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Patrícia Barbalho

 

patricia_barbalho@hotmail.com

 

Thomas Cole (1801-1848), The Voyage of Life: Youth

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Contos:


Ensaio, crítica, resenha & comentário: 


Fortuna crítica: 


Alguma notícia da autora:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

José Lívio Dantas

 

Valdir Rocha

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Allan R. Banks (USA) - Hanna

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata, detail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Tentação de São Tomé, detalhe

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Colle,  The Return, 1837

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Êxtase de São Francisco

 

 

 

Patrícia Barbalho

 

 

AA MULETAS

 

Quando começou tudo, eu queria apenas ser calma. Não como uma outra pessoa, mas assim como eu, calma, simplesmente. É que eu tinha percebido que eu vivia para os outros, então, decidi me livrar dos ‘outros’. Só que os outros era minha família! O que fazer então? As bifurcações do caminho... Alguma coisa, não sei o quê, me falou: “- Vai embora.” E eu fui.

Fui escalando a estrada, que tinha pedras enormes!! E depois menores e menores e enfim aprendi a andar com muletas!
Num desses passos apoiados, encontrei um rapaz observador. Ele disse que queria ser meu marido! Foi estranho. Ele também seria louco, assim como eu?

De tanto bater na porta, deixei-o entrar. Mas entrar pela metade, assim como ninguém merece amar. E ele me falou da simplicidade do mundo! Trouxe em suas mãos o presente que eu vim buscar. O ‘eu calma’! Ele trouxe, sim. Mas, mas eu não tinha mãos para pegar. Elas estavam presas às muletas, onde eu tinha que me apoiar.
É que eu não queria cair!!!

E depois entender que tudo são escolhas. As bifurcações do caminho... E ainda depois, entender que eu não sei escolher.

 

 

 

 

DOZE CANIVETES

 

Se fosse uma palavra, seria concreto. Um subterrâneo com poucas cores. Com passos rápidos. Ratos. Pessoas distantes. Elas estavam um pouco pensamento e um pouco onde ainda iriam chegar. Mas aquele momento de passos rápidos no concreto? Era cuspido? Um virar de páginas, um passar de dias. Uma coroação de névoa embaçando as vidas. Vidas turvas e, e não sei... Era um lugar novo, eu nunca tinha ido a São Paulo, eu nunca tinha andado de metrô.

Doze andares para baixo, luz e ninguém na rua. Doze milhões de pessoas se escondiam, não ali. Estava escuro. A cidade lá embaixo parece morta. Um homem dormia como um menino, assim como ele dorme, para mim. E sei lá quantas mulheres estavam presas ao lado, num presídio no centro da cidade! O céu cor púrpura! “A cor púrpura.” Meio vermelho, meio preto... meio névoa... Uma coroação de névoa embaçando a cidade. Um embaçamento. Mas, metais dourados cobriam móveis. Estilo e piso de granito. Piso de granito. Ninguém na rua. Ninguém na rua. Eu olhava o homem e chorava, eu estava num passado que não mais existia. Doze meses se passaram, eu havia saído de casa. E aquele homem desconhecido ainda dormia como um menino.

Pela manhã, como por trás de um véu branco, as ruínas se fizeram formas, estavam lá! Lá embaixo, pequeno, concreto, com poucas cores. E eu vi o Carandiru! Deus, era verdade! O Carandiru! Estava desativado, mas era real. Mais tarde quando passamos por ele no metrô, eu via os braços para fora das janelas, as camisetas penduradas. Eu via as poucas cores. Os homens que já não estavam lá. E era real.

Saímos para andar pela cidade, entramos numa igreja antiga, linda! Ali os passos desaceleravam, silenciavam. E existiam. E eu consegui respirar. Mas nas ruas, lojas, um passo através de uma porta e tudo volta a correr. E de tudo. Espíritos afogados em corpos. Afogados? As pessoas que jogam o jogo. As pessoas que se submetem. É que foi aprendido. E eu aprendi também. O que é diferente é julgado. Eles, que não sou eu. Eles e uma barreira de concreto, como os homens gostam de construir. Eu aprendi também. Vi mendigos e meninos de rua. O problema é que eu já havia absorvido as imposições de formular previamente os personagens, embalados, prontos, e eles eram negros e pobres. E eu, escrava das aparências. Que sempre enganam. Quem? A quem elas enganam? Elas, aparências e elas, imposições. Eu estava numa cidade nova para mim, com a carga dos rótulos. Eu julguei tudo, todos. Meus olhos negavam. Foi assim nos primeiros anos. Todos os lugares eram julgados, até ali, eram apenas doze meses, doze esperas, doze dores? Doze? E eu fui rever o homem que agora morava naquela cidade. Entramos numa loja de pesca. Um rapaz negro e mal vestido olhava os canivetes. Meus olhos paravam nele. Em quê aquele rapaz iria transformar o canivete? Eu havia aprendido e sabia. É fácil saber sem pensar, como esponja. Tudo já foi dito. Por isso eu tinha saído de casa, para descobrir por mim o que já foi dito. Dito errado. E depois aprender que até o errado não existia. Apenas as diferenças. As diferenças.
E eu também olhava os canivetes. Eu podia! Através de mim ele não machucaria. Havia todos os canivetes, havia tudo e com bons preços! Escolhi um canivete, com cabo emborrachado azul. Muito bonito. Perguntei ao homem ao meu lado se ele era bom. Havia aprendido em casa que ele sabia mais do que eu em relação a essas coisas, gostava de pescar, caçar e de facas. Então estendi o canivete para ele, o segurou me dizendo para ter cuidado. Olho-o calmamente, estudou a lâmina, o cabo, abriu, fechou, abriu novamente e passou a mão na lâmina. Cortou-se! O sangue pintou o balcão. Eu assustada chamei a moça para pegar algo que o ajudasse a limpar o sangue. Ela riu e disse que não tinha nada. Eu indignada. Ela não tinha nada? Eu assustada. Não existia o através, era o que era?

Sangue do meu irmão no balcão. Comprei o canivete.

 

 

 

 

A FORMA DA LIBERDADE

 

Era no meio do ar. Pés soltos na areia.

Enfim alguém que possuísse liberdade. Possuísse!!? Liberdade é não possuir.

Sair de um avião e o mundo se transforma. Tudo foi, ele foi junto, e existe, não esperando, uma vida que parece estacionada, mas que está ciclando como a dele!

A cena é sempre a mesma: abre-se uma porta, procura-se um lugar para soltar as malas que um desconhecido trouxe. Soltas, o olhar para o todo, depois é fechar a porta que o isola do resto do mundo. A cela foi fechada. Um quarto de hotel. Mudo. Cheio de vazio. Um quarto de ninguém. Feito especialmente para ninguém. E ele está lá, feito para esse quarto. Existindo junto com ele, resistindo junto com ele. Não é difícil perceber que esse quarto não o pode acolher, e o quê poderia? Mas, há uma saída!? Uma outra porta leva... a uma sacada! Ficar longamente percebendo iguais, todas as cidades, cheias de telhados e luzes. E distâncias. Então um banho quente e uma boa noite de sono num colchão perfeito! É tudo o que se precisa quando se está longe de casa e cheio de cansaço. Tudo? Depois, acordar pensando para que lado da cama tenha que levantar. Para onde é o banheiro mesmo? Onde estou mesmo?
Está em duas vidas. Um mundo que existe alternativo. Um mundo que existe paralelo. E as vidas vão. Um dia ele está aqui, e não no outro? Lugares e pessoas que estão, ao mesmo tempo, vivendo. Assim não enjoaria de viver. De viver a mesma vida? Um guarda-roupa mudo, branco. Ele abre a gaveta e vê o tempo correndo lá também. Mas ele está longe e não percebe. Só ouve, e quando chega em casa, outra gaveta, as pessoas estão lá, algumas, de uma forma diferente, as mesmas pessoas. Engavetadas? Os departamentos separados. Criados e alimentados como quartos de uma casa grande. Um mundo em cada ambiente.

Quando cortaram os seus grilhões, ele não conseguia andar, os seus pés estavam leves demais, ele só conseguia cair. Havia desaprendido. Como se não soubesse nadar, ser empurrado em águas profundas. Braços e pernas a mover-se com rapidez, com desespero, em busca de algo para se apoiar. Segurança. Um bebê que quer braços, amor. Fazer parte de algo. Liberdade é não se sentir fazendo parte de nada? Não se encontrar na própria família. Não se encontrar em lugar nenhum. Viajando e procurando. Ter nenhum lugar. Ter vários lugares, numa mesma vida. Ter várias vidas e ser a mesma pessoa. Ser livre chega a doer, porque não se diz como agir. Não existe manual. Não existe forma, limites. Não existe um caminho, existe um campo aberto em 360°, que é caminho para qualquer direção. Liberdade é não ter direção? É ter todas as direções? Todas que não chegam a ser uma. Sem direção! Se ele não tem lugar algum, não pode perder nenhum lugar. Liberdade é não possuir. Ou... não possuir tão completamente que se pode ter sem risco de perder, distanciamento. E morar num só lugar!? Não seria apenas ter escolhas?... e escolher de dentro para fora. Como florescer, não esculpir.

Ele sabia que gostava de voltar. E também que precisava ir novamente. E sumia! Com a desculpa absoluta do ganha pão, o submeter dos homens? Parecia-me um saturamento, ou fuga, uma qualquer razão invisível que alimentava a sua... liberdade?

Mas para ele, estar aqui é muito bom. É sentir parte? É ser família? Me ocorre que lá ele também sente isso, quando vai. Engraçado... nos últimos dias ele só queria ir embora. Agora está tudo bem.

 

 

 

 

A DANÇA DE NÓRIA

 

Se fosse uma palavra, seria constância.

A constância de um cheiro, um enjôo perene. E uma fumaça preta borbulhando de um tubo quente. E se dissipando, mergulhando em um espaço que neutraliza a cor. Faz sumir.

Faz sumir. A diluição faz sumir. A transformação faz sumir.

Num corredor longo, eles vão. E chegam a me matar. Num corredor estreito, passos para trás, um adiamento do inevitável, e depois vão. Um após outro. Eles olham e mesmo assim vão. Será que eu também estou indo com eles? Temo a interferência que eles me impõem e que eu não vejo. Ela poderá existir, crescer e sumir. Sumir como a fumaça preta dissipada do tubo quente. A dor que eles me regam, me nutre de dor, ou eu posso transformá-la? Como posso fazer sumir?

Num corredor branco, pingos vermelhos e orgânicos desenham a mais bela imagem abstrata e forte. Um líquido vermelho de todas as tonalidades, linhas paralelas e verticais, chuva de dor e perdão. Seria som de cachoeira, se não fosse o som das máquinas o esmagando. Seria cachoeira! Se não fosse sangue caindo de gargantas degoladas e inocentes. Ganchos de metal ecoantes carregavam cegos os corpos assassinados dos bois. Dos bois de mugidos ecoantes que vão cegos carregados pelos ganchos de metal assassinados. Corpos pendurados chovendo sangue. Corpos que balançam lentos numa dança fria e bruta. Uma dança de morte.

Uma cortina de corpos, separando. Uma cortina de morte, separando.

Eu queria dançarinos e um palhaço sem lágrima. Um violino afiado que preso à mão cortasse a carne, até chegar ao humano. Eu queria a ternura dos olhos vivos, mas não poderia assustá-la com o minha dor. Sinto pular dos meus olhos a dor mais desonesta, uma piedade vermelha e brilhante como a imagem abstrata e forte, linda! e que não cabe. Também não cabe em quase nenhuma vida. Assim como essa nova bondade não está cabendo na minha.

Bom, preciso começar a desgostar o choro, então explicarei o que é a nória: é uma roda de metal impulsionada por um motor, um círculo temporariamente constante, mas que pára quando tem algum problema. É o motor, invenção humana, que leva as carcaças para serem desmontadas pelas facas dos homens que trabalham para viver. A nória é os ciclos e ciclos amém. Constância. Ou algemas, correntezas, pneus que levam. Série. Seria a vida.

Todos os dias, quando o Sol está nascendo, eles estão indo... Cheiro de fezes e sangue queimado. E as máquinas esmagando o silêncio. A nória circulando... Movimentos abruptos, assustados. A nória rodando. As armas cortando a carne. As pessoas cortando a carne. O animal se move. Dor? A nória rodando. A faca cortando. A nória cortando. Os passos abruptos. As portas abrindo e fechando. Abrindo para sempre. Abrindo a pele, a carne, a alma das pessoas. A nória abre a carne das pessoas até o fim. Até o fim. O barulho alto anula o barulho. Você está sozinho com a faca cortando. Cortando a dor do animal, a vida da nória. Cortando os próximos dias, separando dos anteriores, como transformação. A nória rodando, tão lenta quanto a vida que some na natureza. A natureza da nória é rodar, da faca é cortar, do boi é andar, de mim é sentir. De mim? A natureza é a mesma. A natureza da nória que anda, que corta, que sente. Que não sente a dor que ele sente. A nória é o processo. Do homem e meu. O meu processo é vomitar aqui esse sangue. Vendo e vivendo com a faca cortando. Como é bonito o vermelho! Ele manchou a alma da nória. A minha e a da faca. Ele roubou a alma do boi. A natureza. A natureza do boi pode ser roubada? A natureza que se funde e se separa, diluída no vermelho brilhante da nória. A mão presa à faca, eu presa ao sangue. O boi solto do sangue. Mãos velhas e novas. Passos por vir e por ir. Os do boi vêm. Eles vêm com movimentos abruptos, olhos de amêndoa arregalados. Verão o quê? Se o sangue os libertou com a mesma ferocidade que me prende aqui. Vendo e andando e vomitando a alforria do boi. O vermelho do vestido da criança. O vermelho é meio preto, meio vinho, meio vermelho brilhante. E com uma espuma cor de goiaba. É feminino como a faca não é. Como ela liberta as pessoas do corpo. Liberta da natureza. A natureza que continua.

A nória parou, minha mão, não. Meus passos também não. Não parou o vermelho do sangue, meio buquê de flores! Não parou o corpo do boi, já sem o boi, que se mexia. A nória parou, todos foram embora, os corpos ficaram, os bois sem pele e sem sangue. E o sangue também ficou. Eles vão embora de uma outra forma. E todos vão embora da mesma forma, depois. Só depois, guinchados por sua própria nória. A dissipação faz sumir, a transformação faz sumir. Uma parte deles está na faca, no corte, no sangue. A outra na nória e na correnteza, a outra na cor vermelha, na cor humana. E ainda outra, no que se pode fazer.
A mão abraça a frieza cúmplice da faca, que nos faz presos e corta o bife do almoço. Este é o preço daquela morte? O sacrifício do boi para servir. A faca corta lenta, obediente. A faca presa à mão. As pessoas... se alimentam da dor daquelas mortes. Um país agrário. Um mundo de presas. E um sentimento que não cabe nele. Aquela morte é o preço desta carne? Esta dor é o preço que pago pelo alimento. Uma culpa tímida. A piedade vermelha me guinchando a dor, me levando cega na constância ecoante. Até onde posso ir inteira? Os corpos guinchados são esquartejados e viram bifes. Até onde posso ir inteira?

Inteira é uma palavra sem limites. Inteira seria nua, seria raiz? Seria tudo? A minha mudez, a mudez dos animais, a nudez dos animais, a seriedade, arrasando minha plumagem má. De um lado está o cálculo humano, do outro a ternura dos olhos inocentes, mas não se começa a descrever um animal pelo olho. Por que ir às janelas se há paredes? Ir dentro? Quem sabe se deparar com um eco negro e assustador? Quero paredes e seriedade. A mudez, a nudez e minha visão humana pintando-os com ternura. Mas, por que ir no não dito se temos o dito? Uma cortina de pele, separando. Há feridas. Os animais sem pele falam com suas feridas do corpo. Hematomas. Abrir um presente e encontrar surpreso, o difícil inevitável.

Descortinar a dor do mundo. E se encontrar.

E se tirássemos a pele dos homens?

Ganchos de metal ecoantes carregavam cegos os corpos assassinados dos homens, levados pelos bois. Escravizados pelos bois. Boi leite, boi pão, boi dinheiro, boi poder. Dos homens de silêncio ecoante que vão cegos carregados pelos ganchos de metal inventados pelos próprios homens. Criam o veneno para depois bebê-lo. Guinchados na correnteza cega da nória. A nória pára, eles param. Ela parada, vai lentamente enterrando o tempo. Eles esperam em silêncio ecoante, levados à morte mais cedo. Porque o tempo também morreu. A linha dos bois, a série dos homens. Fantoches iguais para a mesma apresentação. Vestidos em série, como uma corrente. Se mandar parar, eles param, se mandar seguir, eles seguem. “Vida de gado.” Parasitados pela nória que suga o sangue que não cai do boi. O sangue em série. Assassinatos em série. Série é uma fórmula humana. Como a anorexia desfilante da moda, que leva mulheres guinchadas pela vaidade. Boi poder, boi beleza, boi sucesso. Padronizações.

Descortinar a dor do homem. Escolha é luxo. Assim como “o pão nosso de cada dia nos dai hoje”. Uns por não conseguirem o pão, outros por não conseguirem Deus. E o encontrar... Com as mãos presas às facas. Encontrar a ternura e o amor presos em cascas de carrascos. Os carrascos em cantos de paredes, como presa, como predador. Ensina-me o que é ser humano. Ensina-me sobre as pessoas guinchadas à série, à constância cega da nória. Boi máquina. Homem máquina. Sobre as mãos presas às facas que cortavam a alma. A alma da nória, do processo. A alma humana. Raiva indomada, que toma e grita. Febre de raiz, gotas de sangue pisado, sangue resfriado de alma vazia.

Vazia é uma palavra sem limites. Vazia seria nua, seria raiz? Seria tudo?

Lamentações. E beber de um líquido que deveria sair do corpo. Beber lágrimas alheias para multiplicar a dor até atingir um estágio que a aceite e a repare. Podar e cortar a dor. Plantar o fruto tirado da árvore da dor. Da grande árvore formada por muitas vidas, famílias inteiras que vivem da dor. Plantar uma solução, porque os homens deveriam ser práticos e resolver. Por que dor? “O sangue derramado por todos os homens para a remoção dos pecados.” O sangue bebido por todos os homens para a invenção da paz. Lágrimas alheias que somam e desembocam em transformação e paz. Qual a distância entre os dois extremos? Dor e paz... É tão singular quanto cada um. Que me ensinem atalhos ou formas mais eficazes de aprender, porque há lamentações.
Quando se tem acesso à absurdidade da vida, a perplexidade corta, a ação é esvaziada e uma sensação de morte coroa o não ser. O ser humano com olhos de dor. Quando se vive a absurdidade da vida, para a emoção, a razão que se experimenta é velha e calculada. É exata e estéril. É uma invenção para ninguém. Depois chorar, acordar para a experiência de viver sem vida? E acordar. Em choro ecoante. E ver a faca cortar e nada fazer. Aceitação. Resignação? Aceitação e até as reações são lembranças de viver. E me perco e me procuro em branco. Aceitação. São muitos momentos, “movimentos de uma mesma dança.” A dança, a suavidade de uma música branda, de uma mão leve, a força e o olhar envolvidos num ritmo que impõem e liberta. Depois a mesma mão presa à faca, matando, morrendo.

Afoguei-me no sangue daquelas mortes. Hipnotizei-me com a dança daqueles corpos. Fui guinchada na série. Mas... Desvestir-se de vítima. E ser, simplesmente. Sinto os olhos, o corpo vermelho. Sinto meu corpo de fome, frio e cansaço. Sinto meu coração esmagado por tudo. Quero de volta. Quero não querer de volta. Talvez aí esteja a dor. A não aceitação. Amar-se, como...? meu Deus! Onde me esconderam o viver? Onde esconderam o viver do homem? Levados pela série, eles se desencontraram, se separaram da vida. A vida como abraço de despedida ou encontro. Apertar contra si. Querer. Mas um momento da dança. Um golpe de faca. A inocência criativa e negra.

A nossa humanidade.

Descortinar a delicadeza, a suavidade por trás da amargura rude e violenta. Descortinar o ser humano. No meio daquelas mortes, nascer para si, para a vida. Descobrir-se do mundo. Ser o mundo e ir se encontrando. Descortinar a crueldade, a covardia, e por baixo da crosta do mundo, está lá, doce e sereno, terno como uma mãe. O humano. Que quer cuidar. O mundo onde ele é branco, a mãe do sangue. A mãe do ser. O ser. Tu, mãe do sangue. Nós, a mãe e o sangue. O próprio ser.
Quando se tem acesso à absurdidade da simplicidade, essa sim é a mais perplexante, impõe diluição, e liberta. Entender a dor e a cor, e assistir o homem fazer todas as facas de dois gumes. Ver se dissolver. A diluição faz sumir. A transformação faz sumir. Para depois emergir do solo, fértil e forte. Para vivenciar a simplicidade...

Não sei o que vem depois. Quero um esclarecimento do mundo. Quero unir cada carne libertada, cada gota vermelha e formar a ternura dos olhos inocentes. Quero unir cada palavra, cada sentimento e formar a história dos olhos, do processo, do vermelho e da dessecação da dor. Da diluição, da libertação da dor, da cachoeira vermelha e abstrata, abrupta. Mas não quero minha inocência de volta. Para que serve a dor? A mutilação é construção? Pedaços que se arranjam e rearranjam, que se transformam, que nos transformam. Da morte à vida... Se eu pudesse organizar as minhas idéias... Poderia entender o porquê das cachoeiras e pétalas, dos corpos e sangue. Entender o vermelho e o som. A faca e a dança. E andando descalça sobre as águas e as lanças, ser. Para poder descobrir. Para poder libertar. Ajoelhai em nome... de quê? Não quero frases feitas. Quero apenas algumas frases. Frases de qualquer cor ou cheiro. Quero menos que ontem. Apenas a respiração e assim estou, sou. Não quero. Para mim que estou na primeira absurdidade, só posso sofrer a dor de uma inocência. E um sono infantil. Se eu pudesse organizar as minhas idéias...

 

 

 

 

VERDADES

 

Havia um grande vale num lugar desconhecido, onde apenas quatro elementos existiam. Ar, terra, água e fogo. Além destes, nada mais. Nenhuma lei que pudesse permitir a união deles ou não. Nem o próprio nada.

O vale era muito amplo, como o que não tem fim, e não parecia fazer parte de nenhuma área, era como um próprio planeta. Lá, a mesma natureza não parecia completa, pois só haviam esses elementos. E eles eram estéreis, não formariam. O vale era constantemente imóvel e imutável, como um quadro vive.

O fogo não tinha o que queimar. Não tendo então o que destruir, não construía.

A água não poderia molhar, e assim como o ar, não se movia. E a terra era intocável. Tudo submerso numa magia única, como uma profecia.

O vale existia dormindo.

Um dia, um poderoso rei sonhou com esse vale, e pensou que precisaria algo acontecer para dar-lhe vida. Então enviou um servo para que lhe entregasse quatro presentes. Com isso não seria apenas um rei, tornaria-se um Deus nesse lugar desconhecido.

E disse:

- Servo. Vá e entregue a esse vale desconhecido estes quatro presentes. Dize-lhe que foi teu rei quem os enviou para que este vale adquira vida.

O servo foi.

Depois de anos de busca, perdendo-se por vários vales que tentavam confundi-lo, o servo encontrou o verdadeiro vale e ali entregou os presentes de seu rei dizendo:

- Eu vim em nome de meu rei que vos enviou esses presentes. - E mostrou o ar, a terra, o fogo e a água.

Os elementos o olharam com surpresa. No vale nada mais existia além deles e eles foram presenteados com eles mesmos!

Mas o servo entregou a água para o fogo, que fez da água ar. Este ar encontrou-se com o outro ar já existente, mas imóvel, e juntos fizeram o vento. O vento açoitou o calor do fogo e fez a chuva. A chuva fez a terra fértil... e todos juntos fizeram uma grande tempestade.

Átomos se dispersaram construindo novos elementos e estes formaram seres e estes formaram vida e a vida formou a morte, esta formou instintos, estes formaram desejos, que formaram sentimentos, que fundiram-se formando o amor, que formou a ternura..., além do ódio, e no meio desse turbilhão de sensações e transformações nasceu a sabedoria criando a humildade, e apesar de suas existências não conseguiram impedir o surgimento da inteligência, que formou a mentira... E um “sem fim” de acontecimentos revelaram-se vivos. Então criou-se! Matando a antiga e constante imobilidade imutável do vale.

Foi quando a saudade olhou para o servo que estava estático perante a grande transformação que ocorreu quase que ao mesmo tempo e lhe disse:

- Volta para teu rei e dize-lhe que ele matou o vale.

Apesar de a mentira já ter sido inventada por lá, esta não estava presente nas palavras da saudade.

O servo então voltou até seu rei e lhe trouxe a mensagem:

- Oh grande rei, vossa majestade matou o vale.

- Quem és tu para desafiar-me?

- Perdão meu rei, mas não sou eu quem te desfia. Apenas trago uma mensagem.

- O vale estava morto. Eu vos presenteei com a vida. - Diz o poderoso rei inconformado.

O servo ajoelhou-se perante seu rei e lhe implorou entendimento, pois aquele acontecimento havia-lhe esvaziado de sua verdade. Ele não conseguia compreender duas verdades.

- Quem és tu para querer compreenderes algo?! Volta ao vale ingrato e como vingança pela falta de agradecimento, trás de volta meus presentes. Eles não merecem a vida que lhes dei.

- Mas meu rei, eles já possuíam seus presentes.

- Vá. - Ordenou o rei.
O servo voltou ao vale, que já era outro ainda mais desconhecido e tentou roubar os presentes do rei, mas não conseguia mais distinguir o que fora dado pelo rei e o que já existia, além da completa desfiguração. Então, como a ordem de seu rei era vingar-se, matando o vale, ou dando vida?, já não conseguia entender... O servo roubou-lhes o tempo. E voltando até seu rei disse:

- Oh, grande rei, foi feita a vossa vontade, o vale voltou a ser morto.

O poderoso rei fez uma grande festa para ressaltar o seu poder, celebrando a morte do vale.

À noite quando dormiu, sonhou com um lugar tão desconhecido quanto imóvel e então pensou que desta vez seria à hora de tornar-se um Deus.

Ao despertar, o poderoso rei chamou seu servo e lhe disse:
- Vá a esse lugar desconhecido de minha sabedoria e lhe entregue este presente.

O servo foi até esse lugar desconhecido ao rei e disse:
- Eu vim em nome de meu rei e vos trago um presente. - E entregou-lhes o tempo.

Ao recomeçar a mover-se, a sabedoria daquele lugar desconhecido ao rei falou:

- Jamais teu rei poderá nos devolver o que nos roubou.
E o servo sabendo apenas que o seu rei havia-lhe mandado presentes, ajoelhou-se perante a sabedoria daquele lugar agora ainda mais desconhecido e lhe implorou entendimento. Porque aqueles acontecimentos esvaziaram-no de sua verdade. Ele não conseguia compreender duas verdades.

 

 

 

Manoel de Barros

 

Augusto dos Anjos

 

 

 

 

 

13/09/2007