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			Ronald Augusto 
   
            O alvo incerto da pedra
 
            
 
            
 
            Pedra Habitada é menos um livro de 
			poemas do que um lance radical e criativo focado na investigação 
			sobre os limites do que pode ser dito por meio de uma música 
			sem-versista. Isto é, não se trata de “mais um” livro de poemas – 
			como poderiam supor aqueles super-escritores que jamais dão por 
			finalizado o seu livro-para-acabar-com-todos-os-outros-livros, 
			porque consomem seus tenros estofos de gênios tentando não sucumbir 
			a uma intrínseca mediocridade que os constitui -, é, pois, um 
			livro-projeto; livro que se situa. Com efeito, Cândido Rolim não só 
			se mantém a par dos debates que problematizam a poesia 
			contemporânea, como também interfere nesse colóquio fazendo aflorar 
			as armas de sua “crítica parcial” (Baudelaire), quer seja via um 
			exercício de análise que é instrumentalizado na forma de resenhas, 
			artigos e ensaios, quer seja via uma difusa metalinguagem com que 
			produz e enerva a sua e a poesia dos seus contemporâneos. 
            Décio Pignatari argumenta que a música 
			sem-versista nasce com a poesia concreta. O metrônomo do passado e, 
			depois, o versolibrismo das primeiras décadas do século 20, 
			canonizado precocemente, já não mais respondiam às necessidades de 
			expressão do movimento. Pedra Habitada não marca passo em nenhuma 
			espécie de anacronismo, o que seria o caso se repisasse tardiamente 
			a idéia de que o ciclo histórico do verso está encerrado. Por outro 
			lado, não se pode afirmar que seus poemas são estruturados ao redor 
			desse verso livre modernista que a maioria pratica ainda 
			imperitamente, sem fazer vacilar suas contradições e possibilidades 
			constitutivas. Dir-se-ia que a liberdade da linguagem de Cândido 
			Rolim é potencializada nesta série de poemas sintáticos em que a 
			metáfora é sem fios (isto é, dispensa, por exemplo, a conjunção 
			como, e o é copulativo) e o fragmento transforma o sentido numa 
			sorte de saber derrisório, fronteiriço à aporia. A poesia que se lê 
			entre as capas de Pedra Habitada põe a descoberto um ritmo 
			indeterminado cujas modulações são dadas pelos cortes e pela sintaxe 
			elusiva, pontuada por indecidíveis jogos semânticos. Cada poema, 
			então, pode ser descrito como uma frase fraturada, meditada 
			inclusive de um ponto de vista espacial ou, ainda, como um enunciado 
			que se expande e ao mesmo tempo estanca, oscila, aqui e ali, de 
			maneira a mimetizar o périplo mesmo da leitura: interpretação cega, 
			tateante, engendrada pelo pente-fino insidioso da (pós) modernidade 
			e seu gesto de renúncia à eloqüência do “cálculo total” e que, em 
			contrapartida, esbarra, irônica, na quase intransitividade do 
			inacabado, do resíduo. 
            No entanto, em olho aquém 2 , 
			paradoxalmente – mais do que em poemas como beijo, atavio e mesmo em 
			flauna, peça num estilo-cummings -, é que identifico tal música 
			sem-versista. Poema como alvo incerto, zona de deslizes operosos, 
			plaquetas tectônicas em sigilosa ruptura. Impossível ao leitor 
			apossar-se de “uma” interpretação forte, última. Ou, por outras, 
			esta metáfora de Wittgenstein: “(...) não existe uma ´última` 
			explicação. É o mesmo que dizer: nesta rua não existe uma última 
			casa; pode-se sempre construir uma nova.”  
            A opção por essa dicção, a um tempo 
			lacunar e pregueada de metáforas-flash, convida-nos a uma 
			repaginação do conhecido (o entorno); percebemos a pesagem 
			meticulosa de palavras e sintagmas, as imagens tributárias de um 
			reino surdo: poesia antes da memória. Os poemas de Pedra Habitada 
			estão mais voltados para a representação da poesia como “mundo da 
			linguagem”. Neste sentido – e tão impertinente quanto necessária 
			talvez seja a seguinte aproximação -, Cândido Rolim parece a 
			princípio dialogar com uma figura mallarmeana, segundo a qual o 
			enunciante do poema é a linguagem ela mesma e não o poeta. Mas, é 
			forçoso cavoucar outras camadas de interpretação com vistas a tornar 
			a fruição estética mais plena. Assim, será razoável também minimizar 
			a pureza mallarmaica na entretela da poesia que nos ocupa, 
			entendê-la como um simples traço indicial, nem maior ou menor que 
			outros, e que, a rigor, não dá conta do essencial, como da mesma 
			forma não atrapalha; enfim, resulta rastro, marca de pegada em areia 
			luminosa. Adiante, quedará apagada por vento e onda. O que na 
			verdade importa destacar é a outra pureza entranhada ao livro de 
			Cândido Rolim. Vejamos, o autor de Un Coup de Dés, reza a anedota, 
			dizia fumar apenas para lançar um pouco de fumaça entre ele e o 
			mundo; aquele “sentido mais puro às palavras da tribo” do poeta 
			francês se resolve como progressiva elusão da “linguagem do mundo”. 
			Já a pureza perseguida, inventada, por Cândido Rolim tem outra 
			densidade. Num desenho provisório: é algo como a pureza natural da 
			linguagem. Utilizo o qualificativo “natural”, apelando ao mesmo 
			matiz de sentido que talvez tenha inspirado Carlos Drummond de 
			Andrade, quando este intitulou um livro seu – que tematiza as muitas 
			formas do enlace sexual – como O Amor Natural. Amor dos cinco 
			sentidos. 
            Em Pedra Habitada, a pureza da 
			linguagem é mais corpórea, física, que mental. O presente da carne, 
			do barro – a este respeito, notar a insistência com que o 
			substantivo-sema lábio e suas variantes, como metonímia do corpo, 
			comparece ao longo do livro-projeto. O agora da pedra: lisa, porosa, 
			desejável. Pedra e carne filosofais. Peregrinatio pela nomeação, 
			nascente primária da linguagem. Outra metáfora: poesia 
			pré-platônica, isto é, liberta do compromisso com a verdade, exigido 
			pela república do poder e, portanto, dispensada igualmente de 
			condenar e absolver. 
            Pedra Habitada: livro-projeto. Na 
			condição de antípoda: a brochura de poemas (poesias), coletânea, 
			seleta, etc., sem esquecer as insípidas resenhas da rasura e do 
			elogio fáceis que apenas ratificam a invisibilidade condizente com 
			essas miscelâneas de versos. E a contrapelo, este poema-livro 
			agnóstico, clivado de indagações, iluminações de esboços. Cândido 
			Rolim, como ele mesmo já disse, propõe uma escritura contra a 
			suficiência. Talvez fosse melhor dizer, levando isso em 
			consideração, que Pedra Habitada é um livro-projetado-para; sua proa 
			está voltada para “essa coisa nenhuma de inexaurível segredo” 
			(Ungaretti), ou:
 (...) um reino de coisas
 
 interditas
 
 (“começo do silêncio”)
 
 
            Cândido Rolim, por meio do ensolarado 
			entressorrir de sua linguagem poética, que não capitula ao “nobre 
			rumor”, trespassa, inquiridor, o miolo do velho mito da “nomeação 
			edênica”: cada poema está condenado a recomeçar a aventura da 
			invenção da linguagem?; neste caso, a invenção da linguagem, a 
			coincidência entre nome e coisa supõe a representação do (meu) 
			mundo?; cada poema é o primeiro (ser de linguagem, original), no 
			sentido em que ele seria irredutível ao que quer que seja? O 
			leitor-hermes pervagará à toa e tonalmente em torno a estas e outras 
			questões. 
            Finalmente, em Pedra Habitada não se 
			verá nem a terra pitoresca, nem a terra devastada dos modernistas 
			históricos. Aqui, o mundo (mais a sua linguagem), o pano de fundo 
			provável, assemelha-se a uma ideografia. Idéia coreografada que 
			consagra a tonalidade filosófico-minimal, algo heraclítica. O 
			oráculo da pedra. A boca, os dentes, metáforas-resumo de um 
			entrecortado córrego corrente: a poesia, de passagem.
 
 
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