Diz Luís Pimentel, o autor de O calcanhar da memória, na contracapa de seu livro, que: ''A cidade é o que fica: / solidão, engenho e arte''. Tome-se, pois, o volume como um resumo das vivências por ele consolidadas ao longo de 50 anos de existência e filtradas pela visão poética de um escritor que faz conto, crônica, poesia, humor e ensaio, além de ser jornalista, editor, professor e pesquisador de música popular brasileira, com presença em jornal, revista, televisão, livro e oficinas literárias.

A versatilidade e a habilidade de quem, há muitos anos, deixou a aspereza do sertão baiano, para viver em Feira de Santana, em Salvador e no Rio de Janeiro, como que perfila, em sua experiência, comum a tantos brasileiros, as peripécias vitais da aventura humana, tão bem simbolizadas nos tropeços do famoso fidalgo Dom Quixote, surgido há quatrocentos anos, num longínquo 1605, saído da pena de Miguel de Cervantes.

Todos os que apelam para a literatura, e em particular para a poesia, como forma de expressão de sua perplexidade diante do estar-no-mundo, têm parentesco ou afinidade com a peregrinação cervantina e quixotesca, em maior ou menor grau. Todos carregam o fardo de sua tragicomédia diária, esculpida na areia movediça das palavras.

Miguel Sanches Neto escreve, na orelha do livro, que ''Pimentel solta as rédeas do verbo, reconstruindo uma cidade transitável''. E acrescenta: ''O poeta escreve, para usar uma de suas imagens, como a aranha tece sua teia - tirando o material de si mesma''.

O material a que ele se refere está em poemas como o ''Idas e vindas'', que pertence à primeira parte do volume, denominada ''Homens-bomba'', enquanto a segunda tem o mesmo título do livro, ''O calcanhar da memória'': ''Tudo está parado ali, / desde o dia em que cheguei. / (...) Desde o dia em que cheguei, / nada mudou. Nem mudará / quando eu me for.''

Pimentel não se debruça apenas sobre sua casa, sua cidade, sua travessia pessoal. O poema ''Homens-bomba'' é um chamado para a realidade do mundo exterior: ''As imagens da guerra / são definitivas: // não têm fantasia, / as mortes são vivas''.

A força dos acontecimentos que dilaceram o planeta não apaga, porém, aquele outro mundo particular, aquele rio de encontros e desencontros que é o ambiente familiar, onde se forjam os caracteres e as armaduras para enfrentar as muitas lutas e transpor os muitos obstáculos que atravancam o percurso existencial. Leiam-se, a propósito, estes versos do poema ''Correntes à mesa'': ''Toda família é um continente / e é uma ilha. Perde-se entre / horizontes e armadilhas. // (...) Toda família é uma correnteza.''

Os dois poemas de maior extensão são os últimos do livro e encerram a segunda e derradeira parte, que leva o nome da coletânea, ''O calcanhar da memória''. Eles, talvez mais do que qualquer outra composição presente no livro, guardam o travo de amargura que se gruda na pele das pessoas que têm alguma experiência de vida, como se fosse o tecido aderente de uma peça de roupa.

''Não cruzarás o rio'' começa com estes versos: ''Não tinha isto, não tinha aquilo, / não havia uma luz sequer no horizonte, / uma esperança, música suave ou grito de paixão / não havia. (...)''

Esse mesmo poema inclui versos de franca desilusão e aberto desespero, como estes: ''Os inimigos - vampiros traiçoeiros que os espelhos / não refletem - com suas lâminas, seus longos suspiros, / seus relatórios onde sempre constamos como aquele / que deixou de fazer, que não cumpriu o prometido, / que não apagou a luz nem o ônibus nem a prenda. / Somos aquele que perdeu o bonde e não terá outra chance, / que deve ser exemplado, massacrado, carimbado e exterminado / para a felicidade geral da nação, em nome do amém.''

Quem não passou a vida em ''branca nuvem'', na alienação impingida pelos canais de tevê, sabe muito bem do que o autor está falando, por si próprio e pelos que abrigam em si a mesma revolta.

O último poema, ''Neste vale de lágrimas'', é bem explícito em sua espécie de litania, que funciona como parábola de rezas e orações, arrancadas do fundo do coração, no calor e no negror de noites sem lua, em meio às multidões da cidade ou aos ermos do sertão.

Assim diz ele: ''Gemendo e chorando / vamos./ Acompanhando rastros, / marcando passos, / neste vale de lágrimas. // (...) Aqui jaz / a mocidade, / o eterno pranto, / o desencanto. // Criança / aqui jaz toda a esperança. // Não era possível que o mundo / fosse se acabar tão cedo.''

A última das onze divisões do poema ressuscita a esperança perdida, mais o gosto e o motivo de viver. Composta de seis dísticos, exorta o leitor ao otimismo, depois da viagem ao fundo do poço: ''Mas do vale renascemos, / a cada raiar do dia. // Tirar do corpo a energia, / retomar a caminhada. // Refazer toda a jornada, / recriar toda a alegria. // Seguir pela mesma estrada, / como se fosse outra trilha. // Ser o náufrago e a ilha, / o pão, a fome e a verdade. // Tirar do crime o castigo, / viver hoje a eternidade.''