Pedro Paulo de Sena Madureira
Clarice Lispector
					1
					Sou a barata velha que se arrasta pelo chão 
					na penumbra de uma casa abandonada.  
					Sou a aranha gélida aflita 
					gema negra imóvel na teia trêmula 
					Devastada pelo inverno.
					Sou o morcego seco exangue
					pendurado no sótão do esquecimento 
					— inferno.
					Sou o rato correndo pelas paredes 
					roendo sua própria sombra.
					Sou o caranguejo desde sempre igual a si mesmo 
					tímido e horrível
					envergonhado de sua fome e esquiva crueldade.  
					Sou o escorpião entre pedras frias 
					único assassino do escorpião.
					2
					Sou o bicho qualquer bicho 
					que de repente ergueu o dorso 
					levantou os braços
					espalmou as mãos 
					descobriu o rosto 
					desvendou a lágrima 
					aflorou o riso 
					mordeu o pão 
					saciou o desejo 
					afagou o ódio 
					devastou o corpo 
					bicho bicho de si 
					que nunca adiou 
					a morte do bicho 
					— escravo da treva 
					verdugo do amor.
					3
					Sou o deus
					sou o anjo
					sou a sombra do deus
					a ferida no vôo do anjo
					o homem
					4
					Sou
					a gota de cristal 
					triturada na boca do tempo 
					intacta do poema
					sou.
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