Pedro de Andrade Caminha


Epístola XVIII

Queixo-me, douro Andrade, duns indoutos Que o que às vezes lêem mal, pior entendem, Querem julgar como se fossem doutos. Tão facilmente a seu gosto repreendem As vigílias alheias, que eu me espanto Como eles de si mesmos não se ofendem. O verso ou mau ou bom, o escrito, ou canto Que o espírito custa estudo, e tempo, e lima Julgam como que não custassem tanto. A livre prosa ou obrigada rima Por seu juízo e só entendimento Assim a têm em desprezo, assim em estima. Se lhes perguntas pelo fundamento, Respondem só, que bem não lhes parece. Querem que obrigue o seu contentamento. Que me dizes, Francisco, a quem conhece O mundo por tão raro, e em cujo espírito Apolo claramente se enriquece? Com quais julgas que deve ser escrito Aquele de juízo tão ousado, Que quer assim julgar o alheio escrito? O sisudo, o prudente, o atentado, O douto, antes que julgue tudo atenta, Por não ser seu juízo mal julgado. Ante os olhos primeiro representa A obrigação do verso, e a natureza, Vê se ofende a invenção, ou se contenta. Com livre espírito nota, e com pureza Os conceitos, as frases, as figuras, E se na língua tem cópia ou pobreza. Se as palavras são próprias, se são puras, Se as busca claras para o que pretende, Ou se ásperas, difíciles, e escuras. O decoro se o guarda, ou se o entende, E se matéria é bem ou mal seguida, Se abranda, ou afeiçoa, ou move, e acende. Se toma imitação bem escolhida, Se o estilo é sempre grave, ou sempre brando, Se a sentença a bom tempo, ou mau trazida. Se se vai longamente dilatando, Ou se diz o que quer tão brevemente Que ou não se entende bem, ou vai cansando. Quem tudo isto, Francisco, nota, e sente Com claríssimo juízo, e peito puro, E o mais que enjeita a musa, e o que consente; Julgue, ria, repreenda, e este seguro Que deve inteiramente de ser crido, E eu, destes sós espíritos trato, e curo. Destes quero ser antes repreendido, Destes como tu és, ó raro Andrade, Que dos outros louvado e recebido. Aprende-se com estes a verdade Do que Apolo promete, e a musa ensina, A quem dá a repreensão autoridade. O espírito que não voa, nem atina O bem, ou mal do que se canta, e escreve, Quando bem, ou mal julga desatina. Se dá razão, mais fria a dá que neve, Sem fundamento louva, e assim reprova, Quem em juízo apressado à razão leve. A repreensão no mundo não é nova, Mas quem melhor entende, mais de espaço O mau repreende, ou o melhor aprova. Têm as línguas agudas mais que d'aço Estes que querem ser graves censores, Se lhes armas, caem logo em qualquer laço. Juízos vãos, indoutos repreensores, Não sofrem musas ser assim tratadas, Nem recebem de vós inda louvores. Tende-os guardados, tende bem guardadas As leves repreensões que usais em tudo, Para as coisas das musas não tocadas. Sem elas todo peito há de mudo, E raríssimo aquele, antes só, peito Que não se deva ant' elas chamar rudo. Seja meu verso, sem nenhum respeito Daqueles, a que Febo maior parte Tem de si dado, ou repreendido, ou aceito. Seja de ti, Francisco, que guardar-te Quis par' honra da musa portuguesa, E para entre os mais raros mais mostrar-te. Tu segue confiado aquela empresa Que tão felicemente começaste, Segue-a com pronto espírito, e alma acesa, A vitória Caríssima que achaste, Digna do raro engenho que em tudo usas, E usaste sempre em tudo o que cantaste; Confiado em teu conselho, e no das musas A segue, e em tua lima, e espírito claro, E assim mais haverá espantos que escusas Em teu verso, e em teu canto douto e raro.


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