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Jornal do Conto

 

 

Raymundo Silveira


 


Um homem bem-sucedido




 


No peito, uma dor. Somente uma dor. Mas muita dor. Na alma, um ferro em brasa cauterizando, a sangue frio, as chagas abertas pela vida. Não era só. Suor frio, sensação de morte iminente, sufocação... Desespero. Não era como um afogado, cujas vias respiratórias se encharcam e a água passa a ocupar o espaço do ar. A vítima tem consciência de que se salva... Ou morrerá logo. Não! É também uma sufocação. Mas esta não alimenta qualquer esperança de parança. De um final. Feliz ou infeliz. Tinha de chegar cedo ao escritório. Havia o risco de o cliente fechar negócio com o concorrente. Não encontrava as gravatas. Quando achou, veio a indecisão. Qual deveria usar? A de cor vinho, para combinar com o paletó bege. A bege para combinar com a camisa vinho? A lilás, parecia mais adequada se vestisse o blaser branco... Nada de decidir. Estava muito atrasado. Risco de perder cinco mil por causa do diabo duma gravata. Terminou optando por um terno azul-marinho, camisa marrom terracota e gravata anil. Assim, terramarear estariam representados. Engoliu uma xícara de café com leite, torradas com manteiga e geléia. O elevador demorava. Desceu em disparada pela escada. Cada sinal vermelho era computado como cem a menos. Cada engarrafamento tornava aquele carro importado mil dólares mais distante. Compare-se à situação de um condenado numa câmara de gás morrendo aos poucos para proporcionar prazer a uma assistência sádica, ávida de se divertir. Tendo o carrasco recebido ordens para liberar lentamente o gás letal. Para as testemunhas desfrutarem aquele espetáculo durante o máximo de tempo possível. Era como se o pescoço de um gato tivesse sido atado ao eixo de um automóvel e este se movimentasse lentamente. O medo de não morrer depressa provocava mais angústia do que o medo de morrer. O cliente não estava. Ou bem não chegara ainda, ou mal já se encontrava conversando com o rival. “Olá Zé Onofre, tudo bem? Como estão os negócios? Nada, então? Pois é cara, a coisa tá preta. Também cheguei às oito (eram nove), e neres de pitibiribas. Tô pensando em mudar de ramo e...” Graças a Deus, ninguém chegou lá. A menos que o Zé Onofre estivesse escondendo o leite. Ou melhor, o cliente, ou pior, os cinco mil... Às dez já tinha fumado cinco cigarros. Ou meios cinco cigarros. Porque mal acendia, jogava fora. Os jornais intocados. Não havia como ler durante aquela ansiedade, embora a manchete de um deles falasse em falência, fraude e falcatrua no setor imobiliário. Teria aquele laranja dado com a língua nos dentes? Não era possível saber agora, ou o cliente lhe escaparia. “Boa noite! Qual é o seu con...” As últimas sílabas da palavra convênio não escutou, pois já cambaleara rumo a um portão encimado pela sigla UTI. Estava travada. Esmurrou-a violentamente com as duas mãos e só depois acionou a campainha. Uma enfermeira entreabriu meio palmo. Derrubou-a com um empurrão, enquanto seguia desesperado em busca de ar e de um lugar menos desconfortável para morrer. Atirou-se sobre um leito vazio. De doente e de equipamentos... E de médico. Nenhum socorro. Enfim, entrou. Duas horas de penosa negociação. O homem estava calmo e falava lentamente. Enquanto ele só pensava na manchete do jornal: “Corretor de Imóveis Acusado de Crime do Colarinho Branco”. Às onze em ponto o negócio foi fechado. Um cheque de dois mil para aquele dia e mais seis... Não tinha opção. Era aquilo ou nada. Não. O jornal não tocava no nome dele. Ainda bem. Tratava-se de um concorrente a menos. Ou de uma corrente a mais. Pois no final da matéria havia uma declaração do Delegado que o deixou apavorado: “Mais corretoras serão investigadas”. A azia estava demorando. Enfim chegou. A sorte eram os bolsos. Todos os paletós eram recheados com pastilhas de magnésia. Fez cálculos e chegou a uma conclusão: com alguns sacrifícios (cortar jantares em restaurantes luxuosos era um deles) daria pra pagar a entrada do Mercedes. Porém, em si, este tormento se tornava quase irrelevante diante da indiferença das pessoas que se encontravam nas proximidades e eram as únicas de quem o supliciado poderia esperar ajuda. Todos se recusavam a prestá-la. Pior: escarneciam dele e o injuriavam. O mundo real se transformara em algo inconcebível. Um lugar muito pior do que o Inferno. Pelo menos aquele inferno reproduzido pelos artistas, em suas obras, durante séculos. Não se tratava de nada disso. Apenas o único médico e todas as três enfermeiras estavam tentando ressuscitar um morto mais grave. Era parada! Parada cardíaca. E aquela casa de praia ficaria para o próximo semestre. Decerto a mulher não ia concordar. Mas era ele quem decidia. Afinal, que diabo! O dinheiro foi ganho por quem? A azia melhorou. Hora do almoço. Não sentia fome. Ao meio dia tomou meios três cafezinhos e fumou mais meia dúzia de meios cigarros. Depois desceu. Desta vez pelo elevador. E foi ao Banco. O expediente externo encerrava às três. E se só pudesse sacar aquele dinheiro na segunda-feira... Nem concluiu a idéia. Medo de pegar... De dar azar. De perder dez. Não. De deixar de ganhar dez... Podia acontecer, pois a aplicação tinha de ser feita noutro Banco. Dois vultos brancos. Pareciam ser o de um homem e o de uma mulher, vindos em sua direção. Quando recobrou os sentidos, a dor e a falta de ar eram menores. Somente aquela angústia terrível retornava aos poucos, como se despertasse de um sono forçado e retomasse a consciência da tragédia. Várias veias dos membros superiores e inferiores transfixadas por agulhas e borrachas, pelas quais pingavam líquidos de litros dependurados ao lado. Manchas roxas na superfície da barriga denunciavam que aquela também sofrera as investidas das agulhas. Sobre o peito, uma parafernália de fios, placas metálicas, parafusos, esparadrapos e correias As mãos e os pés atados. Detrás da cabeça vinha o som de um bip dizendo sem parar: “indo, indo, indo”. Tirou um extrato e havia um débito no valor de duzentos e cinqüenta. Não. Não tinha emitido cheque naquele valor. “Você se lembra de algum cheque de duzentos e... Lembro de ter te dado aquele... Em branco. Pra pagar as mensalidades da escola. Mas foi tudo isso? Não é possível. Isto é um roubo! Vou ao decon”. Duzentos e cinqüenta... Ela tinha dito que não passaria de sessenta. Deste jeito nem eu me matando de trabalhar compro carro importado, imagine casa de praia. Sorte se conseguisse manter em dia as prestações do sfh / bnh ou qualquer nome que este troço tivesse agora. “Idade? Convênio? Nome da mãe? Nome do pai? O pagamento está em dia? Endereço? Sabia que se for preciso angioplastia, com colocação de stents, este convênio não paga? Há quanto tempo sente dores e falta de ar? Fuma? Quem será responsável? Quem é o acompanhante pra assinar o pedido da ordem de internação?” Suportou o cheiro daquela mistura, de merda de anamnese com maionese de merda, o quanto pôde. O pagamento do convênio estava em dia. O contrato cobria todas as despesas. Fumava. Não tinha ninguém para assinar os papéis. Sentia aquela dor e a falta de ar havia menos de seis meses. Pensava que fossem gases. “E aí Zé Onofre, pintou alguma coisa? O quê? Vendeste quatro apartamentos e uma casa? Não é possível!” Não dormiu. A frustração pela vantagem do competidor doía muito mais do que se ele próprio tivesse perdido o dinheiro que o outro ganhou. Tragam os papéis. Para ele mesmo assinar. Pago tudo. Não se preocupassem. O seguro saúde é total. Naquela manhã não escolheria mais gravatas nem ternos. Vestia o primeiro que pegasse. Ia se postar na calçada pra conferir se o Zé Onofre estaria blefando. Só porque sabia que ele ia ficar puto da vida. Devia ser mentira... Tinha de ser mentira. Quatro apartamentos e uma casa num só dia? Impossível. “Os exames não deram muito bons. Terá de ser submetido a um cateterismo. Se durante o ato for constatada uma ou mais obstruções e o convênio cobrir o pagamento dos stents, a intervenção será feita durante o próprio procedimento, aproveitando a anestesia. Do contrário, dentro de uns dois ou três dias terá de ser operado. Cirurgia cardíaca para implantação de pontes. A menos que...” “O quê?” “Assine um cheque pré-datado e o nosso serviço contábil constate a existência de fundos”. Infelizmente, era verdade. Três apartamentos ele vendeu mesmo. Conferiu pessoalmente com cada cliente que saía de lá. Foi neste instante que começaram as dores no peito. “O senhor é um homem de sorte. Foi bem-sucedido... Pelo menos, parcialmente. Nada garante que as coronárias não voltem a entupir. Além do mais, um outro exame constatou insuficiência cardíaca congestiva. Nunca mais poderá fazer caminhadas, voltar a beber, comer gorduras, sal... Quer que comunique a alguém? Pode sair na manhã de amanhã. Se quiser, fique até depois de amanhã, de manhã.” Quis. Mesmo porque ainda não sabia para onde ir. Além do mais, sentia dores. Várias dores. Mas pouca dor. E não tinha falta de fôlego. Deu graças a algum deus por causa disto. Embora tivesse certeza de que não ficaria assim por muito tempo.
 

 

 


 

12/07/2005