus colorira de cinzento um dia que tinha tudo pra ser de ouro. E a hora era de inquietude. Pareciam chegar as artimanhas de uma manhã como há muito não amanhecia. Naquele tempo, sobrevivia na miséria e vivia de devaneios. Morava de favor com uma tia num tugúrio situado numa sub, sub urbe... Queria ser médico. Não se tratava exatamente de vocação, mas de ilusão, senão de pura ambição. Havia interesse material em jogo, sim: perspectiva de aburguesar-se, ganhar dinheiro, deixar aquela vida miserável, ascender socialmente. Desde criança ouvira comentários sobre o status e a garantia de poder aquisitivo proporcionados pela profissão médica. Todos esses ingredientes se ajuntaram e, aquecidos pelas chamas da obstinação, se transformaram num bolo de desejo confeitado de obsessão.

Você trabalha? então, como ousa estudar medicina? esta é uma profissão séria, exige dedicação exclusiva, quem pôs essa idéia na sua cabeça? no meu tempo não havia tempo sequer para irmos ao cinema, por isso é que acontecem os erros, os desastres, onde já se viu estudar medicina e trabalhar? desista enquanto é tempo, se acha indigno o cargo que exerce, submeta-se a um concurso, melhore de emprego, estude um pouco e estará feito para o resto da vida, é um conselho de amigo, seria milagre, muita sorte ou... fraude se obtivesse nota suficiente para ser aprovado... ainda pretende prosseguir? Mas eu fui aprovado, professor. Então para que requereu revisão? deve ter colado... muita audácia da sua parte, fraudar um exame num curso médico e ainda por cima pedir revisão de provas, vá embora.

Naquela ocasião odiou o mestre. Agora se arrependia por não ter seguido o conselho. Daria, não apenas o diploma, como tudo o que conquistara depois de formado, para voltar a morar no tugúrio da tia. Sentia saudades do fartum daquela Fortaleza, da redinha enxovalhada, do feijão com arroz, do pão sem manteiga de cada dia... Ansiava por aquela miséria. Desde que embrulhada nuns molambos de paz. Protagonizava, na vida real, os filmes a que tanto assistira. Cada tilintar de telefone, um sobressalto... um apito de guarda penitenciário. Foi ao banheiro e se olhou no espelho. E o que viu não concorreu nem um pouco para aliviar a angústia. Pelo contrário: viu uma máscara e não a própria face. Os olhos injetados de sangue tornavam rubras as escleróticas. O cabelo em desalinho e uma inchação em torno das órbitas configuravam a imagem de um doente grave. Ao escovar os dentes, parecia se esforçar para esvaziar as lembranças agitando violentamente a escova.

Não havia descanso. Dormia mal, alimentava-se mal e vivia sob contínua tensão ocasionada pelo excesso de trabalho, de aulas, de estudo e da ansiedade ante a perspectiva da competição que o esperava. Aquela obsessão ia custar muito mais cara do que imaginava. Naquela época custara dinheiro (que ele não tinha), entretanto, o futuro ia cobrar exorbitantes juros de mora através do comprometimento da saúde física e emocional (que ele tinha). Sem falar num ranço que ficou impregnado e iria se manifestar para sempre, sob a forma de uma indiferença crônica para com o sofrimento alheio. Curiosamente, as pessoas que sofrem o tormento da extrema pobreza tendem a ser mesquinhas. Propendem à insensibilidade para com a dor do semelhante. Parece se tratar menos de um sentimento de revanche do que algum tipo de desprezo para com os mais fracos. Aparentemente, as vítimas da desgraça vêem no outro desgraçado uma imagem refletida do seu próprio fracasso. Tratando com indiferença a miséria alheia, pretendem negar, esconder, suprimir, a vergonha que sentem por serem também miseráveis. Por outro lado, quando acaso bem sucedidas, carregam sentimentos misantrópicos. Como se o eventual sucesso indicasse a fraqueza do outro e assim raciocinassem: encontra-se nesse estado por livre opção, ócio ou tibieza. Olhem para mim, experimentei tudo isso, mas venci. Venci. Quanta ironia! Associou livremente esta palavra não a algum triunfo, senão ao vencimento de um prazo preste a se esgotar. O prazo que definia seu tempo de liberdade.

Os exames vestibulares se aproximavam e com isso iam-se acumulando mais estudos, mais aulas, mais tensões e nenhuma trégua no trabalho. Não obstante tamanhos percalços, a avaliação do desempenho escolar nos cursos que freqüentava (e pagava com sangue suor e lágrimas) variava entre Bom e Excelente. Ministrou aulas para os colegas. Química, a disciplina favorita. Contudo, não descuidava das demais. Atirara-se àquele empreendimento como um náufrago atracado a um troco de árvore - único objeto flutuante disponível. Chegaram, enfim, os dias decisivos. Mantinha-se equilibrado, emocionalmente, pois sabia o quanto estava preparado. Durante dois dias foi um dos primeiros a terminar de redigir as provas. Sabia-se quase aprovado, pois tinha convicção do próprio desempenho.

Não tinha ânimo para apanhar os jornais e encarar as manchetes. “Tarado do volante violenta e mata jovem”. “Violência e álcool fazem mais uma vítima”. “O assassino fugiu sem prestar socorro”. Não leu nada disso. Nem sabia se existia. Bastava imaginar para se sentir alvo da indignação popular. Quem sabe, seria linchado. A consciência culpada acusa, julga e sentencia por antecipação. Queria ser capaz de extrair do ar libelos de defesa como faria um advogado dos deuses, esgarçar o tempo e depois voltar a cerzi-lo, como se assim o fizesse parar de escoar, transformar quilos de horas em nanogramas de alma. E, então, começar do nada como se nada quisesse, cruzando as fronteiras do ser e virando algo que nem ele saberia definir.

Na manhã do exame de Química, acercou-se de um pequeno ajuntamento de candidatos camuflados num terreno baldio próximo ao local do concurso. Um adventício sobraçando uma pilha de papéis convidou-o para detrás dum muro. Eu tenho a prova, quer comprar? E para demonstrar que não estava blefando mostrou cópias, já resolvidas, dos testes anteriores os quais ainda permaneciam sob sigilo. Sentiu o chão oscilar a seus pés. Um terremoto sacudia o corpo inteiro. Quanto? Como é pra você, apenas vinte mil. Quinze mil era o valor mensal do seu salário. Não tomara o café da manhã à falta de uma moeda.

Julgado, condenado e comutado. Não cumpriu. Pelo menos como queria a sociedade. Desde o dia da sentença é quase tão vivo quanto um pinheiro, uma mangueira, um pé de alface. O olhar é fixo e indiferente. A postura é sempre a mesma, ou seja, qualquer uma em que o puserem. Às vezes, cabeça e membros superiores sacolejam no mesmo ritmo como se o fizessem sob a ação de uma ventania. A atitude é de estupor. Obedece automaticamente, com indiferença, a qualquer ordem, desde que a esta esteja condicionado através de esforços repetitivos orientados por terceiros. Não fala. Não interage com o ambiente nem com ninguém. Não sabe quem é. Nem mesmo se é...
 

 

 

 

 

25.10.2005