Orlando Tejo

Poeta do Absurdo e o Absurdo dos Poetas
— Parte II —
                
 
             O que se observa no cenário das nossas letras é mera confusão.  Um céu nublado, uma paisagem sem cores.  As vocações mais legítimas, marginalizadas; as mediocridades, sob a proteção ignominiosa das "igrejinhas", brilham como sóis. 

             Passo a narrar, como reforço deste ponto de vista, o que vi durante uma reunião do Grêmio Literário "Joaquim Nabuco", entidade recifense de vida efêmera, que funcionou pelos idos de 1956: 
  
             O poeta futurista José Jorge Brandão foi à tribuna para apresentar sua mais recente produção.  O poema, "sui generis", "novíssimo", suscitou o interesse geral dos gremistas. Após a declamação, o autor pediu aos colegas que interpretassem a mensagem, permanecendo no seu ponto para a sustentação de eventuais debates. 

             Pela ordem, um crítico literário pediu a palavra e fez, rápido, sua apreciação: 
             — Acho que o nobre poeta pintou, com as cores mais reais, o sofrimento da classe média brasileira na atualidade. 

             O poeta aceitou integralmente a opinião.  Outro gremista sentenciou, logo em seguida: 
             — Nunca vi nada mais bem escrito do que este poema em que o ilustre colega transporta-nos ao Cais de José Mariano. 

             José Jorge aceitou a segunda opinião.  Uma das mais discutidas poetisas de Recife sintetizou o pensamento do poeta nestas palavras: 
             — Uma viagem ao desconhecido! 

             O autor aceitou a terceira opinião.  Finalmente, o vigoroso poeta e tribuno alagoano Alcoforado de Pereira, que alisava os bancos da Faculdade de Direito, solicitou um aparte.  E, aproveitando-se da inabilidade do presidente da Casa, uma proeminente figura da imprensa pernambucana, conseguiu chegar à tribuna. Com sua conhecida ironia que chega a transcender, aprofundou-se num discurso acadêmico de altas conotações literárias, tão longo quanto brilhante, concluindo que o poema não traduzia "o sofrimento da classe média brasileira na atualidade", não transportava ninguém "ao Cais de José Mariano" nem tampouco significava nenhuma "viagem ao desconhecido".  Tratava-se, isto sim, de um "Ciclone em Bemol Sustenido"! 

             A surpreendente definição, imediatamente aceita pelo senhor José Jorge Brandão, pelos críticos, e, de resto, por todo o Grêmio, valeu ao orador uma duradoura salva de palmas. 

             O discutido poema, cujo título era "Felicidade Tríplice", ganhava, agora, uma epígrafe condigna.  Uma semana depois o suplemento domingueiro do "Correio do Povo" publicava, com destaque, o "Ciclone em Bemol Sustenido", com uma amável dedicatória a Alcoforado de Pereira.  Salvo engano, começava assim: 

                         "O vento estrangulou-se 
                         Com os seus próprios dedos 
                         E os cavalos de prata 
                         Tinham patas de brisa, 
                         Enquanto as bestas de ágata 
                         Eram também feitas de chuva e de nada. 
                         Um deserto danado..." 

             Na mesma época, um grupo de adeptos do movimento poético apimentado de Recife — mistura de futurismo, surrealismo e outros ismos" — reunia-se, invariavelmente todas as noites, a partir das vinte três horas.  Sentavam-se os quinze intelectuais na sapata de cimento que margeia o Rio Capibaribe e numa justa homenagem à Rua da Aurora recepcionavam o sol.  Passavam a madrugada inteira "analisando poemas". 

             Certo dia resolvemos, Josy Santiago, Alcoforado de Pereira e eu, mostrar que a poesia tão em voga era plenamente infundada.  E começamos o trabalho.  Redigimos, conjuntamente, uma espécie de "Ciclone em Bemol Sustenido", datilografamos abaixo o nome de Cados Drummond de Andrade, e numa madrugada de sábado chegamos à tertúlia, nas imediações do antigo Bar da Noite, onde estavam os quinze estudiosos mergulhados em altas análises.  Josy interrompeu a conversação: 
             — Resolvemos, nós três, aderir ao futurismo.  O motivo da adesão não poderia ser outro, senão este divino poema de Drummond. 

             Entregou a cópia ao líder do grupo, poeta Frederico Frota, que leu em voz alta.  A vibração foi geral: 
             — Grande! 
             — Magnífico! 
             — Estupendo! 
             — Genial! 
             — Divino! 
             — É a obra-prima do autor!... 
             No dia seguinte as cópias sucederam-se.  Os intelectuais memorizaram o "grande" poema que se intitulava "Que Será das Rosas de Vento?": 

                                     "Cavalguei o vulcão de Paulo Afonso. 
                                     Engoli os Andes e o Evereste das tardes. 
                                     Sorvi o último grão de areia dos gabinetes... 
                                     Palmilhei veredas de fogo, conquanto verdes, 
                                     E devastei os subterrâneos pensamentos das 
                                     florestas do beijo incolor que foi quase nosso. 
                                     — Quem viu minhas sandálias no Saara?" 

             Trinta dias depois, voltamos a nos reunir com os pupilos de Carlos Drummond de Andrade para confessar a brincadeira.  Ganhamos quinze inimigos. 

             Vejamos o que nos transmite o momento mais lúcido do surrealista Hugo Bellard: 

                         "As fezes do cavalo na calçada 
                         E o coração a trepidar nos ares, 
                         Ovários retalhados e espremidos 
                         Nas geratrizes, milagrosas ânsias... 
                         — O pássaro voou?  Quebrou-se a voz? 
                         Renasce a natureza triangular, 
                         Quero parir idéias multiformes 
                         Pela ponta dos dedos calejados, 
                         Tesouros escondidos no intestino 
                         A borbulhar pela ilharga do orbe, 
                         Serão nuvens as idéias tão ligeiras 
                         Ou loucuras bailando neste crânio?" 

             Afora os "tesouros escondidos no intestino", o que, na hipótese mais otimista, só poderia ser "aquilo", o mais estranhável no poema é aquele coração a trepidar nos ares", porque ninguém sabe se o pobre órgão trepidante é o do cavalo ou o do poeta. 

             Enquanto o surrealista carioca contempla "fezes de cavalo na calçada", cria uma "natureza triangular" e deseja "parir idéias pela ponta dos dedos", o pernambucano Arnaldo Tobias dá conta de um: 

                         "Navio abortando janeiros, 
                         Sorriso embora, 
                         e fevereiro indeciso 
                         comia os ventos e o roteiro." 

             Trabalhando a chamada Poesia de Muro, a Equipe de Poetas Amazonenses oferece-nos "O Sapo", poema de que é co-autor o senhor Anthístenis Pinto (Jornal do Commercio, de 19-3-67): 

                         "Em cada pulo 
                         mais parece um relógio 
                         dentro de um burro, 
                         no entanto é um bicho 
                         que tanto chia como 
                         engole o chiado..." 

             Observando o espetáculo, não sei se foi Noaldo Dantas quem me disse: 
             — Deve ser fortíssimo! 
             — O relógio ? — indaguei. 
             — Não, o burro. 

             Acompanhemos agora a "Missa" do senhor Marcos Vinícius de Andrade (Jornal do Commercio, 16-4-67): 

                         "a) 

                         O sino, o silêncio 
                         O dão e o dim 
                         repicam missa à messe 

                         moça acorda/corre 
                         Mulher acorre 
                         correm véus (vôo) 
                         e vida e lida—luta—luto 

                         e tudo e tanto: 
                         clerical e claustro 
                         à custo a missa 

                         b) 

                         pão e vinho—vão e pinho 
                         Cristo na cruz acre e cru 
                         cruzado corpo, corpocruz—luz? 
                         tilintam os tlins o tilitar 
                         fim 

                         c) 

                         missa acaba e volta a messe 
                         a cruz, os braços cruzados." 

             Em Santa Luzia do Sabugi, ao som da viola, Zé Limeira "celebrou" coisa parecida: 

                         "Ó mestre, os donos da casa 
                         Tão pedindo a tu e a mim 
                         Pra se cantá uma missa 
                         Com três palavra em latim: 
                         Quinca, quincó, melengonço, 
                         Goguenso, quincoloquim." 

             Surpreende esse desencontro: quando os sacerdotes passaram a celebrar a Missa em Português (e vou agora valer-me da gíria popular), Oara não mais "perder o seu latim", uma vez que os fiéis "ficavam sempre na missa", os poetas começaram a complicar o Santo Sacrifício.  Diz o Poeta do Absurdo: 

                         “...Quinca, quincó, melengonço, 
                         Goguenso, quincoloquim." 

             O outro parece pegar a "deixa": 

                         "... o dão e o dim... 
                         Cristo na cruz acre e cru 
                         cruzado corpo, corpocruz... 
                         tilintam os tlins..." 

             Um julgamento imparcial colocaria as duas "missas" no mesmo altar, em razão do seguinte: o "melengonço" de Zé Limeira está para o "dim" do senhor Marcos Vinícius, assim como o "corpocruz" deste está para o “goguenso” daquele.  De resto, estes inauditos vocábulos l.quincoioquim", do Poeta do Absurdo, e "tlins", do vate pessoense, sugerem que ambas as "missas" não estão muito ,católicas". 

             Com o poema intitulado "Canção para o Menino Paulo", o senhor Milani Ferrara foi premiado na capital econômica do Brasil (Jornal Artes, São Paulo, edição de 10-01-69): 

                         "Menino Paulo, menino Paulo, 
                         Não és mais o menino Paulo' 
                         Simplesmente uma cruz no cinema 
                         Ou no Cemitério do Braz. 

                         O que foste, menino Paulo, 
                         Além do fenômeno biológico: 
                         Vísceras, moléculas, minérios, 
                         Carbono, montanha, fogo, brasa, 
                         Ferros, ossos, bondes, carroças, fraldas, 
                         Grito na madrugada aviatória da cara. 

                         Agora és um anjinho, 
                         Um anjo 
                         Ou um anjão. 

                         Menino Paulo, menino Paulo, 
                         E agora, menino Paulo? 
                         Tás lascado mesmo?" 

             Idêntica homenagem do mesmo homem de letras (de câmbio) atinge desditosa mulher: 

                         "Marta, bocado de 
                         Substâncias plásmicas, 
                         além de brincos, meias, 
                         sutians, sapatos e outras 
                         peças que não devo dizer. 
                         Marta, que nas alvoradas orgíacas 
                         dos cabarés, não sabe, ela mesma, 
                         se é ela ou um metrô. 
                         Marta, vagabunda de 
                         terceira categoria, 
                         com duas pontes 
                         nos olhos e várias 
                         macacas no coração, 
                         bondes nos dedos, 
                         elefantes na alma, 
                         e parafusos nos joelhos. 
                         Será que alguém dirá 
                         melhor sobre ti, 
                         Marta da noite?' 

             Apesar de todo esse caos, todo esse embaralhamento que se tem feito em nome da escola surrealista , rebentaria um ou outro lampejo, em meio a milhares de tentativas, o que não ocorrerá, certamente, no limbo da poesia concreta, já por sua natureza desértica e árida.  O melhor exemplo temos nestas filigranas que encerram toda uma década de penoso labor: 

                         “ra            terra            ter 
                         rat              erra            ter 
                         rat              rra              ter 
                         rater           rra              ter 
                         raterr            a               ter 
                         raterra                          terr 
                         araterra                         ter 
                         raraterra                        te 
                         rraraterra                       t 
                         erraraterra 
                         terraraterra." 
 

                                                                         décio pignatari 
 

              "Navegrama para Valentina Terechkova 

                           "E (n)   volta 
                           astro     nave 
                           giras     sol 
                           gira 
                                  só                   Valentina 
                           gaivo    ta 
                                        es 
                                          paço 
                                            azul girasSOL 
                                                     Vla       ja 
                                                  E ter 
                                  ValenTi      na 
                                        COr ação 
                                           mundo 

                                                     luiz carlos guímarães 
 

                           "beba       coca             cola 
                            babe                            cola 
                            beba      cola 
                            babe        cola             caco 
                            caco 
                            cola 
                                  cloaca." 
                                                                  décio pignatari 

                           “com    can 

                           som     tem 

                           com    tem       tam 

                           tem     são        bem 

                                      tom       sem 

                                      bem        som” 
                                                                  augusto de campos 
 
 

“branco branco branco branco 

vermelho 

estanco             vermelho 

                          espelho             vermelho 
                                                    estanco             branco” 

                                                             haroldo de campos 
 

“S O L I D A 

S O L I D Ã O 

SO 

             L I DA 

SOL 

S               A 
             I D 
      O 
              D A 

           L I D A 

                D 
       O 
                D 

I    A” 

                           wlademir dias pino 
 

“V V V V V V V V V V  

V V V V V V V V V V E 

V V V V V V V V V E L 

V V V V V V V V E L O 
V V V V V V V E L O C 

V V V V V E L O C I 

V V V V E L O C I  D  

V V V E L O C I  D A 

V V E L O C I D A D  

V E L O C I D A D E 

                 ronaldo azevedo 
 
 

                                        “poema 
                                          poema 
                                          poema 
                                          poema 
                                          poema 
                                          poema 
                                                 pó 
                                                   e 
                                                mó” 

                                   edgar braga 
 

“1 

2 2 

3 3 3 

4 4 4 4 

c i n c o” 

                                                                  josé lino grunewald 

“INFINITIVO” 

                                                                                                                amar 
                                                                                                              amar 
                                                                                                            amar
                                                                                                          amar 
                                                                                                        amar 
                                                                                                      amar 
                                                                                                    amar 
                                                                                                  amar 
                                                                                                amar 
                                                                                              amar 
                                                                                            amar 
                                                                                          amar 
                                                                                        amar 
                                                                                      amar 
                                                                                    amar 
                                                                                  amar 
                                                                                amar 
                                                                              amar 
                                                                            amar 
                                                                          amar 
                                                                       amar 
                                                                     amar 
                                                                   amar 
                                                                 amar 
                                                               amar 
                                                                             nei leandro de castro 
  

                                        C I D A D E 

                                        I L O R A S 

                                        L H M M T C 

                                        A A A A A A 

                                        D D D D D D 

                                        A A A A A A 

                                                                               dailor varela 
 
 

                                        “quarta operação fundamental 
                                        e u 
                                        d 
                                        i 
                                        v 
                                        i 
                                        d 
                                        i 
                                        d 
                                        o 
                                                     sou quociente de mim 
                                                                               e só” 

                                                                  joão bosco de almeida 
 

                                        marinha concreta 
                                        “lentamente corre o frio 

                                        no  mar  tírio  e  azul 
                                                         rio    azul 
                                              mar             azul 
                                                 ar               sul 
                                                      (frio)” 

                                                                         anchieta femandes

                                                                        

  
PARTE ANTERIOR
 
[ ÍNDICE DO AUTOR ][ PÁGINA PRINCIPAL ]
   
PRÓXIMA PARTE
      
 
 
 
 Página editada por  Alisson de Castro,  Jornal de Poesia,  15  de Junho de 1998