Raul de Carvalho


Serenidade És Minha

Á memória de Fernando Pessoa Vem, serenidade! Vem cobrir a longa fadiga dos homens, este antigo desejo de nunca ser feliz a não ser pela dupla humanidade das bocas. Vem serenidade! Faz com que os beijos cheguem à altura dos ombros e com que os lábios cheguem à altura dos beijos. Carrega para a cama dos desempregados todas as coisas verdes, todas as coisas vis fechadas no cofre das águas: os corais, as anémonas, os montros sublunares, as algas, porque um fio de prata lhes enfeita os cabelos. Vem serenidade, com o país veloz e viginal das ondas, com o mart]irio leve dos amantes sem Deus, com o cheiro sensual das pernas no cinema, com o vinho e as uvas e o frémito das virgens, com o macio ventre das mulheres violadas, com os filhos que os pais amaldiçoam, com as lanternas postas à beira dos abismos, e os segredos e os ninhos e o feno e as procissões sem padre, sem anjos e, contudo, com Deus molhando os olhos e as esperanças dos pobres. Vem, serenidade, com a paz e a guerra derrubar as selvagens florestas do instinto. Vem, e levanta palácios na sombra. Tem a paciência de quem deixa entre os lábios um espaço absoluto. Vem, e desponta, oriunda dos mares, orquídea fresca das noites vagabundas, serena espécie de contentamento, suroresa, plenitude. Vem dos prédios sem almas e sem luzes, dos números irreais de todas as semanas, dos caixeiros sem cor e sem família, das flores que rebentam nas mãos dos namorados, dos bancos que os jardins afogam no silêncio, das jarras que os marujos trazem sempre da China, dos aventais vermelhos com que as mulheres esperam a chegada da força e da vertigem. Vem, serenidade, e põe no peito sujo dos ladrões a cruz dos crimes sem cadeia, põe na boca dos pobres o pão que eles precisam, põe nos olhos dos cegos a luz que lhes pertence. Vem nos bicos dos pés para junto dos berços, para junto das campas dos jovens que morreram, para junto das artérias que servem de campo para o trigo, de mar para os navios. Vem, serenidade! E do salgado bojo das tuas naus felizes despeja a confiança, a grande confiança. Grande como os teus braços, grande serenidade! E põe teus pés na terra, e deixa que outras vozes se comovam contigo no Outono, no Inverno, no Verão, na Primavera. Vem, serenidade, para que não se fale nem de paz nem de guerra nem de Deus, porque foi tudo junto e guardado e levado para a casa dos homens. Vem, serenidade, vem com a madrugada, vem com os anjos de oiro que fugiram da Lua, com as núvens que proíbem o céu, vem com o nevoeiro. Vem com as meretrizes que chamam da janela, volume dos corpos saciados na cama, as mil aparições do amor nas esquinas, as dívidas que os pais nos pagam em segredo, as costas que os marinheiros levantam quando arrastam o mar pelas ruas. Vem serenidade, e lembra-te de nós, que te esperamos há séculos sempre no mesmo sítio, um sítio aonde a morte tem todos os direitos. Lembra-te da miséria dourada dos meus versos, desta roupa de imagens que me cobre corpo silencioso, das noites que passei perseguindo uma estrela, do hálito, da fome, da doença, do crime, com que dou vida e morte a mim próprio e aos outros. Vem serenidade, e acaba com o vício de plantar roseiras no duro chão dos dias, vício de beber água com o copo do vinho milagroso do sangue. Vem, serenidade, não apagues ainda a lâmpada que forra os cantos do meu quarto, papel com que embrulho meus rios de aventura em que vai navegando o futuro. Vem, serenidade! E pousa, mais serena que as mãos de minha Mâe, mais húmida que a pele marítima da cais, mais branca que o soluço, o silêncio, a origem, mais livre que uma ave em seu voo, mais branda que a grávida brandura do papel em que escrevo, mais humana e alegre que o sorriso das noivas, do que a voz dos amigos, do que o sol nas searas. Vem serenidade, para perto de mim e para nunca. … … ... … ... … … … … … … … … … … … … … … … … … … … De manhã, quando as carroças de hortaliça chiam por dentro da lisa e sonolenta tarefa terminada, quando um ramo de flores matinais é uma ofensa ao nosso limitado horizonte, quando os astros entregam ao carteiro surpreendido mais um postal da esperança enigmática, quando os tacões furados pelos relógios podres, pelas tardes por trás das grades e dos muros, pelas convencionais visitas aos enfermos, formam, em densos ângulos de humano desespero, uma núvem que aumenta a vâ periferia que rodeia a cidade, é então que eu peço como quem pede amor: Vem serenidade! Com a medalha, os gestos e os teus olhos azuis, vem, serenidade! Com as horas maiúsculas do cio, com os músculos inchados da preguiça, vem, serenidade! Vem, com o perturbante mistério dos cabelos, o riso que não é da boca nem dos dentes mas que se espalha, inteiro, num corpo alucinado de bandeira. Vem serenidade, antes que os passos da noite vigilante arranquem as primeiras unhas da madrugada, antes que as ruas cheias de corações de gás se percam no fantástico cenário da cidade, antes que, nos pés dormentes dos pedintes, a cólera lhes acenda brasas nos cinco dedos, a revolta semeie florestas de gritos e a raiva vá partir as amarras diárias. Vem, serenidade, leva-me num vagon de mercadorias, num convés de algodão e borracha e madeira, na hélice emigrante, na tábua azul dos peixes, na carnívora concha do sono. Leva-me para longe deste bíblico espaço, desta confusão abúlica dos mitos, deste enorme pulmão de silêncio e vergonha. Longe das sentinelas de mármore que exigem passaporte a quem passa. A bordo, no porão, conversando com velhos tripulantes descalços, crianças criminosas fugidas à polícia, moços contrabandistas, negociantes mouros, emigrados políticos que vão em busca da perdida liberdade. Vem, serenidade e leva-me contigo. Com ciganos comendo amoras e limões, e música de harmónio, e ciúme, e vinganças, e subindo nos ares o livre e musical facho rubro que une os seios da terra ao Sol. Vem, serenidade! Os comboios nos esperam. Há famílias inteiras com o jantar na mesa, aguardando que batam, que empurrem, que irrompam pela porta levíssima, e que a porta se abra e por ela se entornem os frutos e a justiça. Serenidade, eu rezo: Acorda minha mãe quando ela dorme, quando ela tem no rosto a solidão completa de quem passou a noite perguntando por mim, de quem perdeu de vista o meu destino. Ajuda-me a cumprir a missão de poeta, a confundir, numa só e lúcida claridade, a palavra esquecida no coração do homem. Vem serenidade lve os vencidos, regulariza o trânsito cardíaco dos sonhos e dá-lhes nomes novos, novos ventos, novos portos, novos pulsos. E recorda comigo o barulho das ondas, as mentiras da fé, os amigos medrosos, os assombros da Índia imaginada, o espanto aprendiz da nossa fala, ainda nossa, ainda bela, ainda livre destes montes altíssimos que tapam as veias ao Oceano. Vem, serenidade, e faz que não fiquemos doentes, só de ver que a beleza não nasce dia a dia na terra. E reúne os pedaços dos espelhos partidos, e não cedas demais ao vislumbre de vermos a nossa idade exacta outra vez paralela ao percurso dos pássaros. E dá asas ao peso da melancolia, e põe ordem no caoss e carne nos espectros, e ensina aos suicidas a volúpia do baile, e enfeitiça os dois corpos quando eles se apertarem, e não apagues nunca o fogo que os consome, o impulso que os coloca, nus e iluminados, no topo das montanhas, no extremo dos mastros, na chaminé do sangue. Serenidade, assiste à multiplicação original do Mundo: Um manto terníssimo de espuma, um ninho de corais, de limos, de cabelos, um universo de algas despidas e retrácteis, um polvo de ternura deliciosa e fresca. Vem, e compartilha das mais simples paixões, do jogo que jogamos sem parceiro, dos humilhantes nós que a garganta irradia, da suspeita violenta, do inesperado abrigo. Vem, com teu frio de esquecimento, com a tua alucinante e alucinada mão, e põe, no religioso ofício do poema, a alegria, a fé, os milagres, a luz! Vem, e defende-me da traição dos encontros, do engano na presença de Aquele cuja palavra é silêncio, cujo corpo é de ar, cujo amor é demais absoluto e eterno para ser meu, que o amo. Para sempre irreal, para sempre obscena, para sempre inocente Serenidade, és minha. (in Antologia de Poetas Alentejanos)


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