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Jornal do Conto

 

 

Paulo Rosenbaum


 


Solidão, uma jornada pelo isolamento ou a
obrigatoriedade ao si mesmo

 



 

As filhas saíram, a esposa dormia cansada no quarto. Fairbanks estava deitado no sofá da sala pensando na vida, de repente um sobressalto o sacode. Levanta como se fosse um atleta – considerando seus 62 anos sob regime de sedentário convicto – ele vai ao computador, pois acaba de ouvir o barulho de um e-mail aportando.

– Alarme falso, de novo.

A expectativa de e-mails combatera durante algum tempo o reino do insuportável silêncio telefônico. Era mais um daqueles spams de produtos descartáveis, maldição tecnológica inventada pelos intrusos. Porém, ao se virar de volta à sua lassidão, Fairbanks começa a ter uma sensação estranha. Mergulha em um choro convulsivo. Chora alto. Chora pesado. Chora como se ninguém fosse ouvi-lo.

– Isto é pura solidão, diagnostica.

Logo ele tenta reagir. Desce ao saguão do prédio. O porteiro dorme e ele não quer despertar ninguém. Avista a rua, perigoso demais, estima. São 2: 00 A.M. Sobe de novo ao seu andar e abre a porta lenta e resignadamente. Parado atrás da porta ainda entreaberta toma uma decisão. Liga para Sandor, seu melhor, vale dizer único amigo, desde que abandonou os campeonatos de xadrez:

– Sandor

– Fair ?

– Sim, desculpe a hora mas....

– É urgente?

– Não

– Me liga de manhã, ontem dei uma palestra (Sandor, um economista renomado e
consultor via-se sempre as voltas com intermináveis ciclos de conferências nas quais
aliás não acreditava em uma só palavra que pronunciava) que acabou comigo!
Fairbanks silencia e assente com a cabeça sem se dar conta que Sandor não o vê.

– Ok Sandor, até amanhã.

Preciso falar com alguém, reconhece a urgência. Agora vou apelar. Fairbanks um enxadrista outrora famoso, intelectual perseguido pelas ditaduras de direita, repudiado pela ortodoxia na esquerda por seu implacável -- e cá entre nós insuportável mesmo -- senso crítico quer “apelar”. Aciona agilmente o teclado.

– Olá – com voz de otimismo estudado -- você ligou para o C.S.S. Centro
Solidariedade aos Solitários, em que posso ajudá-lo?

– É que....deixe estar....Devo estar mesmo desesperado, pensa alto.

– Sr. Sr.....se aflige do outro lado o frustrado interlocutor que vende o conforto vocal de sua companhia como mais um produto da frivolidade moderna.

Fairbanks se dirige para o velho sofá de couro e se ajeita no mesmíssimo lugar de antes. Melhor ver Tv, pensa.Mas depois da explosão dos reality shows ser telespectador era estar em conluio com uma realidade que ele abominava. Pelo menos era o que costumava argumentar quando ainda tinha amigos. Reduz-se ao sono e ao adormecer, entra num estranho sonho:

A cena é límpida. É um campo, mas parece haver praia ao fundo. À sua frente estão três moças lá pelos seus 20 anos dançando de roda. Fairbanks habita um corpo bem mais jovem, ainda que não possa se enxergar. Sente-se tão bem que duvida. Contempla a cena sem nenhuma pretensão detectável. De repente alguém avisa, aos gritos

– Rápido, olhem só a tempestade que esta chegando. Somem as moças, some a paisagem, ficando só a árvore sobre a qual ele já se recostara.

– Estarei protegido? pergunta-se, quase como uma formalidade, sem nenhum incomodo

Logo em seguida Fairbanks cai num semi-estupor e numa rede de imagens sucessivas se imagina velho e o que fará quando tiver mais idade. Vê-se falando consigo, lendo um grosso volume de poesia, esporadicamente argüindo o Criador. Agora pode se enxergar. Suas feições são plácidas. Está com a cara dos que de verdade sabem algo. Subitamente, ainda dentro do seu semi-sono, no sonho, alguém o interrompe:

– Sr. Fairbanks ?

– Sim

– O Sr. pode terá a gentileza de me acompanhar?

Fairbanks consente, sem ter certeza alguma de seu desejo.

Vê–se seguir um homem de meia idade, musculoso, bem atarracado, que anda forte, sob passadas rápidas, descalço. O trote é quase militar. Embarcam numa canoa (um pequeno bote com motivos indígenas estampados, mas que, de soslaio, pensa ter reconhecido a palavra Rubicão). Sem aviso, o tranco. Esta em mar aberto. A turbulência é forte ainda que não haja motor algum. Fairbanks hesita pelo chacoalhar constante, mas não chega a ficar nauseado. Chegam até uma minúscula ilha. Mais exatamente um banco de areia avantajado com rochedos escuros. Avista logo um farol desproporcional em forma de torre. Fairbanks se vira para se dirigir ao homem que o conduziu mas este, estranhamente, sumira. Volta-se e constata o farol aceso.

– Em pleno dia? exclama perplexo mas sem se importar!

É bem alto. Sobe as escadas. Lábios trêmulos. Sua tensão acentua-se e deglute em seco ao ver quem era o faroleiro: ele mesmo. O contato visual empalidece ambos. Ocorre-lhe uma remota semelhança com um de seus filmes prediletos “Morangos Silvestres” de Bergman. Mas nada era sinistro. Fairbanks passa horas dialogando com aquele simpático e inusitado desdobramento de si mesmo. Dá-se conta que jamais tivera conversas tão agradáveis, elucidativas e despreocupadas. Nota que há anos não se sentia tão integrado a alguém. Nunca fora também tão longe na profundidade das reflexões. Temas como vida, morte, destino, solidão e fragilidade ficaram voando entre as duas mentes, como velhas conhecidas que eram.

Toca o telefone, Fairbanks desperta um pouco atordoado. Vê-se sob a mesma árvore. A tempestade está vigente. Despertou do primeiro sono, pensa. Faz força para se erguer e nada. Preciso acordar, deduz. Lera que isto poderia ser o fenômeno desdobramento mas seu ceticismo miliante não engulira esta. Finalmente, não sem grande esforço, inclusive muscular, sai como se aprisionado durante anos o sofá que adormecera.

– Muito estranho, balbucia com a cabeça pendente e ligeiramente ofegante.

O telefone toca.

– Fair?

– Sim

– Sandor!

– Que horas são?

– 7:42 da manhã

– Dormi pesado e tive um sonho.

– Tudo bem, desculpe não ter tempo para falar ontem à noite

– Sem problema, andei conversando bastante. Te ligo depois, já desligando em tom
lacônico.

– Ok.

Sandor desliga e fica intrigado por ser dispensado pelo amigo que em geral tinha o hábito de “grudar”.

Fairbanks, no entanto, deu um passo decisivo para resignificar sua solidão. Entrou no hall de diálogos. Saiu disposto a se ouvir mais. Solitário ou não seu tempo foi repensado. Não é mais vitima de ter que estar com seu si mesmo. Fair, para ser intimo, descobrira um horizonte provável na sonolência imprecisa de uma tarde que tinha tudo para ser como todas as outras.

 

 

 


 

16/11/2005