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			Rodrigo de Souza Leão 
   
			Gilberto Mendonça Teles 
			  
			  
			Há pouco do que falar sobre esta entrevista com Gilberto Mendonça 
			Telles. Sempre digo que quem faz a entrevista é o entrevistado. O 
			entrevistador pode ter um repertório de perguntas incomum, estupendo 
			ou inaudito, mas, se o entrevistado não quiser, não há como faze-lo 
			escrever ou falar. É muito mais fácil ter uma boa entrevista com um 
			entrevistador medíocre do que com um entrevistado medíocre. Ambos 
			medíocres é o fim da picada. 
			Gilberto é grande figura da poesia brasileira. Figurinha carimbada. 
			De certo que é um dos grandes escritores goianos de todos os tempos. 
			Dono de uma capacidade de fazer sonetos estupenda e também militante 
			da poesia visual. 
			Esta entrevista foi publicada no Rascunho também - jornal do Paraná 
			que divulga literatura.
 
 rsl - Como foi o primeiro contato com a literatura? Quais sensações 
			tinha ou tem ao lembrar da infância. Há algo especial, como quando 
			Marcel comia biscoitos, no Em Busca do Tempo Perdido, de Proust? 
			Escrever é lidar com o lúdico?
 
 — O primeiro contato foi na escola primária, numa cidadezinha do 
			interior goiano. A partir do terceiro ano, comecei a me interessar 
			pelo livro de leitura, com muitos poemas infantis do famoso Poesias 
			Infantis, de Olavo Bilac. Vejo hoje, recolhendo emoções na 
			tranqüilidade, alguns elementos que devem ter concorrido para o meu 
			gosto pela Poesia. Coisas que eu percebia, como o anoitecer; ou que 
			eu era levado a sentir (pela guerra, pela propaganda do Estado Novo 
			ou por um sentimento inato de nacionalismo), como uma vaga idéia de 
			pátria; coisas que imaginava, como o bonde, ou que eu conhecia de 
			perto, como o rio, tudo isso vinha nos poemas que éramos obrigados a 
			ler na escola. E essa “obrigação” é importantíssima na formação do 
			gosto literário.
 Vejo-me com nove anos, diante da professorinha que me mandava ler em 
			voz alta o poema “A Pátria”, de Bilac. Ouço-a me corrigindo a 
			pronúncia e ainda sinto a vergonha das suas correções diante da 
			turma, sobretudo diante de uma certa menina que me olhava de vez em 
			quando. Mas o que mais me agradava era algo mágico, indefinível, que 
			eu ia percebendo na música das palavras, possivelmente no ritmo que 
			ia descobrindo na leitura em voz alta de versos como “Ama com fé e 
			orgulho a terra em que nasceste!” ou “Esbraseia o Ocidente na agonia 
			/ O sol...”.
 No alexandrino de Bilac, o encantamento tinha algo a ver com o 
			conteúdo do verso: o orgulho de haver nascido em Goiás de Pedro 
			Ludovico e no Brasil de Getúlio Vargas, tanto que, quando este 
			morreu, eu escrevi-lhe um soneto encomiástico, que aparece agora na 
			quarta edição de Hora Aberta (poemas reunidos). No decassílabo de 
			Raimundo Corrêa havia outra espécie de encantamento, melhor, de 
			enigma e de curiosidade. A ordem inversa e o enjambement me faziam 
			olhar várias vezes para o texto, tentando compreender porque o sol 
			vinha lá no fim, como se estivesse mesmo se pondo entre as nuvens 
			vermelhas dos céus de Goiás. E isso me agradava. Eu sabia o que era 
			brasa por causa das fogueiras de São João, mas não sabia bem o que 
			era Ocidente e aquele “na agonia o sol” me estimulava a imaginação. 
			Hoje vejo que a sucessão de vogais tônicas (eia, ente, ia e ol) deve 
			ter atuado como uma melopéia nos meus ouvidos e no meu espírito que 
			se ia abrindo para a linguagem e para a poesia.
 Aos quatorze anos aprendi a metrificar, lendo Gonçalves Dias, 
			Álvares de Azevedo e Olavo Bilac. Começava a compreender o segredo 
			do ritmo na poesia. Era tão difícil no início que eu às vezes 
			passava uma semana para endireitar os versos de um poema. E devo ter 
			comido também os meus biscoitos, madeleines, roscas e pamonhas, pois 
			as imagens da infância me vêm nítidas, espontâneas sem precisar que 
			eu lute com le temps perdus. A única luta (ou lide) que se conta — e 
			que é também proustiana — é com o lúdico: apreendendo a brincar, a 
			jogar com as palavras, o homem aprende também a jogar com o mundo. E 
			é sem dúvida desse jogo que provém a poesia. A melhor poesia, pois 
			escrever é mesmo (como você pergunta afirmando) lidar com o lúdico, 
			com a alegria, com a vida. Todo poeta é também um opó-rapá-cupu-lopó 
			alguém que saiba brincar com a linguagem para descobrir / revelar o 
			outro lado das coisas.
 
 
 rsl - Dizem que livros são como filhos, gosta-se igualmente de 
			todos. Há algum (livro de sua autoria) predileto?
 
 — Pode ser, mas não deixa de haver preferência por um (filho), 
			incompatibilidade com outro e até compaixão por um terceiro. Se a 
			palavra gostar pode sintetizar essas diversidades, muito bem. Com os 
			livros se passa de maneira análoga, mas com uma diferença 
			fundamental: à medida que vão sendo publicados vai-se formando na 
			cabeça do autor uma [auto]consciência crítica sobre o valor deles, a 
			não ser que se trate de um escritor cabotino, para o qual tudo é 
			obra-prima... Nas duas linhas de minha produção — de poesia e de 
			crítica — há alguns livros por que tenho maior simpatia. Talvez 
			porque sofri mais a sua escritura ou ela se deu numa época mais 
			difícil, tanto para o homem como para o escritor. Ou quem sabe a 
			consciência crítica se dá melhor com a sua “estrutura”, com os seus 
			temas, com o seu título, etc. É neste sentido que, como poeta, gosto 
			de livros como Planície (1958), Pássaro de Pedra (1962), Sintaxe 
			Invisível (1967), A Raiz da Fala (1972), Arte de Armar (1977), 
			Plural de Nuvens (1984) e o recente Álibis (2000). Creio que eles 
			são pontos sustenidos na minha série de poesia, o que não impede de 
			achar que Plural de Nuvens seja talvez o meu predileto. Quanto à 
			linha de crítica, há livros como A Poesia em Goiás, de 1964, que 
			representa o meu primeiro grande esforço de pesquisa e de pensamento 
			crítico; o Drummond — A Estilística da Repetição (1970), análise 
			aprofundada de um recurso estilístico [4ª edição]; Vanguarda 
			Européia e Modernismo Brasileiro [17ª edição], o que mais me rende 
			em direitos autorais; Camões e a Poesia Brasileira [1973], cuja 4ª 
			edição acaba de sair em Portugal; e, ainda, Retórica do Silêncio 
			(1979) e A Escrituração da Escrita (1996). São livros de que gosto, 
			onde exprimi meu conhecimento de cultura literária. Acho que o 
			predileto pode ser A Escrituração da Escrita, no qual me sinto 
			maduro e à vontade, a ponto de contornar os cacoetes da linguagem 
			universitária.
 
 
 rsl - Para o texto ser revolucionário, deve haver conteúdo e forma 
			revolucionários, ou com apenas um dos ingredientes, a revolução pode 
			ser feita? Existe novidade hoje em dia?
 
 — Um dia me dei conta (na Retórica do Silêncio) de que há duas 
			espécies básicas de vanguarda: uma, que se diz e se quer 
			revolucionária, que faz manifestos e que vem por fora da literatura 
			estabelecida e que eu chamei de provocante, pregando a destruição e 
			anunciando uma literatura nova, que não se sabe bem como é; e outra, 
			natural e por dentro da linguagem literária. A primeira se refere a 
			movimentos como o futurismo, o dadaísmo, o surrealismo e o 
			concretismo brasileiro; e a segunda se aplica a todos os poetas como 
			Bandeira, Oswaldo, Drummond e Cabral, os quais foram vanguardistas 
			no sentido de que tiveram ousadia, originalidade e virtuosidade na 
			produção de seus poemas, na criação de sua poesia, isto é, 
			conheceram a fundo a sua arte/ciência de fazer versos.
 Depois desta “introdução”, pego a sua pergunta e junto “conteúdo e 
			forma” num só termo — forma —, sem pensar em separá-los. Quando 
			Maiacoviski disse que “sem forma revolucionária não há arte 
			revolucionária”, ele não está separando forma de conteúdo, pois ele 
			sabia (ou intuía) que na linguagem tudo é forma. Há, portanto, uma 
			forma do conteúdo e uma forma da forma: esta se manifesta, aquela 
			fica latente, mas de tal maneira que uma alteração numa repercute na 
			outra. Por exemplo: é muito difícil que num soneto, poema fechado 
			nos seus catorzes versos, se possa exprimir o sentido revolucionário 
			das duas formas de vanguarda. A forma da forma não encontra 
			liberdade para expressar a forma do conteúdo novo, literário, social 
			ou político. Não sei se ficou claro, mas é assim que penso.
 No meu livro A Escrituração da Escrita (Vozes, 1996), no capítulo “O 
			Processo da Moderna Poesia Brasileira”, faço uma síntese dos 
			procedimentos da “Nova Vanguarda Européia”, citando, dentre outros, 
			os seguintes movimentos: o poema visual, o sonoro ou fonético, o 
			multidimensional, o semântico, enfim, uma série de recursos de que 
			se valem para vender um produto poético (ou não) como novo. Todo 
			tipo de apelação possível e impossível. Aparentemente, novidades.
 
 
 rsl - Você tem a versatilidade dos tempos pós-modernos. Escreve 
			poemas concretos, metrificados, sonetos, verso livre? O poeta é um 
			camaleão?
 
 — Acho que a sua pergunta atinge aqui a força de uma bela definição 
			teórica: ser pós-moderno é misturar tudo, mas sem eliminar a 
			autonomia de cada forma poética. É o camaleão brincando de poeta e 
			lambendo as astúcias miméticas de Aristóteles. Ou do Teles, que 
			mantém a tradição do aristos [aristoz], isto é, de querer o melhor, 
			o excelente. Se essa mistura é mesmo pós-moderna, estou feliz. No 
			Brasil o “pós-moderno” foi uma onda que passou pela universidade, 
			arrastando todos os que só vivem do novo: ser inteligente é citar o 
			último tango de Paris... Aliás, estou falando de barriga cheia, pois 
			um professor da UFRJ, num livro sobre épica, estudou a minha 
			Saciologia Goiana como épica pós-moderna. Nunca tinha pensado nisto. 
			Mas concordei com ele: o meu livro era mesmo uma mistura de todas as 
			formas e movimentos literários.
 Penso, entretanto, que não escrevo poema concreto coisa alguma: 
			escrevo poema visual, que é outra coisa. Tanto que os concretos se 
			valeram dos poemas visuais, que são tão antigos como a escrita. 
			Veja-se o livro de José Fernandes, O Poema Visual, publicado pela 
			Vozes, creio que em 1996. A minha “versatilidade” (pena que não é 
			versutilidade) me faz ser ou pretender ser um “camaleão”: daí a 
			minha língua comprida, língua de sogra / língua de sabre / língua de 
			sobra / língua demais [...] a língua oca / que pende langue / do céu 
			da boca.
 
 
 rsl - Você é angustiado por alguma influência?
 
 — Li o livro de Harold Bloom (The Anxiety of Influence / A Theory of 
			Poetry), quando trabalhei como professor na Universidade de Chicago, 
			no fim da década de 1980, depois de haver escrito A Retórica do 
			Silêncio, que é de 1979 (Cultrix) e possui um subcapítulo denominado 
			“A Influência”. É claro que já sabia do nome do autor mas ainda não 
			o havia lido, embora o seu livro tenha saído em 1973. Como a sua 
			pergunta intertextualiza o título do crítico norte-americano, vi-me 
			na obrigação de citar a sua obra, antes de tocar no problema da 
			“influência”. Levantei a história desse termo e terminei o meu 
			estudo dizendo que, hoje, em face de uma obra com que o espírito do 
			escritor encontra identificação estética, “o novo escritor, em vez 
			de imitar, como nos tempos clássicos, procura conscientemente 
			atualizar os elementos que lhe parecem importantes na estruturação 
			de sua obra. Mas não resta dúvida de que à margem de sua consciência 
			fluem imagens, construções estilísticas e até traços do assunto de 
			obras literárias que o tenham impressionado. Mas sempre de maneira 
			parcial, nunca total. Senão seria o plágio”.
 Agora, pessoalmente posso dizer que tenho algumas influências 
			palpáveis na minha poesia, possivelmente nesta ordem: Bilac, Cruz e 
			Sousa, Raul de Leôni, Paulo Bonfim, Bandeira, Mário de Andrade, 
			Drummond, João Cabral e Lêdo Ivo. Na poesia brasileira, são os 
			autores que mais leio. De fora, devo consciente a Lorca, Jorge 
			Guillén, Vicente Aleixandre, Reverdy, Aragon e mais proximamente 
			Raymond Queneau. Nunca o havia lido, mas um crítico brasileiro, 
			também romancista e tradutor, me disse: Puxa! Como a sua poesia se 
			parece com a de Queneau. Achei graça, mas na primeira viagem a Paris 
			saí procurando obras de Queneau. Hoje penso que ele devia ler bem 
			português e acabou me descobrindo...
 
 
 rsl - Harold Bloon aponta Shakespeare como o inventor da 
			modernidade. Concorda?
 
 — No Jornal do Brasil (Idéias), de 2 de setembro do ano passado, 
			falo do Shakespeare: a invenção do humano, de Harold Bloon, como o 
			livro mais importante que eu estava lendo. A tese central do crítico 
			norte-americano é a de que Shakespeare “nos explica” porque “nos 
			inventou”. Ele é o “inventor do humano” e não, como você está 
			dizendo, “da modernidade”. A não ser que o “humano” tenha aí algo de 
			“humanismo” e, portanto, de modernidade avant la lettre. Para Bloon, 
			a arte de Shakespeare é tão infinita que nos contém e há de 
			continuar abraçando os que vierem depois de nós. “As [suas] peças 
			nos lêem de maneira definitiva”. E não é à toa, portanto, que 
			“Depois de Jesus, Hamlet é a figura mais citada no Ocidente”.
 
 
 rsl - Walter Benjamin erra quando hierarquiza a arte dizendo que o 
			cinema é a maior delas?
 
 — Acho que sim, que erra. A começar com a comparação entre as artes. 
			Cada uma tem sua matéria própria, sua forma específica e seu 
			universo especial. Destacar uma em detrimento da outra não me parece 
			metodologicamente correto. No seu conhecido artigo “A obra de arte 
			na era de sua reprodutibilidade técnica” [estou citado pela tradução 
			francesa da Denoël, de 1971], Benjamin diz que pela primeira vez — e 
			isto no cinema — “o homem deve agir, com toda a sua personalidade 
			viva e segura, e entretanto privada da aura. Porque sua aura depende 
			do seu aqui e agora. Ela não sofre nenhuma reprodução”. Compara 
			depois o cinema ao esporte e diz que nos dois casos os espectadores 
			são semiconhecedores e chega à conclusão, aliás verdadeira, de que o 
			desenrolar de um filme “fornece um espetáculo que não se teria 
			jamais podido imaginar no pasado”. Enfim, coloca o cinema como uma 
			super-arte, em vez de vê-la como uma reunião de artes, cada uma com 
			a sua característica, mas concorrendo todas para um sentido coletivo 
			que tem no movimento o seu ponto culminante.
 
 
 rsl - Com quantas metáforas se faz um poema?
 
 — Eu poderia começar citando uma estrofe do meu poema “Na língua do 
			povo” (de Álibis), onde digo que Que tudo começa em mim. Até o caos
 de outro universo com estrofe e rima.
 E eu quero te mostrar com quantos paus
 se faz um bote com mulher por cima.
 Um poema pode se fazer sem nenhuma metáfora e sem nenhuma figura: 
			pode ser apenas o registro lingüístico de um momento, de um fato, 
			como em alguns poemas de Bandeira. Houve até quem falasse em 
			antimetáfora nesses casos. O problema maior é achar que metáfora é 
			qualquer figura ou a figura dominante. Os dois lados do signo, 
			significante e significado, criam dois planos no discurso: o da 
			“expressão” e o do conteúdo” e cada um deles gera uma cadeia de 
			imagens que vão num crescente, por um lado, do nível do fonema ao da 
			sílaba, ao da palavra, ao da frase, ao da oração e finalmente ao do 
			discurso em si; e, por outro lado, do nível do sema ao da raiz, ao 
			do semema e às signmificações da palavra, da frase e do discurso. 
			Daí as famílias de figuras — os metaplasmos, as metataxes; os 
			metassememas e os metalogismos. Isto pode ser visto claramente na 
			p.24 do meu livro A Escrituração Escrita, citado acima. Ao pé da 
			letra, não se pode dizer que o poema é como uma metáfora, pois esta 
			figura se dá no nível da palavra, no seu plano de conteúdo, no dos 
			metassememas. Não metáfora de frases: a figura aí ganha outro nove, 
			alegoria, por exemplo. Todo professor analfabeto em poesia diz que o 
			poema é uma “vasta metáfora”. Burrice. Mas a sua pergunta é quanto 
			ao número de metáforas num poema. Quanto mais melhor, mas o acúmulo 
			delas pode levar ao hermetismo, à obscuridade, uma vez que o ritmo 
			do poema perde o seu fundo de realidade convencional (o cotidiano) 
			para apontar com mais insistência no sentido da abstração. O certo é 
			o equilíbrio, a dosagem certa que só o tempo e muito exercício de 
			escrita nos acaba ensinando.
 
 
 rsl - Quem é o escritor brasileiro?
 
 — É como qualquer escritor em qualquer país do mundo. É muito raro 
			que ele seja somente escritor. É sempre uma mistura de médico e 
			poeta, advogado e romancista, professor e crítico. Enfim, um sujeito 
			que estuda pouco a sua arte, pois tem de estudar a sua profissão 
			para sobreviver. Isto é o comum. Mas é também um sujeito, no Brasil 
			e no exterior, que tem de lutar para aprender a escrever, para 
			escrever, para publicar, para distribuir o seu livro, para obter 
			reconhecimento e para receber o pouco que lhe toca de direito 
			autoral. Mas ele possui ainda a “aura”, a sua arte de poesia ou 
			prosa não a perdeu não. E é ela que lhe dá uma espécie de salário 
			indireto, de estima e de admiração que acaba lhe rendendo alguns 
			trocados.
 
 
 rsl - Qual uso faz da internet?
 
 — Muito pouco. Gosto imenso do computador: ele adiantou minha vida 
			útil em mais de dez anos. Gosto também do e-mail, mas não gosto da 
			maioria das coisas que me mandam. Acho que quando passar esta fase 
			de “instalação”, quando ele se tornar normal e perder um pouco do 
			seu ar de burguês, o seu uso se disciplinará automaticamente e se 
			tornará o que já é: um notável meio de comunicação. Não tenho muito 
			tempo e paciência com a internet. Mas visito de vez em quando algum 
			site.
 
 
 rsl - Como é o seu trabalho acadêmico?
 
 — Sou professor universitário desde 1958. Há trinta anos trabalho na 
			PUC-Rio. Sou professor titular e leciono literatura brasileira e 
			teoria literária. Já lecionei no Uruguai, em Portugal, na França 
			(duas universidades), nos Estados Unidos (Chicago) e na Espanha (Salamanca). 
			Pelo meu Curriculum Vitae, que vai anexo a seu pedido, pode-se 
			documentar outras coisas, como antologias de poemas meus no 
			estrangeiro. Gosto de dar aula, mas me irrita o aluno que não sabe e 
			dá a entender que sabe, sobretudo nos cursos de pós-graduação. Nunca 
			deixo de preparar as minhas aulas. Como escrevo muito (estou falando 
			de crítica literária), meus cursos têm sido leitura e debates de 
			artigos meus. Claro, e leitura de textos literários, nunca meus. Sou 
			pontual e exijo a pontualidade.
 
 
 rsl - O livro acaba? O desmatamento também?
 
 — Em A Escrituração da Escrita trato do mito da morte da poesia, do 
			romance, do livro. É um mito antigo. Quando Jesus nasceu se ouviu 
			numa das margens do Mediterrâneo a voz que dizia que o Grande Pã 
			morreu, como se toda a cultura antiga fosse desaparecer. Mas o 
			interessante é que algo realmente mudou, mas não morreu. Tudo 
			continua vivo. Logo que passar a moda do computador, da internet, 
			etc. vai-se ver que o livro continuará vivo, ocupando o seu espaço. 
			Se o governo ajudar, o desmatamento vai acabar mesmo. Por que você 
			não passa para o seu site o meu poema “O Matro Grosso Goiano”, de 
			Saciologia Goiana, um poema visual que mostra o desmastamento e o 
			critica. Se não puder encontrá-lo, me diga, por favor.
 
 
 rsl - Qual epígrafe personifica você e sua obra?
 
 — Vou juntar duas numa só, para responder. A primeira, uma epígrafe 
			que tirei de Raymond Queneau, do livro L’Instant Fatal. Aí se diz, 
			num poema, que “ça a toujours kékchose déxtreme / un poème”. A 
			segunda, tirei do livro Lettres en Folie, de A. Duchesne e Th. 
			Leguay. E diz simplesmente isso: “En nous incitant à jouer avec eux 
			les mots nous invite à juer avec le monde”. A primeira é a prática 
			da segunda e ambas nos põem no sentido do ludismo: brincar ou jogar 
			com as palavras, com a linguagem. A primeira abre o livro L’Animal, 
			publicado em Paris, numa edição bilíngüe, em 1990; a segunda abre o 
			Álibis, do ano passado. Elas personificam a minha concepção de 
			poesia, percebida por alguns críticos, como Paulo Rónai e como 
			Péricles Eugênio da Silva Ramos que escreveu o seguinte na Revista 
			de Poesia e Crítica, de 1985:
 Duas coisas chamam a atenção, liminarmente, neste Plural de Nuvens 
			de Gilberto Mendonça Teles: em primeiro lugar, mostra-se com toda a 
			clareza o virtuose do verso [...]. E tudo isso casado com estilo por 
			vezes sério, mas freqüentemente lúdico ou zombeteiro: Tudo o que 
			escrevo / tem algo de travesso — assevera Mendonça Teles. [...] A 
			faceta bem humorada do poeta e o modo como a lapida situam-no em 
			posto perfeitamente dele, pessoal, inconfundível, apesar das raízes 
			longínquas que possa ter de escassos mestres. Na verdade, ninguém 
			desenvolveu, como ele, em nossa poesia moderna, essa feição alegre, 
			foliona, mas completamente destituída de ferrão, satírico ou mordaz, 
			de qualquer ofensa ou maldade. O poeta brinca, como escrevia Mário 
			de Andrade transcrevendo Pallazeschi: Lasciatemi divertire! E, 
			brincando ou divertindo-se, realiza-se numa poesia de presença 
			marcante. Plural de Nuvens não é livro que possa passar sem que se 
			assinale seu lugar de realce em nossa poesia: chega a redmi-la de 
			torrenciais mesmices e da obnubilação dos que pensam que cantam, mas 
			na verdade coaxam.
 Aliás, o humor constitui o tema da dissertação de mestrado de 
			Marília Núbile, A Carnavalização na Poesia (Estudo da poesia de 
			Gilberto Mendonça Teles), defendida na Universidade Federal de Goiás 
			e publicada pela Universo em 1998.
 
 
 rsl - O papel do escritor na sociedade é ser, como diria Erza Pound, 
			antena da raça?
 
 — É coisa demais, Seomario; prefiro brincar por agora e responder 
			com um poema que está em Plural de Nuvens. Mas diria antes que o 
			papel do escritor, a sua função social, é escrever e, assim, 
			descrever com a sua observação e com a sua imaginação tudo o que lhe 
			parece “escrevível”, revelar o irrevelado, mostrar o invisível do 
			visível. Captar, com a antena da raça ou da roça, a sua maneira 
			especial de ver a vida e o mundo. Mas veja o meu poema brincalhão:
 
 
 TEATRO DE ARENA
 
 Estou desempenhando o meu papel-
 carbono: aqui está o seu nome
 como uma tatuagem no meu peito.
 Aqui, o acetinado para as suas mãos
 e o aéreo para uma viagem clandestina.
 Já fui como um papel almaço
 muito bem pautado e com margens
 para as emendas e correções.
 Amanhã serei algum papel de embrulho
 se não for um desses papéis de oficio
 com timbre e protocolo para comunicar
 oficialmente a seu marido
 que entrei em gozo de férias
 ou de licença-prêmio com você.
 Hoje eu sei me transformar
 nos papéis mais difíceis:
 ser bufão como um papel bouffant,
 faminto como um papel de arroz,
 discreto como um papel de alcova,
 fino como um papel de linha,
 sensual como um papel de rolo
 para as nossas abluções.
 Mas também um autêntico linha-d’água
 só para ver você na contraluz.
 Já representei papéis estrangeiros:
 China, Índia, Holanda, Japão.
 Você pode fazer de mim o seu correio,
 o seu papel-moeda ou papelão.
 Quando você me receber, não me olhe de soslaio,
 apesar de ser muito bonita esta palavra.
 Me olhe de banda, que é a coisa mais linda,
 e me guarde no bolso da calça, bem em cima
 daquele sinal na coxa esquerda.
 Depois, antes que alguma coisa aconteça,
 me tire da cabeça.
 Um dia,
 quando a roupa voltar da tinturaria
 e este poema perder seu significado,
 você me encontrará todo enrugado:
 —Que papel será este? E por capricho
 me deitará no lixo.
 
 
			  
			 
			Leia Gilberto 
			Mendonça Teles 
			  
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