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CADERNO 4

 

MEUS OLHOS TRANSEÚNTES

 

“Pour l’enfant, amoureux des cartes et d’estampes,

L’univers est égal à son vaste appétit.

Ah! Que le monde est grand à la clarté des lampes!

Aux yeux du souvenir que le monde est petit!

C. Baudelaire

 

 

SOBREVÔO

Súbito espero e alcanço ver-te,

Leito de Iemanjá adormecido.

Do céu te invejo e vejo,

Água alegre, caldo de cana verde.

Indiferente e belo continuas

Refletindo a luz e balançando,

No teu bojo, líquidas riquezas

De ouro, prata e corpos de poetas.

 

BALÃO AZUL

Terra amada, ilusão é possuir-te.

Mal o tempo de ver-te,

Prenhe de verde, sal e solo

E flores, frutos, aromas e ritmos,

E já nos abandona sem deixar-nos.

Cascas de palavras, poeira de sons,

Recados do passado ajudam a renovar

Este amor primeiro e último.

A voz de Baudelaire, o grito de Rimbaud

Unem-se às cores de Van Gogh

E às poderosas harmonias de Beethoven

Na tentativa sempre retomada

De marcar de eternidade

Essa visita que a dor encerra.

 

CONCEIÇÃO DE SALINAS

Os flocos vermelhos da árvore

Destacam-se na enseada macia

Onde os barcos negros permanecem

Frente a ela, imponente personagem

Da paisagem que existe sem saber-se.

E meus olhos transeuntes e atentos

Reinventam as tintas de Gauguin.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

RIO DE JANEIRO

Num vôo sobre a rocha doce

Abraço primeiro e fundamental,

Deu-se o encontro definitivo.

A bruma da tarde acolheu-me

Na terra estranha e barulhenta.

 

Um dia, amigos e endereços

Foram deixados para trás

Na madrugada enevoada e fria

Após anos de incorporações de afetos.

Com o pensamento te vejo e te estreito,

Mas quem me dera o dom

De, em aqui ficando,

Passear-te quando bem quisesse.

 

CANÇÃO LONDRINA

Londres, não te sonhei como te vi.

Eras cinzenta, fria e barulhenta

Embora acolhedora nos teus tépidos cafés.

Não tomei chá com doces no pub

Nem andei no segundo andar

Do teu ônibus azul

Tampouco fiz compras no mercado

Fervilhante de londrinos.

Londres, não te vi como sonhada

Era domingo e estavas fechada.

 

SORRENTO

Sorrento para mim é uma noite

Bela como um acalanto

Num jardim sobre o Tirreno

Onde fogos de artifício

Disputam com as estrelas

Nossos olhos encantados.

Nela fui rica por uma noite

Por entre gente bem vestida

Que circulava no hall

E tive o vento salgado

Naquela varanda do hotel.

Sorrento distante é um filme.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

PARIS II

Turistas colorem tuas ruas

Unindo-se ao sol de tempo marcado.

Mais tarde a neve te cobrirá de novo

E meus olhos te verão ainda

Guardada que ficaste

Na estação das flores.

Sei tua língua, teus costumes

E até teus tiques nervosos,

Mas te vejo tão pouco...

 

Notre-Dame de Paris sai das gravuras

E, súbito, ergue-se frente a mim

Pesada de passos e de tempo.

Teus muros escorrem música

Que penetra na penumbra

Nossos nervos deslumbrados.

 

Na praça, o enorme rádio americano

Da garota de New Orleans

Destila o sinuoso blues

Para acompanhar a tristeza

Da saudade antecipada.

Parto amanhã e já te sinto ausente.

 

VIAGEM PROGRAMADA

Canadá, vejo-te longe como um sonho

Vaga superfície nos mapas de minha infância.

Aos poucos sais da penumbra

Concretizando-te numa data de chegada.

Não consigo ver-me ainda correndo-te as ruas

Mas penso num momento bem preciso

Em que verei teus olmos, teus pinheiros altos

E as ruelas tranqüilas de arrabaldes.

 

Nova Iorque é mais quente nos meus sonhos,

Personagem de mil filmes

Atravessada por sirenes de polícia,

Habitada por todos os meus astros,

Íntima das salas de cinema.

Visitar-te é um rever-te

Tranqüilo, embora estranho.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

PAISAGEM VAZIA

O vôo simétrico do avião

Sobre o espaço uniforme e ocre

Do deserto africano

Que se continua e vai

Sempre igual,

Parênteses de areia vermelha

Na mata imaginada,

Me dá a dimensão da aventura,

Excitando meus sonhos de oásis

E de belas donzelas capturadas

Por ferozes tuaregues.

No cenário vazio

Coloco satisfeita

Minhas caravanas de árabes

E passo.

 

MARINA

As bandeiras agitadas frente ao mar

Aceitam o vento em suas barras coloridas

E acenam à terra o desejo de partir.

Verde escuro, o mar balança as ondas

Deslocando barcos desgarrados

Enquanto a espuma bate contra as pedras

E volta para o seu leito salgado.

Estendo a vista para o verde mais distante

E assim espero a hora de partir.

Aqui sentada, olhando o horizonte,

Visita-me o vento, figura desenhada

Na fazenda das bandeiras e no rolar das vagas.


CADERNO 5

 

Cadê minha Rua?

 

Le temps a fui...

Mars est fini

Tu n’es plus jeune, mais vieux

Tant pis, dit-il, et tant mieux

Paul Claudel

 

 

ESTRELINHA

Hoje fiz cinco anos

E era noite de São João

Balão-Bolo

Cadê minha rua?

 

RITUAL

Da roseira ao vaso

A rosa mudou de nome

Da roseira ao jarro

A rosa trocou de nome

 

Na igrejinha de Roma

Era a freirinha rosada

No jardim de minha casa

Era um rosto de homem

 

A rosa mudou de quadro

O gesto permaneceu

 

REDONDILHAS

No tempo de minha infância

Tínhamos luzes acesas

Cantos largos, brigas longas

Muito choro, pouco sizo

Muito riso, falarites.

No tempo de minha infância

Tínhamos luzes azedas.

No tempo de minha infância

Eu dormia de medo

(nos braços de Domitília)

e a noite era minha amiga.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

INFÂNCIA

Minha infância é a noite que entra

Pela janela aberta

E o perfume do manacá no colo da

minha tia

Minha infância é a sombra do outro

lado da rua

E os negros que dormem

A sesta das duas horas

No torpor da tarde.

Ela está no canto do galo

No ranger do bonde

Nas vozes dos seis irmãos...

Minha infância é a voz de Paulo Gracindo

E o gibi que brilhava.

 

OS RITOS DA NOITE

A hora traz consigo sempre

O desfilar dos operários.

Passos reiterados, os trabalhadores voltam

A face indiferente.

A menina espia e o seu tempo

É o tempo solto das brincadeiras.

Ela vestiu um vestido limpo

E agora olha o cortejo anônimo

Esperando a noite cair.

O jantar posto à mesa, balançará os pés

Rirá com os irmãos e,

Ignorando a zanga do pai, cantará.

Mais tarde as rádio-novelas

Modularão com suas vozes quentes

O sono infantil.

 

APOSENTADA

Sentada em meus aposentos

Não vi a banda passar

Todos chegaram à janela

Eu fiquei só a sonhar.

 

A marcha lembrou casamentos

Noivas, grinaldas, guirlandas

Generais de vinte estrelas

A derramar-se em palavras

Assaltos a catedrais.

 

Meus soldadinhos de chumbo

Vieram me consolar.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DOMITÍLIA

De longe me estende a rosa...

De nome Chagas

Chagas nos quartos

Flores de carne

Vermelhas.

Mais longe, em seu colo quente,

Ouvia estórias de mais longe ainda

Quando, vaidosa, de anquinhas,

Beliscava o rosto para trazer-lhe

A rosa que hoje, misturada à outra,

Viaja comigo.

 

PARIS

Eu te quero numa gula constante.

Mal me afasto e já te revejo.

Tens o cheiro de coisa proibida

Por seres dispendiosa e feiticeira.

Quando estou triste

Me dá uma vontade danada

De sentar-me no “Café de la Paix

Para observar o gênero humano

Numa reprise adulta

Dos tempos em que titia me penteava

E me deixava no portão

Para fazer o mesmo.

 

BOM GOSTO DA CALÇADA

Cinco horas da tarde. Sábado.

Orgia de merendas no batente do portão.

Eu não conhecia o mar visto do bonde.

Ria nos corrupios e ria dos bêbados

Sob a sombra do pai zombeteiro.

A paz lilás descia com a tarde

E meu cansaço descoloria a rua

No colo do pai arruaceiro.

 

CARNAVAL

Não saí no bloco do Trança-Fitas

Onde as meninas são mais bonitas

Mas como me deslumbrei!

Na ponta de cada fita

Cada uma de uma cor

Cada menina girava

E as tiras se laçavam

Sem nunca se darem nó.

A flor andava rodando

Sumia no fim da rua

Pra onde ia não sei

Como o passeio dos astros

Vogando sem se bater.

 

 

 

 

 

ESQUINA DA SOMBRA

Um tabuleiro de cocadas

Uma esquina enorme

Os casarões são brancos e

Eu estou neste cenário

Imensamente feliz

Há alguém comigo

Que não sei.

É uma cena antiga e

Nova porque presente

Pela intensidade do prazer.

A cocada é branca

A sombra é morena

Calmo mormaço

Eu pequena

Eu de tranças

Eu no “Samadhi”

 

VENTANIA

Quando em sonhos apagados,

Iluminados de olhar,

Registramos queixas velhas

Semelhando estrelas soltas,

É o vento que se volta

Envolto no seu vagar.

 

Tempo de ir e devir

Volteios de valsas no ar.

 

Nado nareia do tempo

Sereia sem salvamar.

 

SOL DA INFÂNCIA

Vejo agora as manhãs que tive

Mas meus olhos, de hoje,

Não retiveram a luz

Transversa do jardim da minha casa

Onde a sombra da “primavera paulista”

Era a casa da vizinha invisível...

Retive as conversas com a amiga de sonho,

Das bonecas, todas quebradas ou perdidas,

Guardo alguns nomes – Sofia, Marta, Margarida.

Sofia, nome de quase todas,

Eu ligava a sofrimento, embora sempre fossem

Felizes, de olhar azul, braços roliços.

Eram longas as manhãs de minha infância,

Eu bebia a brisa fresca sob o sol

E olhava as formigas trabalharem

Ritualmente à mesma hora

Em espetáculo de magia combinada.

Vejo agora as manhãs que tive

Mas o ouro transparente do sol

Meus olhos não retiveram

E se perdeu na lágrima de algum dia.

 

 

CORTEJO

4 horas da tarde,

Robe limpo e cheiroso,

Tomada banho,

Sentavam-me à porta

Na cadeira de palhinha

Para ver o povo passar.

 

Era costume diário.

 

O bonde rangia nos trilhos

Do outro lado da rua

E lá ia ele blém, blém,

A molecada pongando alegremente

E eu olhando, boneca no colo,

Muito sossegada e divertida.

 

As operárias passavam

Com seus vestidos de chita e percal.

Os homens traziam no rosto a vontade de chegar

Na minha memória, nem alegres

Nem tristes, cansados talvez.

 

NOSSO SENHOR DOS NAVEGANTES

O mar embandeirado

Levava os barquinhos de papel

E eu os tinha a todos

Brancos, vermelhos ou azuis.

 

De lacinhos verdes

Na ponta dos pés

Eu buscava enxergar

Um gondoleiro negro

Chamado Ricardo

Que me chamava de “cumadinha”.

 

Ricardo é nome de rei

E hoje eu o imagino,

Com muito orgulho,

Marujo de uma galeota azul.

 

COLÉGIO CENTRAL

Três anos, instante circular

Onde volteiam coloridos

Meus sorrisos alados,

Meus rostos.

Fatia nimbada de tempo

Te levo comigo, te levo,

Redoma redonda, fixa,

Douradamente presa

No espaço de minhas pálpebras quebradas.

 

 

 

 

 

BARCAROLA

Barco negro abandonado

Num céu cinza de tormento

Solidão, seco lamento

Madrugadas de cimento.

 

A pedra que prende o barco

Prende minh’alma no espaço

Segura meu peito amarrado.

Pêndulo doce, a corrente

Que prende o barco no porto.

 

Barco negro, verde barco

Balança nas ondas do mar.

 

CAMILA

Meu peito secou

Como uma folha dourada

De outono.

 

Quero os cachos dourados

Da minha neta

Quero os meus cachos dourados

No colo de minha tia

 

Quero minha tia nova

Quero a neta que não tenho

 

MÊS DE JUNHO

No Bom Gosto da Calçada

A noite das fogueiras de junho

Começa mais cedo.

Meus irmãos mercadejam fogos

Em rifas improvisadas

(caixas de madeira enfeitadas

com papel de seda colorido).

Eu tenho medo das cobrinhas-elétricas

E olhos que ardem

Acendo por minha vez

Cem estrelinhas douradas

Enquanto estrelas azuis

Ofuscam os balões acesos.

Na casa de Dona Zilda

O Santo Antônio é animado

Tem arrasta-pé e licores

(Mas lá eu não posso ir)

Aqui sou rainha da noite

Posto que as estrelas do céu

Cabem na minha mão.

 


NOTÍCIA BIOGRÁFICA

 

 

1938. Nasce a autora, Olinda, na cidade da Bahia, em um lar pequeno burguês da era getuliana. Infância e mocidade viveu-as na mesma casa (Bom Gosto da Calçada), ao lado de cinco irmãos, além dos pais e de uma tia-avó que lhe foi muito chegada.

Naturalmente, essa moradia de vinte anos definirá o núcleo de sua geografia lírica e seus personagens transitam por diversos poemas, a exemplo de: “Os Ritos da Noite”, “Infância”, “Bom Gosto da Calçada”, “Domitília”, “Cortejo”, “Redondilhas”, e este “Sol de Infância”, que diz:

...................................................

“Vejo agora as manhãs que tive,

mas o ouro transparente do Sol

Meus olhos não retiveram

E se perdeu na lágrima de algum dia”.

 

1951. Ainda ginasiana descobriria o prazer (e tormentos) da leitura extra-curricular. Aluna do antigo Ginásio Carneiro Ribeiro, na Ladeira da Soledade, o gosto por obras de ficção levou-a a ler, desordenadamente, Dostoievsky, José Lins do Rego, J. Cronin, Machado de Assis... Assim, as grandes questões do homem e de seu destino precocemente aturdiram a placidez da menina de classe média. O cinema, porém, a distrai. Assim, o rádio.

 

1955. O ingresso entusiasmado no curso clássico do Colégio Central representaria o início de uma fase de grandes descobertas pessoais e intelectuais. A atmosfera de liberdade de que se gozava naquele estabelecimento de ensino público, a par da convivência com os próprios colegas, tudo propiciava um desabrochamento para a vida.

Politicamente, desfrutava-se por igual de um período de desafogo e esperança, que viria a consolidar-se no governo do presidente Juscelino. Aqui em Salvador, a colegial Olinda amiudava as visitas à Biblioteca Pública, ao tempo em que acompanhava, à distância, toda a efervescência da contemporânea Geração Mapa. Mas o significado e permanência de sua grande aventura estudantil cristalizaram-se nos versos de “Colégio Central”:

“..................................................................

Fatia nimbada de tempo

Te levo comigo, te levo,

Redoma Redonda, fixa,

Douradamente presa

No espaço de minhas pálpebras quebradas”

 

1958. Aprovação no exame vestibular para o curso de Letras Românicas, à época ministrado no prédio da antiga Faculdade de Filosofia (Bairro de Nazaré). Afora algum estranhamento em relação à didática e cientificidades da Lingüística, os estudos superiores transcorreram sem maiores turbulências. De natural arredia à exposição da vida literária, Olinda a custo colaborou na revista “Cultura”, nº 7, 1960, página 85, editada pelo Diretório Acadêmico. É um tempo de gradual amadurecimento, mantidos os ideais juvenis. Assume compromisso de noivado com um ex-colega do Central, Renato (ver “Transmutação”) Decide-se pelo ensino do Francês. Inicia a experiência docente – como estagiária – em bons colégios secundaristas. Formatura em dezembro de 1961. Nomeada professora do nível médio do Estado da Bahia, breve teve que abandonar o cargo público, vez que o processo de licença de afastamento para aperfeiçoar-se, possivelmente, jamais foi despachado, por desinteresse da máquina estatal.

 

1963. Segue para o Rio de Janeiro, com bolsa da CAPES. Pós-Graduação em Francês. A grande metrópole motiva pelas oportunidades de estudo, de uma vida cultural mais intensa e diversificada, ao lado de seu projeto pessoal de casamento. Este ocorre ao fim do mesmo ano.

Ao término do curso, os resultados foram compensadores (1º lugar), sendo distinguida com o prêmio de bolsa em Paris. No entanto abre mão do prêmio para fixar residência no Rio. Inicia, então, o período de viagens de férias a Salvador, anuais ou semestrais, cuja duração foi de 11 anos.

 

1965. Edição do texto crítico do “Livro das Aves”, trabalho de equipe, sob a direção de Nelson Rossi, da qual participara ainda como estudante (Instituto do Livro). Nasce Marcelo, seu único filho (ver o poema “6 de março”). Enquanto aguarda melhores chances profissionais no magistério, submete-se a concurso público para o cargo de Oficial de Chancelaria do Ministério de Relações Exteriores. Assume a função por um ano, servindo na fabulosa Biblioteca do Itamaraty. Não se sente confortável, embora guarde memória de “monstros sagrados” consulentes da Biblioteca, como o embaixador João Guimarães Rosa, assíduo e bem-humorado. De fato, o incontornável clima político de repressão e desânimo asfixia “partout”. Essa lembrança inquietante é matéria que serviria à criação dos versos de “Mando” (“O homem do manto verde / Sentado no trono estrelado”).

 

1967. Retoma gostosamente as atividades de ensino, onde encontra as compensações vocacionais, como professora do Colégio Estadual Prado Júnior (bairro da Tijuca). Lá serviu por sete anos (e mais sete teria servido...). A par da atividade didática, dedicou-se a cursos de especialização (Literatura e Teatro Francês), na Faculdade de Letras (UFRJ). Da convivência com os colegas, reporta-se nos versos de “Confeitaria”.

“..................................................

As duas mulheres

Desdobradas ao infinito

Pelos enormes espelhos laterais

Haurem sem pressa o tépido chá”.

 

1973. Razões de ordem familiar desencadeiam o regresso de Olinda à Bahia, passados onze anos de ausência. Profissionalmente, vincula-se à Aliança Francesa (como professora, e estudante do Nancy I e II). Segue-se a contratação pela Universidade Católica do Salvador, sempre a ministrar aulas de Língua e Literatura Francesas.

 

1976. Paris. A pretexto de submeter-se a uma reciclagem na Sorbonne IV, durante a temporada de inverno, aproveita a oportunidade para rever contraparentes da Normandia e peregrinar a Lisieux. Ao final do curso, desloca-se até Veneza e Roma. Dessa aventura restaram os versos de “Paris-Caen”(“O trem-bala belifica a paisagem / Em sua brusca irrupção”) e, ainda, os de “Visita a Lisieux” (“Santa Teresinha do Menino Jesus / Gostavas Dele porque menina eras / e continuas”). Há uma série de poemas-viagem que deixo ao leitor o prazer de identificar (como “Paris I”, “Paris II”, etc). Esteve, ainda, em Lisboa e Madri. No Brasil, abre-se um novo ciclo de viagens anuais, dessa vez em visitas ao sogro, residente em João Pessoa.

 

1979. Passa a lecionar exclusivamente no Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia. O edifício, por algum tempo, seria o mesmo casarão dos tempos acadêmicos, portanto sua casa de origem e que haveria de inspirar-lhe a composição “Sala 12”:

 

“...........................................

Mesa que me viste em aflição, indiferente,

Hoje te vejo, estática na mesma cor e

Meras lascas de tempo te laceram

Mas o vento que bate em meus cabelos

Sendo o mesmo, não o senti outrora”.

 

1983. Publicada, pela Revista “Linguagem”, nº 1, Editora Presença, Rio de Janeiro (páginas 39/64), sua tradução do ensaio “Dicionários Monolíngues do Francês e do Português: Análises e Confrontos”, autoria de Celina Scheinowitz.

 

1986. Em andamento o processo de redemocratização do país. Após dez anos da primeira visita à França, novo curso de aperfeiçoamento didático em Sèvres. Dessa vez com direito ao verão europeu. Refaz, como pode, o roteiro cultural e sentimental. Depois de Paris, repetiu Veneza e Roma. Incluiu outras cidades, quais sejam Florença, Nápoles, Pompéia, Sorrento, Positano, Capri... Bem, não esquecer Londres. Outra leva de poemas celebra as emoções, peripécias e perplexidades da viajante. De Londres, trecho de “Canção Londrina”:

 

“......................................

Londres, não te vi, como sonhada

Era domingo e estavas fechada”.

 

1987. Eleita Vice-Presidente da Associação de Professores do Estado da Bahia (Biênio 87/88). Visita agora ao Canadá (intercâmbio de professores e atualização na Universidade Laval, em Québec. Eis que as viagens são freqüentes, os sonhos da adolescência (ver a poesia “Cidade-Baixa”), mesmo os não sonhados, vão acontecendo meio de improviso, sem projetos definidos, à revelia de cronogramas. Em verdade,  a autora move-se num ritmo próprio, mais sintonizada, por assim dizer, com a atemporalidade do essencial. Disponível para as exigências do magistério. Paciente, quanto às revelações da arte, passa a produzir, agora, com intensa regularidade. Quando do convite para conhecer o Canadá (com a possibilidade de ver Nova York), concebe os poemas “Transporte” e “Viagem Programada”, deste, os versos:

 

“Canadá, vejo-te longe como um sonho

Vaga superfície nos mapas de minha infância”.

 

Com efeito, na contra-mão da mentalidade moderna, a autora nada premedita e põe-se ao largo da concorrência empobrecedora. Mas, por força dos labores de toda uma vida, eventuais reconhecimentos até podem surpreender. Assim é que o governo francês lhe conferiu – por serviços prestados à cultura francesa – as Palmas Acadêmicas, distinção que recebeu, alegremente, em companhia de ilustres pares.

 

1989. Publicado o poema “Símile”, inserido no Catálogo do 7º Salão Paulista de Arte Contemporânea.

 

1993. Publica, na revista CANADART I, sua tradução, do francês, para o ensaio “A Telenoela: Rebento adulado e desprezado da cultura popular Quebequense”, da autoria de Helène Marchand (págs. 144 a 158). A partir de então tem colaborado na edição dessa revista da Associação Brasileira de Estudos Canadenses – ABECAN, como revisora, tradutora e membro do seu conselho editorial.

O envolvimento com a ABECAN (Núcleo de Salvador) coincide com a aposentadoria de Olinda como professora do Instituto de Letras (UFBA). Deixa pois a sala de aula e a companhia prazenteira dos alunos, que sempre a revigorava com os questionamentos e entusiasmo da juventude; problemas antigos vistos pela perspectiva das gerações que chegam, enfim de pessoas em sintonia com o tempo corrente e que são parte necessária do futuro. Esses alunos-personagens estão nos poemas “Clãs-Cãs”: “Eu, mestra e meus pupilos / duplicados na outra lente / irrisórios infinitamente”, bem assim em “Curriculum Vitae”: “São sempre outros mas / Repetem-se semestralmente / Enquanto eu sinto que mudo / Embora repita e continue”.

 

1994. Publicado o ensaio “A Telenovela, Arte de Novos Narradores: formas e influências da narrativa telenovelesca”, de Catherine Saouter, traduzido do francês por Olinda (Revista CANADART II, págs. 87 a 111).

 

1995. Publicação do texto de Maximilien Laroche, “Cozinha à Base de Manteiga ou de Margarina?”,  “O Chapeuzinho Vermelho”, entre a França e o Québec” (Revista CANADART III, tradução de Olinda, págs. 173 a 181).

No que respeita à divulgação de sua produção lírica, tal fato praticamente não existiu (fora do pequeno círculo de amigos). Excepcione-se os “Vidraça” e “Impasse”, ambos estampados, em setembro e outubro de 1991, no Boletim do Núcleo da Escola de Administração Fazendária (NESAF), portanto de circulação restrita. Pode-se afirmar, dessa maneira, que se trata de obra intocada, longe do alcance dos leitores de poesia.

 

1997- Sai publicada sua tradução da obra “Métodos Críticos para a Análise Literária”, de Daniel Bergez et alü (Livraria Martins Fontes Editora, São Paulo, 1997, 226 páginas). Trata-se de uma coleção de cinco ensaios escritos originalmente em francês, cujos autores enfocam os respectivos métodos de abordagem da análise literária (a crítica genética, a psicanalítica, a temática, a sociocrítica, a crítica textual). Sem dúvida uma contribuição para os estudantes de letras.

As tantas viagens, fruto de uma curiosidade indomável, bem assim de oportunidades repentinas, e, de outra parte, os misteres de tradutora têm ocupado (e compensado) o afastamento do ensino. Mais recentemente o preparo dos originais, algo dispersos, para a publicação deste livro, absorveram-na com prazer. Claro que a vinculação com o fenômeno estético não pode ser dissociada de sua experiência. E da expressão artística, falam os versos de “Criação”:

 

“Das tintas, todas as cores

Frascos dispostos no armário

..............................................

Basta o impulso da mão”

 

No mesmo sentido, a declaração de “Galeria de Vidro”:

 

“Meu ser mais profundo é a beleza...

E com isso vaporizo-me

Vagando de costas pelos séculos”

 

Para não alongar estes dados cronológicos da trajetória poético-existencial da autora – pois a análise crítica de sua obra é obviamente tarefa de especialistas – faço-lhe, todavia, o registro de algumas evidências:

a)      De forma pouco freqüente, só com a maturidade a autora rendeu-se às instâncias da poesia. Poder-se-ia dizer, uma eclosão;

b)     Quase toda sua obra estética, portanto, está compreendida (até agora) no denso período de produção de cinco a sete anos, aproximadamente;

c)     Disso resultou uma escrita como que depurada de transbordamentos juvenis, visto que concebida sob o rigor de um maior senso crítico (proveniente do lastro teórico e da intimidade com a grande poesia).

 

1998. Nasce Renata, a primeira neta (alta invenção poética, seguramente). Ver “Pronomes Pessoais”, que anuncia:

 

“.........................................

Enquanto isso ela chegava

Como o arco-íris que nasce

Ao fim da rua chuvosa”

 

Fácil identificar, no engenho da autora, o traço de espontaneidade, espécie de artefato sem aparente costura (inconsútil?), ao qual faz contraponto aquela tensão subjacente a desvelar a humana condição da artista. Ver especialmente, “Impulso”, “A Escada”, “Casarão”, “Sala de Espera”, “Vida” e este “Colapso”:

 

“........................

Não temam a morte do corpo

Ou o corte na mão

Terrível é a morte no corpo

A realidade externa vivida como um sonho

O eu acordado querendo acordar”.

 

2002. Edição (finalmente) deste livro de poesias, que enfeixa cento e dezesseis composições, grupadas em cinco partes, sob o título de “Papéis do Outono”. A respeito do título, tentou-se confirmar se era alusivo a um sentimento de nostalgia, uma sorte de fio condutor que percorre o conjunto de poemas evocativos. A autora não dissentiu, como de resto não descarta outros significados. Mas, conscientemente, com a escolha desse título, pretendera sobretudo nomear uma poesia que a tomou já na segunda metade de sua vida. Não obstante lhe esteve sempre presente a idéia de folhas (folhas de papel) soltas ao vento do outono. Mais ainda, “Papéis do Outono”- sugere a autora – refereria a tonalidade amarelo-dourada que as laudas manuscritas de fato receberam, após longo repouso na gaveta (uma assemelhação com as folhas secas da estação outonal...). Para terminar, vem a propósito uma citação de Ezra Pound: “Grande literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível”.

 

BA. Abril/2002

 

Os Editores.

 

 

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